Por Victor Orellana
Ao analisar o vasto
número de traduções da Bíblia na Língua Portuguesa e a crescente
oposição do protestantismo fundamentalista militante em relação
aos gays (me refiro principalmente aqueles que usam de seus cargos
públicos para reforçar preconceitos, crimes de ódio, repressão às
minorias sexuais, etc, etc) cresceu em mim o interesse de fazer um
texto onde abordasse os famosos "versículos do terror".
Bem, é notório como as igrejas fundamentalistas usam tais
versículos, descolando-os de seu contexto bíblico e, inclusive, de
seu contexto histórico também, diga-se de passagem, para
utilizá-los como instrumento ideológico, com o objetivo de
apagarem, se não, reduzirem pessoas perante a sociedade como
"cidadãos de segunda classe", "categoria imoral"
ou até mesmo "inumanos". A Igreja Batista de Westboro
inclusive, sai em eventos públicos com cartazes nos EUA onde afirma
taxativamente "Deus odeia gays", tomando ao pé da
letra os textos de Levítico 18:22, onde diz "Não se deitará
homem com homem (...), abominação é". No dicionário
deles abominação é sinônimo de odiar, tsc tsc, um flagrante caso
de pretensão quiçá no livro sagrado que foi traduzido. Será que a
palavra moderna ou "equivalência dinâmica" para o
original hebraico é "detestar", ou "odiar"?
Evidente que não; então, temos aqui distorcedores da Palavra.
Apenas para adentrarmos
ao tema, é bom lembrarmos que os cristãos não são unânimes em
relação ao tratamento que a Bíblia Sagrada tem quanto a sua
interpretação. Os católicos, por exemplo, vêem a Bíblia como um
livro sagrado que precisa de pessoas especializadas com sofisticação
teológica e autoridade eclesiástica para interpretá-la; os
protestantes acreditam na doutrina do livre-exame da Bíblia onde,
segundo eles, qualquer um é capaz de interpretá-la, mas para ambos
os grupos, o livro é a Palavra de Deus.
Só que ambos os grupos
não acreditam que seja um ditado de Deus descido dos céus, embora
para grupos radicais de ambos os lados o livro seja tratado dessa
forma, como algo "inerrante" a respeito de todos os temas
onde possa adentrar. Será??
Óbvio que ao leitor
não acostumado com os temas seria mais difícil entender as coisas
se fôssemos descrevê-las com terminologias teológicas ou regras de
exegese dos originais ou até mesmo de interpretação ou
hermenêutica. Tentarei ser elucidativo sem adentrar em termos
técnicos demasiados.
Para os eruditos
católicos, o texto tem que ser traduzido literalmente, sendo
necessário ao intérprete ter conhecimento necessário para poder
entender o texto sem divorciá-lo do seu contexto e devido sentido.
Não é à toa que as melhores traduções da Bíblia Sagrada são as
católicas. Tomemos como exemplo o texto de Isaías 34:14 da Bíblia
de Jerusalém (católica) que diz: "Os gatos selvagens
conviverão ali com as hienas, os sátiros chamarão seus
companheiros. Ali descansará Lilit, e achará um pouso para si".
O texto alude a destruição de um povo e de como seria deixado
em ruínas, etc. Pois bem, o texto usa de uma linguagem poética para
descrever isso, aludindo inclusive a mitos comuns do povo hebreu,
como sátiros e Lilit. Tais personagens poderiam ser reais ou míticos
na mente do escritor do texto. Agora vejamos a tradução protestante
João Ferreira de Almeira revista e corrigida: "E os
cães bravos se encontrarão com os gatos bravos; e o sátiro clamará
ao seu companheiro; e os animais noturnos ali pousarão e acharão
lugar de repouso para si". Como vemos, houve um processo de
naturalização do texto, já que os protestantes não são propensos
a crerem em mitos no texto bíblico. Vejamos nas Bíblias mais
modernas, como a Tradução Linguagem de Hoje, que diz: "Os
gatos do mato e outros animais selvagens morarão ali; demônios
chamarão uns aos outros, e ali a bruxa do deserto encontrará um
lugar para descansar". A linguagem mítica e poética
desaparece para dar lugar a uma naturalização e sobrenaturalização
dos temas envolvidos, e na Nova Versão Internacional assim
narra: "Criaturas do deserto se encontrarão com hienas, e
bodes selvagens balirão uns para os outros, ali também descansarão
as criaturas noturnas e acharão para si locais para descanso".
Aqui tudo se torna naturalizado, e é uma mostra clara de como a
Palavra de Deus através de suas traduções vai se adaptando ou
acoplando ao nível cultural e informação do povo em sua maioria,
ao senso comum.
Ou seja, para que o
texto se torne mais compreensível ao leitor mediano, a forma (das
escrituras) vai se afastando completamente do conteúdo original; daí
nos perguntamos: onde está a fidelidade ao texto original nessas
traduções??? Cadê a tão propalada equivalência dinâmica que tem
que existir no processo de tradução deixando através de palavras
modernas a aproximação maior ao sentido do texto original?
Inexiste. As traduções modernas dessa forma vão se tornando
quimeras adaptativas ao senso comum longe do original bíblico.
Outro exemplo que
podemos citar dessa falsa equivalência dinâmica é o texto de II
Reis 3:27: "Tomando então, seu filho primogênito, que devia
suceder-lhe no trono, ofereceu-o em holocausto sobre a muralha. E
houve uma grande cólera contra os israelitas, que se retiraram e
voltaram para sua terra." Ora, é evidenciado aqui que, numa
guerra entre os moabitas e israelitas, o rei de moabe sacrifica seu
próprio filho, gerando uma ação direta de seu "Deus Camós",
que se encoleriza contra os israelitas. Nas traduções mais
pretensiosas, ou seja, que procuram adequar o texto à mentalidade
moderna, essa crença no politeísmo tanto do povo de Israel como do
escritor do texto desaparecem, para salvaguardar o monoteísmo
israelita. Vejamos como João Ferreira de Almeida traduz o texto:
"Então, tomou seu filho primogênito, que havia de reinar em
seu lugar, e o ofereceu em holocausto sobre o muro; pelo que houve
grande indignação em Israel; por isso retiraram-se dele e voltaram
para sua terra". Aqui se perde o sentido original. A
Linguagem de Hoje assim traduz: "Então pegou o seu filho
mais velho, que iria ficar no lugar dele como rei, e o ofereceu em
sacrifício ao deus de Moabe nas muralhas da cidade. Os israelitas
ficaram apavorados e por isso saíram dali e voltaram para o seu
país." Aqui desaparece qualquer ação direta do deus Camós
e os israelitas ficam apavorados porque "acharam" que
deveriam temer "alguma coisa", ou seja, o politeímo
desaparece do relato do escritor e permanece somente na ação dos
israelitas. Na Nova Versão Internacional: "Então pegou seu
filho mais velho, que devia sucedê-lo como rei, e o sacrificou sobre
o muro da cidade, isso trouxe grande ira contra Israel, de modo que
eles se retiraram e voltaram para a sua própria terra". Ou
seja, a ira provêm do contexto natural dos próprios moabitas contra
Israel por causa da morte do herdeiro pelo rei.
Pretensionismo é
quando, por conta da força do senso comum de alguém que é
tradutor, traduz algo, fugindo da originalidade do texto para
adaptá-lo à sua compreensão das coisas ou da realidade. Para
melhor explicarmos, é quando a "nova forma" foge do
"conteúdo original" para adaptar-se à "forma do
tradutor", que por sua vez representa um senso comum de pessoas
que pensam como ele em determinados assuntos.
A partir daí podemos
perceber a má vontade em traduzir corretamente textos relacionados à
homossexualidade, etc. Não que a Bíblia Sagrada aprove relações
sexuais entre dois homens, porque isso não o faz, mas que as
relações homossexuais que ela condena necessariamente não são
aquilo que consentidamente se aceita hoje como uma relação entre
dois adultos, consensual e conscienciosamente, plenamente aceita em
países livres.
Vejam o "versículo
do terror" muito usado pelos evangélicos fundamentalistas como
está na Bíblia de Jerusalém: "Então não sabeis que os
injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos iludais! Nem os
devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados,
nem as pessoas de costumes infames, nem os ladrões, nem os
avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos herdarão o Reino de
Deus" - I Coríntios 6:9. Os termos gregos são bem
traduzidos aqui pois denotam hábitos libertinos dos gregos e
romanos, como bem se sabe a respeito da cultura helênica, ou seja,
mancebos escravizados para fim sexual e pederastas, adultos que
apesar de casados, se divertiam como tais escravos.
Na tradução João
Ferreira de Almeida assim traduz: "Não sabeis que os
injustos não hão de herdar o Reino de Deus? Não erreis: nem os
devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados,
nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados,
nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o Reino de Deus".
A Linguagem de Hoje:
"Com certeza vocês sabem que os maus não herdarão o Reino
de Deus. Não se enganem, não herdarão o Reino de Deus os imorais,
os que adoram ídolos, os adúlteros, os homossexuais, os ladrões,
os avarentos, os bêbados, os difamadores, os marginais".
A Nova versão
Internacional : "Vocês não sabem que os perversos não
herdarão o Reino de Deus? Não se deixem enganar, nem imorais, nem
idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem
ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem
trapaceiros herdarão o Reino de Deus".
Para quem não entendeu
ainda, os homossexuais não são somente polêmicos, são
revolucionários, e por serem assim eu já presenciei alguns que
decidiram se anular para voltarem à pseudo-aceitação de suas
famílias e de seus contextos sociais conservadores. É uma pena, mas
eu os compreendo de todo coração. Somente os liberais puderam
romper paradigmas, e dessa forma, mostrarem um novo horizonte nunca
antes visto. Não será com lentes que os conservadores nos dão que
conseguiremos enxergar essa liberdade, ou usando as próprias
palavras de Jesus, "não se remenda pano novo com roupa
velha". Reafirmar certo conservadorismo libertário ou
neo-ortodoxia para mim é contraproducente. Cuidado com as
mentalidades fundamentalistas, que vemos aparecerem por aí.
Afirmemos nossas vidas
e existências, mesmo que "pretensas Palavras de Deus" nos
digam o contrário, ou pretenciosos tradutores. Não precisamos
dessas quimeras e nem de novas traduções que nada mais sabem ser
que reflexos do senso comum da sociedade que tanto oprime e reprime
os gays, e estes, muitas vezes se vêem sem coragem ou ânimo para
exercerem o que de fato justifica suas vidas, que é a capacidade de
amar e ser amados. Ou seja, cada um sabe viver a simplicidade da
vida, não compliquemos.
Felicidade a todos.
Sobre o autor
Victor Orellana é Pastor
e Mestre espiritual.