quarta-feira, 26 de março de 2014

Bíblia Sagrada, Pretensionismo e Homossexualidade

Por Victor Orellana


Ao analisar o vasto número de traduções da Bíblia na Língua Portuguesa e a crescente oposição do protestantismo fundamentalista militante em relação aos gays (me refiro principalmente aqueles que usam de seus cargos públicos para reforçar preconceitos, crimes de ódio, repressão às minorias sexuais, etc, etc) cresceu em mim o interesse de fazer um texto onde abordasse os famosos "versículos do terror". Bem, é notório como as igrejas fundamentalistas usam tais versículos, descolando-os de seu contexto bíblico e, inclusive, de seu contexto histórico também, diga-se de passagem, para utilizá-los como instrumento ideológico, com o objetivo de apagarem, se não, reduzirem pessoas perante a sociedade como "cidadãos de segunda classe", "categoria imoral" ou até mesmo "inumanos". A Igreja Batista de Westboro inclusive, sai em eventos públicos com cartazes nos EUA onde afirma taxativamente "Deus odeia gays", tomando ao pé da letra os textos de Levítico 18:22, onde diz "Não se deitará homem com homem (...), abominação é". No dicionário deles abominação é sinônimo de odiar, tsc tsc, um flagrante caso de pretensão quiçá no livro sagrado que foi traduzido. Será que a palavra moderna ou "equivalência dinâmica" para o original hebraico é "detestar", ou "odiar"? Evidente que não; então, temos aqui distorcedores da Palavra.

Apenas para adentrarmos ao tema, é bom lembrarmos que os cristãos não são unânimes em relação ao tratamento que a Bíblia Sagrada tem quanto a sua interpretação. Os católicos, por exemplo, vêem a Bíblia como um livro sagrado que precisa de pessoas especializadas com sofisticação teológica e autoridade eclesiástica para interpretá-la; os protestantes acreditam na doutrina do livre-exame da Bíblia onde, segundo eles, qualquer um é capaz de interpretá-la, mas para ambos os grupos, o livro é a Palavra de Deus.

Só que ambos os grupos não acreditam que seja um ditado de Deus descido dos céus, embora para grupos radicais de ambos os lados o livro seja tratado dessa forma, como algo "inerrante" a respeito de todos os temas onde possa adentrar. Será??

Óbvio que ao leitor não acostumado com os temas seria mais difícil entender as coisas se fôssemos descrevê-las com terminologias teológicas ou regras de exegese dos originais ou até mesmo de interpretação ou hermenêutica. Tentarei ser elucidativo sem adentrar em termos técnicos demasiados.

Para os eruditos católicos, o texto tem que ser traduzido literalmente, sendo necessário ao intérprete ter conhecimento necessário para poder entender o texto sem divorciá-lo do seu contexto e devido sentido. Não é à toa que as melhores traduções da Bíblia Sagrada são as católicas. Tomemos como exemplo o texto de Isaías 34:14 da Bíblia de Jerusalém (católica) que diz: "Os gatos selvagens conviverão ali com as hienas, os sátiros chamarão seus companheiros. Ali descansará Lilit, e achará um pouso para si". O texto alude a destruição de um povo e de como seria deixado em ruínas, etc. Pois bem, o texto usa de uma linguagem poética para descrever isso, aludindo inclusive a mitos comuns do povo hebreu, como sátiros e Lilit. Tais personagens poderiam ser reais ou míticos na mente do escritor do texto. Agora vejamos a tradução protestante João Ferreira de Almeira revista e corrigida: "E os cães bravos se encontrarão com os gatos bravos; e o sátiro clamará ao seu companheiro; e os animais noturnos ali pousarão e acharão lugar de repouso para si". Como vemos, houve um processo de naturalização do texto, já que os protestantes não são propensos a crerem em mitos no texto bíblico. Vejamos nas Bíblias mais modernas, como a Tradução Linguagem de Hoje, que diz: "Os gatos do mato e outros animais selvagens morarão ali; demônios chamarão uns aos outros, e ali a bruxa do deserto encontrará um lugar para descansar". A linguagem mítica e poética desaparece para dar lugar a uma naturalização e sobrenaturalização dos temas envolvidos, e na Nova Versão Internacional assim narra: "Criaturas do deserto se encontrarão com hienas, e bodes selvagens balirão uns para os outros, ali também descansarão as criaturas noturnas e acharão para si locais para descanso". Aqui tudo se torna naturalizado, e é uma mostra clara de como a Palavra de Deus através de suas traduções vai se adaptando ou acoplando ao nível cultural e informação do povo em sua maioria, ao senso comum.

Ou seja, para que o texto se torne mais compreensível ao leitor mediano, a forma (das escrituras) vai se afastando completamente do conteúdo original; daí nos perguntamos: onde está a fidelidade ao texto original nessas traduções??? Cadê a tão propalada equivalência dinâmica que tem que existir no processo de tradução deixando através de palavras modernas a aproximação maior ao sentido do texto original? Inexiste. As traduções modernas dessa forma vão se tornando quimeras adaptativas ao senso comum longe do original bíblico.

Outro exemplo que podemos citar dessa falsa equivalência dinâmica é o texto de II Reis 3:27: "Tomando então, seu filho primogênito, que devia suceder-lhe no trono, ofereceu-o em holocausto sobre a muralha. E houve uma grande cólera contra os israelitas, que se retiraram e voltaram para sua terra." Ora, é evidenciado aqui que, numa guerra entre os moabitas e israelitas, o rei de moabe sacrifica seu próprio filho, gerando uma ação direta de seu "Deus Camós", que se encoleriza contra os israelitas. Nas traduções mais pretensiosas, ou seja, que procuram adequar o texto à mentalidade moderna, essa crença no politeísmo tanto do povo de Israel como do escritor do texto desaparecem, para salvaguardar o monoteísmo israelita. Vejamos como João Ferreira de Almeida traduz o texto: "Então, tomou seu filho primogênito, que havia de reinar em seu lugar, e o ofereceu em holocausto sobre o muro; pelo que houve grande indignação em Israel; por isso retiraram-se dele e voltaram para sua terra". Aqui se perde o sentido original. A Linguagem de Hoje assim traduz: "Então pegou o seu filho mais velho, que iria ficar no lugar dele como rei, e o ofereceu em sacrifício ao deus de Moabe nas muralhas da cidade. Os israelitas ficaram apavorados e por isso saíram dali e voltaram para o seu país." Aqui desaparece qualquer ação direta do deus Camós e os israelitas ficam apavorados porque "acharam" que deveriam temer "alguma coisa", ou seja, o politeímo desaparece do relato do escritor e permanece somente na ação dos israelitas. Na Nova Versão Internacional: "Então pegou seu filho mais velho, que devia sucedê-lo como rei, e o sacrificou sobre o muro da cidade, isso trouxe grande ira contra Israel, de modo que eles se retiraram e voltaram para a sua própria terra". Ou seja, a ira provêm do contexto natural dos próprios moabitas contra Israel por causa da morte do herdeiro pelo rei.

Pretensionismo é quando, por conta da força do senso comum de alguém que é tradutor, traduz algo, fugindo da originalidade do texto para adaptá-lo à sua compreensão das coisas ou da realidade. Para melhor explicarmos, é quando a "nova forma" foge do "conteúdo original" para adaptar-se à "forma do tradutor", que por sua vez representa um senso comum de pessoas que pensam como ele em determinados assuntos.

A partir daí podemos perceber a má vontade em traduzir corretamente textos relacionados à homossexualidade, etc. Não que a Bíblia Sagrada aprove relações sexuais entre dois homens, porque isso não o faz, mas que as relações homossexuais que ela condena necessariamente não são aquilo que consentidamente se aceita hoje como uma relação entre dois adultos, consensual e conscienciosamente, plenamente aceita em países livres.

Vejam o "versículo do terror" muito usado pelos evangélicos fundamentalistas como está na Bíblia de Jerusalém: "Então não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos iludais! Nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem as pessoas de costumes infames, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos herdarão o Reino de Deus" - I Coríntios 6:9. Os termos gregos são bem traduzidos aqui pois denotam hábitos libertinos dos gregos e romanos, como bem se sabe a respeito da cultura helênica, ou seja, mancebos escravizados para fim sexual e pederastas, adultos que apesar de casados, se divertiam como tais escravos.

Na tradução João Ferreira de Almeida assim traduz: "Não sabeis que os injustos não hão de herdar o Reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o Reino de Deus".

A Linguagem de Hoje: "Com certeza vocês sabem que os maus não herdarão o Reino de Deus. Não se enganem, não herdarão o Reino de Deus os imorais, os que adoram ídolos, os adúlteros, os homossexuais, os ladrões, os avarentos, os bêbados, os difamadores, os marginais".

A Nova versão Internacional : "Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? Não se deixem enganar, nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus".

Para quem não entendeu ainda, os homossexuais não são somente polêmicos, são revolucionários, e por serem assim eu já presenciei alguns que decidiram se anular para voltarem à pseudo-aceitação de suas famílias e de seus contextos sociais conservadores. É uma pena, mas eu os compreendo de todo coração. Somente os liberais puderam romper paradigmas, e dessa forma, mostrarem um novo horizonte nunca antes visto. Não será com lentes que os conservadores nos dão que conseguiremos enxergar essa liberdade, ou usando as próprias palavras de Jesus, "não se remenda pano novo com roupa velha". Reafirmar certo conservadorismo libertário ou neo-ortodoxia para mim é contraproducente. Cuidado com as mentalidades fundamentalistas, que vemos aparecerem por aí.

Afirmemos nossas vidas e existências, mesmo que "pretensas Palavras de Deus" nos digam o contrário, ou pretenciosos tradutores. Não precisamos dessas quimeras e nem de novas traduções que nada mais sabem ser que reflexos do senso comum da sociedade que tanto oprime e reprime os gays, e estes, muitas vezes se vêem sem coragem ou ânimo para exercerem o que de fato justifica suas vidas, que é a capacidade de amar e ser amados. Ou seja, cada um sabe viver a simplicidade da vida, não compliquemos.

Felicidade a todos.

Sobre o autor


Victor Orellana é Pastor e Mestre espiritual.


Primeira Exortação do Papa Francisco




O Papa Francisco foi eleito pela revista LGBT mais importante do mundo, "The Advocate", como a personalidade do ano 2013. Dentre outras razões pesou sua declaração "Se alguém é gay e procura Deus com boa intenção, quem sou eu para julgá-lo?" Adiante, apresento trecho da sua primeira exortação, em que se percebe claramente a sua posição de autoridade máxima da Igreja Católica em relação a TODOS, SEM EXCLUSÕES.
(Marcelo Moraes Caetano)


Papa Francisco –

Exortação Apostólica EVANGELII GAUDIUM

sobre o ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO ATUAL

Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente e radiosa.

Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes por exprimir mais diretamente o coração do Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado. Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que «existe uma ordem ou ‘hierarquia’ das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente». Isto é válido tanto para os dogmas da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral.

São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem moral da Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e ações que delas procedem. Aqui o que conta é, antes de mais nada, «a fé que atua pelo amor» (Gal 5, 6). As obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito: «O elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta através da fé que opera pelo amor». Por isso afirma que, relativamente ao agir exterior, a misericórdia é a maior de todas as virtudes: «Em si mesma, a misericórdia é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o que mais conta – remediar as misérias alheias. Ora, isto é tarefa especialmente de quem é superior; é por isso que se diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua omnipotência».

É importante tirar as consequências pastorais desta doutrina conciliar, que recolhe uma antiga convicção da Igreja. Antes de mais nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que haja uma proporção adequada. Esta reconhece-se na frequência com que se mencionam alguns temas e nas acentuações postas na pregação. Por exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus.

A pregação moral cristã não é uma ética estoica, é mais do que uma ascese, não é uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. Este convite não há de ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas as virtudes estão ao serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de perder o seu frescor e já não ter «o perfume do Evangelho».

A Igreja, que é discípula missionária, tem necessidade de crescer na sua interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade. A tarefa dos exegetas e teólogos ajuda a «amadurecer o juízo da Igreja». Embora de modo diferente, fazem-no também as outras ciências.

No seu constante discernimento, a Igreja pode chegar também a reconhecer costumes próprios não directamente ligados ao núcleo do Evangelho, alguns muito radicados no curso da história, que hoje já não são interpretados da mesma maneira e cuja mensagem habitualmente não é percebida de modo adequado. Podem até ser belos, mas agora não prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não tenhamos medo de os rever! Da mesma forma, há normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a mesma força educativa como canais de vida. São Tomás de Aquino sublinhava que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus «são pouquíssimos». E, citando Santo Agostinho, observava que os preceitos adicionados posteriormente pela Igreja se devem exigir com moderação, «para não tornar pesada a vida aos fiéis» nem transformar a nossa religião numa escravidão, quando «a misericórdia de Deus quis que fosse livre». Esta advertência, feita há vários séculos, tem uma actualidade tremenda. Deveria ser um dos critérios a considerar, quando se pensa numa reforma da Igreja e da sua pregação que permita realmente chegar a todos.

Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia. Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível. Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos e das suas quedas.

Um coração missionário está consciente destas limitações, fazendo-se «fraco com os fracos (...) e tudo para todos» (1 Cor 9, 22). Nunca se fecha, nunca se refugia nas próprias seguranças, nunca opta pela rigidez autodefensiva. Sabe que ele mesmo deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada.

PAPA FRANCISCO