Por Paulo Stekel (artigo postado originalmente em http://gayexpression.wordpress.com/2010/11/18/a-uniao-dos-iguais-quando-a-religiao-interfere-no-direito-social/)
Nestas eleições vimos a formação de um perigoso triângulo (nada amoroso): políticos “vendilhões de votos” de um lado, evangélicos e católicos fundamentalistas de outro, e os gays em busca de seus direitos civis no topo. No centro da discussão, a união gay.
Quem gostaria de ver sua união com um companheiro ou companheira do mesmo sexo reconhecida em toda a sua expressão, tendo equiparados todos os direitos civis franqueados a uniões entre pessoas de sexos opostos? Creio que muitos casais homossexuais gostariam! Mas, há muita confusão neste assunto. Durante a campanha eleitoral de 2010 ficou claro que nem os políticos sabem exatamente a diferença entre união civil e casamento religioso, pois misturaram as estações na hora de manifestarem seu “desapoio” à união entre pessoas do mesmo sexo. O único que parecia ter certeza do que NÃO queria era o fundamentalista Malafaia… Os demais leiloavam a comunidade LGBT na insana busca por votos decisivos. Parece que a estratégia não deu certo, não assegurou nem os votos dos evangélicos, e ainda alertou a comunidade LGBT para o risco de ser tratada como massa de manobra, caso não reveja sua tendência a apoiar este ou aquele partido político por conta de promessas de apoio aos direitos civis dos gays. Na “hora H” se percebe que apoio político é moeda de troca: vale votos!
O casamento entre pessoas do mesmo sexo, casamento homossexual, Casamento Igualitário (na Argentina) ou casamento gay é uma instituição existente em certos países que une duas pessoas homossexuais. Nas nações democráticas (e laicas) há dois tipos distintos de casamento: o casamento civil (cujos direitos são assegurados pelo Estado) e o matrimônio religioso (variando em suas particularidades conforme a religião).
Apesar do Estado quase sempre aceitar a documentação expedida por instituições religiosas para estabelecer um casamento civil no registro civil, isso não quer dizer que o rito religioso chamado matrimônio equivalha ao casamento civil. Por que? Por causa de um motivo simples: o laicismo do Estado republicano e democrático. Portanto, equiparar o casamento civil homossexual ao heterossexual é algo que deve ser cobrado do Estado, não das religiões. Se elas permitirão que se celebrem casamentos religiosos em seus templos, isso é outro assunto, pois aí entramos na esfera religiosa. Por outro lado, não cabe às religiões impedir que o Estado reconheça os direitos civis dos gays, pois se trata de esfera laica.
União entre iguais não é algo novo
Apesar dos religiosos se escandalizarem com a ideia de casamento gay, não podemos esquecer que sociedades antigas já permitiram tal união. Na Era Clássica havia um tipo de união chamada
Adelphopoiesis (do grego:
adelphos, irmão;
poie, feito, lit. “feito irmãos”).
Originalmente, era uma cerimônia realizada na sociedade greco-romana, para a união entre duas pessoas do mesmo sexo, em geral homens livres e de classe social semelhante (a mulher e os escravos tinham poucos direitos neste período, quase se confundindo). No período medieval, as Igrejas Romana e Ortodoxa Grega continuaram com esta cerimônia, mas a partir daí as fontes dizem que esse tipo de união equivalia apenas a um pacto de sangue entre amigos, não tendo conotação sexual. E, na era greco-romana? Sabemos que os Gregos viam a homossexualidade com certa naturalidade e isso influenciou muito os Romanos da Era Clássica! Na temível Esparta grega a união matrimonial entre os soldados era incentivada, pois se acreditava que, lutando juntos, seriam mais fortes contra o inimigo.
Mas, não temos só o exemplo greco-romano. Em diversas tribos da África são permitidas uniões entre iguais há séculos. Até dotes são pagos às famílias, e filhos podem ser gerados através de espécies de “parceiros de aluguel” (homens ou mulheres). Uniões entre homens foram documentadas em cinco tribos africanas, enquanto as uniões lésbicas foram registradas em mais de trinta tribos.
Na China da Dinastia Ming (1368-1644) o casamento entre iguais era permitido, mesmo entre mulheres, onde era chamado de Casamento das Orquídeas de Ouro. Entre homens havia o matrimônio Fujian, sendo o mais velho chamado de “grande irmão jurado”, e o mais jovem de “pequeno irmão jurado”. Após o Fujian, todos os custos do mais jovem seriam pagos pelo mais velho. Eles passavam a morar e a dormir juntos e mulheres (escravas) podiam ser compradas apenas para procriação.
Em certas tribos da América do Norte foram documentadas uniões homossexuais permitidas a pessoas chamadas de “dois-espíritos”, ou seja, que aparentavam alguma ambiguidade sexual.
A divergente visão religiosa
Atualmente, várias confissões religiosas têm discutido sobre a aceitação ou não da homossexualidade como algo natural e não doentio. Por conta disso, o debate sobre a celebração de casamentos religiosos entre pessoas do mesmo sexo é cada vez mais acirrado.
No mundo cristão a divisão é clara – há quem aceita e há quem prefere matar gays do que aceitar. Quem aceita, se baseia na máxima evangélica do “Ama ao próximo como a ti mesmo” (seja ele pecador ou não), já que “Deus é amor”. Quem não aceita, se baseia na lei deuteronômica que manda matar quem se deita com alguém do mesmo sexo, pois Moisés diz que Jeová é um “Deus irado”, vingativo. (Eu sei que ler essas duas versões na mesma Bíblia é de deixar qualquer fiel confuso!)
No mundo islâmico praticamente não há divisão – a solução encontrada ali é enforcar e fuzilar gays, como quer o ditador iraniano (aspirante a Hitler do século XXI)
Ahmadinejad e a
sharia (a lei islâmica) que ele defende. A lei islâmica é tão irreal que, no Irã com o qual o governo brasileiro tem flertado nos últimos anos, até crianças foram enforcadas sob acusação de serem gays simplesmente por usarem calções curtos demais! Sério! Contudo, ao se discordar da aplicação da
sharia, não se está necessariamente atacando o Alcorão, pois ela é baseada mais nos costumes locais (os
Al-Urf) do que no livro sagrado do Islã. Tanto isso é verdade que ela não é aplicada em todas as nações islâmicas. Indonésia, Bangladesh e Paquistão, por exemplo, possuem leis e constituições majoritariamente seculares, o que impede a aplicação de penas bárbaras como as que vemos no Irã, Afeganistão e Sudão. E, atualmente, vários movimentos islâmicos contestam a aplicação da
sharia. As fontes da
sharia são, além do Alcorão, a
suna (obra que narra a vida e os caminhos de Maomé), os
ahadith (as narrações de Maomé) e a
ijma (o consenso da comunidade). Nos casos não previstos nas fontes sagradas citadas, os estudiosos da lei e da religião se valeram da
Qiyas, raciocínio por analogia, algo que pode levar a alguns sofismas mais perigosos que o “sentido acomodatício” da Teologia cristã (aquele que consiste em dar às palavras da Bíblia um sentido diferente daquele que o autor pretendia, e que é o mais usado na liturgia e na pregação).
Algumas igrejas cristãs dos EUA, Canadá, Suécia, e até do Brasil abençoam uniões homossexuais:
Metropolitan Community Church e Associação Unitária Universalista (EUA);
United Church of Canada (Canadá); Igreja da Comunidade Metropolitana, Igreja Para Todos, Igreja Cristã Contemporânea e Comunidade Cristã Nova Esperança (Brasil).
No Budismo não há um “casamento” como o cristão. O que há é uma bênção do casal, dada por um sacerdote, desejando todos os benefícios para os que se unem de comum acordo. É apenas um reforço dos compromissos ou votos tomados individualmente por ambos e agora unidos pela decisão de partilharem uma vida. A separação, caso ocorra, também é um ato voluntário do casal e não requer permissão do sacerdote budista. Não há “pecado” na separação, nem numa nova união. A base moral do Budismo nestas questões está no benefício e no evitar o sofrimento. Assim, a princípio, não há qualquer impedimento de uma bênção budista para um casal gay. Muitos casais budistas gays já foram abençoados por lamas e gurus budistas em todo o mundo.
No Brasil, já tive notícias de tais bênçãos budistas a casais gays, mas isso acaba ficando reservado aos noivos e aos convidados. Rsrs. Sério! Com receio da reação cristã (que não possui qualquer gerência sobre as práticas budistas!), vários sacerdotes do Budismo Tibetano no Ocidente abençoam seus discípulos gays sem permitir que estes noticiem o que seria o evento mais feliz de suas vidas ao grande público. Contraditório? Talvez. Mas, compreensível num mundo tão preconceituoso… Eu mesmo fiquei sabendo que em certo centro budista tibetano no sul do Brasil há um séquito de lésbicas em volta da lama orientadora e que muitas delas se “casaram” ou, melhor dizendo, receberam a bênção da união por um sacerdote budista, mas foram orientadas a manter isso sob reserva, para evitar a fúria dos evangélicos da cidade onde o centro budista está instalado. Casais masculinos também receberam ali a mesma recomendação após a bênção… Os Malafaias daquela região querem de qualquer modo fechar as portas do templo budista que eles consideram a “sucursal de Satanás” na serra gaúcha! Pasmem!!! (Quase não resisto à tentação de lhes devolver a ofensa revelando-lhes onde fica a matriz!)
União civil X Casamento religioso
Desde o final década de 1990 iniciaram em vários países tentativas de legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em 2001, a Holanda foi o primeiro país a legalizar a união gay. Seguiram depois o mesmo rumo Bélgica, Canadá, África do Sul, Espanha, Noruega, Suécia, Portugal, Islândia, Argentina e dois estados norte-americanos (Massachusetts e Connecticut). Israel reconhece os casamentos gays realizados em outros países, apesar de ainda não os ter legalizado em seu próprio território.
E, no Brasil, o que temos? No máximo o registro civil, a “declaração de união homoafetiva”, um registro em cartório aprovado em várias estados, sem status de casamento civil, que serve para que casais gays possam comprovar dependência econômica e pleitear seus direitos na Previdência Social, entidades públicas e privadas, companhias de seguro, bancos, etc. Este registro permite que sua união seja reconhecida como uma entidade familiar. As decisões judiciais estaduais que permitiram a criação deste registro se basearam nos princípios constitucionais do respeito à dignidade humana e da igualdade de todos perante a lei. Mas, este registro ainda não é a união civil gay, não é um casamento com todos os direitos que este prevê.
A propósito, a confusão entre casamento gay (o religioso), união civil gay e união estável homoafetiva é muito comum, mesmo entre pessoas esclarecidas e que deveriam saber a diferença! Entre estas estão os três principais candidatos à presidência em 2010 que manifestaram a mesma ignorância do assunto.
Quando Marina Silva disse que
“é preciso separar as duas coisas (união civil e casamento)
” porque acredita que o casamento seja
“um sacramento”, Dilma Roussef disse que
“a questão do casamento é religiosa” e José Serra disse que
“a nomeação da união como ‘casamento’ depende de convicções religiosas”, o que todos queriam dizer? Que não sabem sequer etimologia?
A palavra “casamento” vem de “casa”, onde vive o “casal”. Não importa se são de sexos opostos ou não. O fato da palavra ser derivada do latim medieval
casamentu, o ato solene de união entre duas pessoas de sexo diferente, não significa que o termo não possa ser aplicado no caso da união dos sexos iguais, já que evidencia a “casa”. No antigo patriarcado, os pais “casavam” os filhos, ou seja, os investiam com uma casa, parte de seus bens e propriedades, para que o casal pudesse sustentar a nova família. Nenhuma referência etimológica a casais de sexo diferente, portanto. Talvez a palavra “matrimônio” pudesse ser interdita etimologicamente neste caso por envolver a noção da “mãe” como tendo a prerrogativa de um lar legal:
“matri-monium”, do latim
“mater” (mãe) e
“monium” (função, cargo), ou seja, o direito adquirido pela mulher que o contrai de ser mãe dentro da legalidade.
Contudo, parece que os três candidatos não fizeram a lição de casa ou faltaram à aula no dia em que se ensinou que o casamento é uma união civil e, assim, se diferencia da união estável, constituindo ambas as modalidades os dois regimes jurídicos criados para reconhecer uma família no Brasil. Ademais, casamento não é uma “questão religiosa”, pois a Constituição Federal (artigo 226) diz com todas as letras que o casamento “é civil e gratuita a celebração”, além de assegurar que “o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei”. O contrário não ocorre no Brasil porque o Estado é laico! E, os “termos da lei” de um Estado laico significa que o casamento, mesmo tendo sido realizado numa cerimônia de qualquer religião, deve ser registrado em cartório para ter seus efeitos civis plenos.
A união estável, também aceita como entidade familiar, tem contudo, algumas diferenças quando comparada ao casamento, sendo preferível aos casais gays pleitearem a aprovação do último. Por que? Porque na união estável (incluindo a entre heterossexuais) ambos os indivíduos continuam sendo solteiros, não podem utilizar o sobrenome um do outro e não têm direito incontestável à partilha de herança no caso de morte de um deles. Então, o que é preferível? O casamento, que é civil, não depende de “convicções religiosas”, assegura direitos sociais equiparados e não traz em sua etimologia qualquer conotação de gênero! Deixemos os fundamentalistas religiosos à procura da matriz de Satanás… Mas, temos certeza de que ela não está numa parada gay ou num templo que celebre casamentos entre iguais…