quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Auto-aceitação - Sobre Guetos, Homofobia Internalizada, Heterossexualidade Presumida e o Sair do Armário


Por Paulo Stekel


Um dia, apoiamos a escravidão... Na Antiguidade, ela era socialmente aceita e os escravos eram de todas as raças, todos os povos, homens, mulheres e crianças. A Bíblia é tão conivente com a escravidão que possui inúmeras regras para o tratamento dos servos. Outros livros sagrados, como o Corão, seguiram a mesma linha. Quando nos damos conta de que há menos de 130 anos ainda havia escravos negros no Brasil, o mal-estar toma conta de nosso espírito...

Um dia, negamos às mulheres direitos mínimos... Desde a Antiguidade, as mulheres eram consideradas servas de seus maridos, propriedades deles, não tinham direito a voz, nem alma... Enfim, não tinham vida nem dignidade. Mais uma vez, a Bíblia e outros livros sagrados foram coniventes, perpetrando uma milenar misoginia religiosa que negou às mulheres a condição de seres humanos completos – algumas seitas indianas vixnuítas consideram a mulher um “meio ser”... Quando nos damos conta de que há menos de 100 anos as mulheres sequer podiam votar, nos envergonhamos...

Um dia, negamos aos gays, lésbicas, bissexuais e todos os “tipos” considerados “anormais”, “inadequados”, “pervertidos” ou “estranhos”, como os travestis e transexuais, qualquer liberdade (como antes, se negou aos escravos), qualquer dignidade e qualquer plenitude cidadã (como antes, se negou às mulheres)... Opa! Um dia? Não! Ainda se lhes nega muito disso, em maior ou menor grau, em todas as absolutas centenas de nações do mundo!

Os LGBT vivem, por conta desta negação de plenitude cidadã, em verdadeiros guetos sociais, à margem da liberdade de expressão, da alegria de viver, de trabalhar, de amar... Por conta do preconceito que todos SABEM que sofrerão, a homofobia internalizada se amplia e, cruel e paradoxalmente, muitos se fazem de algozes de seus iguais, amedrontados pela ideia de serem descobertos e, então, virarem a vítima da vez... Afinal, nos dias de hoje, quem não tem sua heterossexualidade presumida facilmente, é considerado um gay em potencial e, antes mesmo de qualquer confirmação, pode ver seu rosto estilhaçado por lâmpadas de neon, porretes e cusparadas indignadas de hipócritas fiscais do alheio...

Diante deste quadro, fica a pergunta crucial: Qual é a forma mais segura de sair do armário e de construir sua própria identidade sexual num mundo hipócrita que, ainda que não tolere manifestações abertas, vive uma sexualidade fora da própria norma que dita a todo o momento, como nós muito bem sabemos?

O grande problema da sociedade não são os atos, mas a revelação dos atos... Ao sair do armário, um gay sai do ato para sua revelação, e isso afronta a hipocrisia da sociedade. A prova disso é quando pastores evangélicos dizem que não são contra gays terem direitos, desde que façam seu sexo às escondidas, sem pleitearem visibilidade como um bloco em separado. Ou seja, pretendem que tudo continue ocorrendo, mas em segredo, hipocritamente, e sem dignidade... Ao exigir direitos, afrontamos a hipocrisia, o segredo e a inferioridade cidadã, onde não queremos nos encaixar, pois nascemos sob o mesmo sol... “Categorizações” não podem nos definir. Há os gays caricatos, os não-caricatos, os efeminados, os masculinizados, os assexuados, não importa. Por mais categorias que inventemos, elas nunca definirão a totalidade do que é ser LGBT! Mesmo a definição LGBT (e outras similares) é provisória e pode, um dia, quando discriminar um ser humano por sua orientação sexual for considerado abominável, vir a ser abolida. Mas, no momento, ela é útil e necessária. Mas, eu sei que eu não sou um LGBT(TTTXYZ...)! Eu sou simplesmente um SER HUMANO!

Também não sou homossexual, heterossexual ou bissexual, pois um ser humano não pode ser definido apenas por um aspecto de sua vida, o sexual. Há que diferenciar-se, por exemplo, as expressões “homossexualidade” e “homoafetividade”. Da mesma forma, seria adequado pensar-se em “heteroafetividade” mais que em “heterossexualidade”. Por que? Porque o que realmente determina a orientação sexual não é o gênero da outra pessoa com a qual se mantem relações sexuais, mas sim, existindo ou não o ato sexual, o gênero da outra pessoa pela qual se desenvolve um afeto mais profundo, o qual pode incluir aspectos sexuais. Em prisões, por exemplo, relações homossexuais são comuns, o que não significa que os envolvidos sejam gays. Na verdade, nestas situações, os envolvidos se dão a atos homossexuais, mas não estão orientados homoafetivamente. Ao contrário, um homem casado com uma mulher apenas para conformar-se às regras heteronormativas, mas que nutre uma afetividade toda orientada para indivíduos do mesmo sexo, uma homoafetividade que ele sufoca para que não chegue às vias de fato, é, indubitavelmente, gay. Uma pessoa que vivencia tal conflito pode facilmente cair na tendência da heterossexualidade presumida e agir violentamente contra gays por conta de sua homofobia internalizada.

A grande questão é: se o preconceito geral da sociedade heteronormativa com o diferente fosse menor ou inexistente, será que as coisas seriam melhores para quem padece de angústias e conflitos por causa de sua orientação sexual?

Ainda que cada caso seja um caso e nenhum ser humano vivencie sua sexualidade de forma igual a outro, creio que as coisas seriam melhores, sim. Afinal, se a aceitação fosse maior, o ambiente social seria mais amistoso aos gays e isso teria consequências diretas em sua saúde psicológica. Se gays pudessem se assumir sem constrangimentos; se não perdessem seus empregos por se assumirem; se pudessem se comportar como casais em público do mesmo modo que heterossexuais; se pudessem adotar crianças passando pelos mesmos critérios de habilitação de heterossexuais; se tivessem direito à união civil (popularmente chamada “casamento gay”) como qualquer casal não-gay; se tivessem seus direitos à integridade física, moral e psicológica garantidos quando são agredidos por serem gays; se pudessem tudo isso, então todo o sofrimento por serem “diferentes” da norma diminuiria.

Mas, antes de tudo, a auto-aceitação... Devemos aceitar ser quem somos, por mais que tenhamos dificuldade em colocar-nos dentro de uma categoria qualquer, pois, se não nos aceitarmos, o preconceito começará a partir de dentro de nós mesmos e contaminará o nosso entorno, voltando como o preconceito velado ou explícito que vemos todos os dias. Conhecer-se a si mesmo, aceitar-se como se é e agir sem medo são os passos-chave para a conquista da dignidade.

Ao manifestar o desejo de escrever este artigo, ainda no ano passado, pedi que alguns amigos da comunidade LGBT enviassem depoimentos sobre sua auto-aceitação e o sair do armário. Escolhi trechos de quatro deles para embasar os argumentos a seguir, mesclados com o meu próprio depoimento ao longo dos demais.

Depoimento 1: Maurilio

Desde pequenino eu já sentia uma atração por meninos, quando brincava com meus primos e amiguinhos da escola. (…) queria ficar perto dos meninos. Mas, como eu via meus pais falarem mal dos gays e lésbicas, eu sempre tive medo de ser um também. (…) Até que decidi entrar na Igreja pra ver se isso era coisa do demônio. (…) Fui durante 3 anos coroinha, e nada adiantou. Continuei sendo gay, mas não me assumia pra ninguém. Tinha medo de ser expulso de casa. (...) Tinha uns 9 anos e já era mais ou menos a ovelha negra da família, porque eu era bem afeminado (…) E, era uma coisa tão normal pra mim! Meus pais brigavam comigo por eu ser assim, mas eles também acreditavam que aquilo era coisa de criança e uma fase que iria passar. (…) Numa cidadezinha do Pernambuco onde nasci não tinha muitos gays ou pessoas assim. Quando um se assumia era uma coisa bombástica. A cidade inteira ficava comentando.

(…) Meu pai decidiu vir morar em São Paulo pra ver se amenizava os comentários sobre mim, e também pra tentar uma vida melhor. (…) Chegando aqui em São Paulo meu pai me falou que não era pra mim ficar andando com viado nem fazer amizade com essa gente, senão os bandidos iriam me matar. Eu, com muito medo, nem saía de casa. Mas, resolvi me assumir pros meus pais. (…) Meu pai logo falou: 'Vixe Maria! Vai pro inferno! Não quero isso aqui na minha casa, não!' Minha mãe, muito passiva, falou que não poderia fazer nada, pois ele sustentava a família. (…) Ele não me colocou pra fora de casa ainda, mas parou de falar comigo e de vez em quando soltava um 'patada', me esculachava, e isso ia doendo muito. Me sentia tão mal... Mas, tinha que continuar ali na casa dele, porque era o único lugar que eu tinha pra ficar.

Passaram-se umas duas semanas e a família começou a me criticar, a ir na minha casa só pra falar mal de mim pro meu pais, colocar mais lenha na fogueira. Desse dia em diante meu pai e meu irmão mais velho de 19 anos começaram a me bater todos os dias. Um olhar pro meu pai ou irmão já era motivo de briga. (…) Eu apanhava feito um saco de pancadas. Meu pai me batia com pau, jogava pedra, cinto, chinelo, fios de energia, enfim, tudo o que via pela frente. Me batia pra ver se eu virava homem. Mas, não teve jeito, continuei o mesmo. Daí, ele resolveu me colocar pra fora de casa. Dormi por várias vezes na rua. (…) Até que minha mãe mandou eu voltar pra casa novamente... Voltei pra casa.

Em uma balada na zona leste conheci um cara que me encantou, que me deu carinho, atenção, amor, sei lá. Foi uma coisa muito boa. Ele me tratou muito bem, fez as coisas que ninguém nunca tinha feito por mim. Então, começamos a namorar. Passaram-se uns 2 meses e resolvi contar pra minha mãe sobre o namoro com esse cara. (…) Mais uma vez meu pai, ao saber que eu estava namorando um homem, me colocou pra fora de casa e queimou minhas roupas. Não aguentei e fui morar com esse cara que estou até hoje, que me fez ver que eu nasci assim, que me ama do jeito que eu sou, que me disse que homossexualidade não é coisa do demônio, que eu também sou filho de Deus e sou digno de amor e carinho.

Desde então, ele tem me ajudado muito, e minha auto-aceitação começa daqui. Hoje eu bato no peito e tenho orgulho de dizer 'Eu sou gay'. (…) Hoje eu sou uma pessoa muito feliz e aliviado, pois sou assumido. Eu amo ser gay e, se fosse pra escolher, eu nasceria gay de novo!”

Comentário: O que aconteceu na vida de Maurilio tem acontecido na vida de centenas, milhares de gays pelo Brasil afora. Aqui no RS, onde moro, conheço vários casos de jovens postos para fora de casa ao assumirem sua homossexualidade. Homossexualidade, aliás, já percebida pela família e, enquanto escondida, tolerada, mas assim que expressada abertamente, odiada ao extremo. Meu histórico não é violento com o deste rapaz do Nordeste, mas passei por situações de preconceito sutil de parte do meu pai na infância e início da adolescência. A diferença é que comecei a trabalhar cedo, a me sustentar, e aos 17 anos já morava sozinho. A partir de então, pela filosofia de meu pai, ao sustentar-me, não lhe devia mais qualquer tipo de satisfação de minha vida, de modo que nunca foi “necessário” assumir-me para ele. Ele nunca foi um moralista – nem o poderia, com tantas mulheres que teve além de minha mãe – e disso aproveitei-me para evitar ali qualquer conflito desnecessário. Construí minha identidade a partir de minhas próprias experiências, de minha observação da vida e dos seres humanos, de minha espiritualidade e, principalmente, dos desejos, sentimentos e sensações mais íntimos, e isso tudo sem sentimento de culpa, sem hipocrisias, sem autoflagelação... Mas, sei que com muitos outros é diferente. Gays que sofrem mais preconceito saem da escola sem completar o estudo fundamental, possuem baixa auto-estima, vivem em subempregos, são presas da prostituição, das DSTs e das drogas, e raramente conseguem vislumbrar um futuro digno. Escapar a este quadro é realmente uma dádiva...

Depoimento 2: André

Tenho 35 anos, e me descobri gay desde criança. Com 04 anos de idade me lembro de sentir atração por um vizinho da mesma idade. Eu inventava brincadeiras com ele só pra ficar ao seu lado e tentava beijá-lo. Até que um dia fui surpreendido pela mãe do garoto que me recriminou, e fiquei um longo tempo com esse sentimento de que estava fazendo algo de errado.

Por volta dos 13 anos de idade, esse sentimento homossexual ressurgiu em um momento em que fui assediado por um conhecido de minha mãe. (…) A partir de então, percebi que eu não sentia atração pelo sexo feminino e comecei a ler sobre o assunto e a comprar clandestinamente revistas de temática gay pra me entender melhor. Também fui identificando entre meus amigos os que tinham a minha preferência sexual, e foram muitos.

A minha aceitação veio naturalmente, mas eu tinha vergonha de me assumir gay perante a família e alguns amigos. Só com 25 anos, quando conheci meu atual companheiro, foi que assumi minha sexualidade perante todos. O amor entre nós é muito forte até hoje, e foi o que me fez tomar coragem diante do preconceito dos outros. Sofri preconceito velado de minha mãe e escancarado do meu irmão.

Mas, ainda assim, persisti na minha condição e enfrentei tudo em nome do meu amor. Não me arrependi em nenhum momento, e conheci pessoas durante essa jornada que me encorajaram a tomar essa decisão.”

Comentário: Este depoimento tem algo em comum com meu histórico, pois também me assumi para os demais apenas com 25 anos. Mas, a primeira vez que senti atração inegável por alguém do mesmo sexo, tinha 19 anos. Digo isso, porque tivera outras experiências na adolescência, por volta dos 13 ou 14 anos e até antes, mas estavam mais relacionadas a curiosidades de meninos do que a sentimentos mais profundos ou orientação sexual. Mesmo porque meus dois irmãos tiveram as mesmas experiências e nenhum deles é gay. Contudo, aos 19 anos, ao ver um amigo seminu, a sensação que tive não me deixou mais dúvidas: os homens me atraíam mais que as mulheres. Mesmo assim, casei-me com uma mulher aos 26 anos, mas a experiência durou somente um ano e meio. Ela tivera relações com uma menina mais velha quando era pré-adolescente, e isso serviu para que tivesse certeza de que lhe interessavam os homens, e não as mulheres. Mas, era uma pessoa sem preconceitos, o que facilitou bastante o processo de separação, de modo que somos amigos até hoje.

Depoimento 3: Daniel

Meu nome é Daniel, tenho 21 anos, e moro com meus pais em Canoas – RS. Me assumi ao completar 18 anos, exatamente no dia do meu aniversário, com a intenção de que fosse algo que eu jamais esquecesse. Foi mais ou menos assim: eu e minha mãe terminamos de almoçar, sentei
junto a ela que estava a ainda na mesa, e disse: 'Mãe, quero lhe dizer uma coisa!' Ela, sem entender, disse: 'Fala!' Eu, engasgado: '...Eu não sou hétero...' (usei um termo que me senti aliviado em falar, sabendo que ela não entendera claramente) 'Eu sou bissexual... Fico com homem e com mulher.' Nesse momento de extremo nervosismo me senti largando uma pedra que eu carregava todos os dias. Ela se manteve calada, depois disse: 'Tu vais continuar sendo meu filho... Eu te amo...'

Eu pensei que não tinha sido tão ruim assim, mas foi apenas o começo de um longo tempo de luta por respeito e direito pelo qual eu luto até hoje. Pois, no decorrer dos dias, respirar era motivo de briga e discussão, e isso praticamente durou uns 7 meses ou mais! Neste mês completa 3 anos que me assumi para minha mãe, que ainda diz NÃO ACEITAR, mas respeita. E, é algo que eu trabalho todos os dias com ela, o respeito.”

Comentário: Os jovens gays estão se assumindo para a família cada vez mais cedo. Em minha época – eu já tenho 42 anos, gente! – os gays se assumiam lá pelos 25 ou 30 anos. Agora, alguns estão se assumindo aos 15 ou 16 anos, como já vi diversas vezes. Isso reflete a precocidade geral da sociedade. Os adolescentes – héteros ou gays – começam a namorar cada vez mais novos. É natural, portanto, que venham a se assumir precocemente. E, isso é bom? Creio que sim. Isso inicia o processo de auto-aceitação mais cedo também. Quanto mais pessoas de bem com sua sexualidade tivermos, mais “almas” ganhamos para a aceitação da diversidade sexual, se é que me entendem. Quando contei para minha mãe, ela disse já saber sobre minha sexualidade e, num primeiro momento, isso não acarretou problema algum. Mas, à medida que ela foi se tornando evangélica, o preconceito começou a minar sua mente, mas ela manteve seus pensamentos medievais em segredo. Quando um de meus irmãos morreu, a verdade veio à tona: Malafaia a havia contaminado com seu discurso fétido e diabólico! Apenas uma “terapia de choque” poderia corrigir isso. Por sorte, o restante da família materna não padece de homofobia, de modo que esse pessoal foi o responsável pela “terapia” da qual ela necessitava para sair da Idade Média e acordar no Século XXI... No momento, está sob observação...

Depoimento 4: Walter

Aconteceu quando tinha oito anos; estava ficando escuro e eu no meio daquelas crianças na rua. Um menino da minha idade se aproximou e segurou a minha mão. Foi um gesto de afeto espontâneo e natural entre crianças e foi também o momento em que eu senti uma onda de calor, aconchego e amor incomparáveis; aquilo foi mais gostoso que o toque da minha mãe, mais gostoso que chocolate e iogurte de morango, mais gostoso que o toque das meninas. Ele apertou suavemente minha mão na dele; e segurou transmitindo máscula sensação de proteção.

(…) Não houve, portanto, um trauma, um abuso ou a ausência de algo e de alguém; eu tive pai, dois irmãos, mãe, tios, primos, tias, avós, inúmeros modelos masculinos e possibilidades de integração e identificação heterossexual.

Entretanto, naquela época eu não sabia nada sobre homossexualidade; nordestino, criado em famílias de antigas linhagens patriarcais e católicas, morando em um município onde a televisão a cores era novidade das casas mais abastadas, eu só vi homossexuais em programas de humor, e
entendia mais ou menos que aquele personagem era um tipo de bufão ou palhaço de circo.

Foi a religião que me apresentou a primeira definição de homossexualidade; infelizmente para mim a definição distorcida. Lembro bem que as palavras da Bíblia 'de fora estarão os afeminados e os homens que se deitam com homens' me deixou viva e dolorosa impressão na alma. Eu ia para o inferno e nem sabia exatamente por que.

E lembro-me do terror de ter de esconder dos meus pais que eu era um criminoso igual a um assassino; um viado, um proscrito e alguém sem honra e sem lugar em parte alguma. A sensação de não pertencer a nada sempre recorrente; eu não era mulher e, portanto, não podia sentir atração por homens. Por outro lado, eu não era homem, porque não sentia atração por mulher.

Percorri então a minha Via Crucis; aos doze anos já tinha sinais de depressão, aos dezesseis pensava seriamente em me matar. Deixei a escola, parei de tomar banho, me tranquei dentro de casa. Chorava horas a fio no quarto ou chorava no quintal, entre as árvores e o jardim. Meus pais primeiro se zangaram depois se alarmaram depois se acostumaram.

Não tive coragem de contar sobre minha homossexualidade nem para a psicóloga que eles me arrumaram; não confiava a ninguém aquele segredo monstruoso. Eu tinha vergonha de mim, e tinha nojo. E queria ser igual aos outros garotos.

Foi a psicóloga, porém, que me ajudou inadvertidamente; às vezes ela me dava algumas revistas e livros para ler e numa dessas revistas eu vi uma matéria sobre homossexualidade. O singelo artigo me pareceu extraordinário e me atingiu de forma impactante e inesquecível; dizia que sentir atração pelo mesmo sexo não era doença, nem algo negativo, que homossexuais eram pessoas comuns e que não existia tratamento porque não havia o que curar.

Fui buscar mais informações sobre o assunto; nesse período um boato sobre um ídolo da televisão e dos cinemas, Keanu Reeves, me deixou boquiaberto. Keanu era homossexual e eu queria ser igual a ele.

Lentamente, pois, mais de modo constante, outras salvíticas histórias chegaram até mim viajando através de livros, revistas, seriados e filmes, e no geral pintando uma imagem simpática dos homossexuais, diferentemente dos anos anteriores.

Um sopro de esperança começou a me curar e de dentro da escuridão e desespero da ausência de identidade, eu nasci de novo; uma gestação demorada no ventre dos meus sonhos homoeróticos.

Primeiro surgiu a aspiração cândida do romance com alguém do mesmo sexo; depois o desejo sexual aflorou sem culpa e eu tive meu primeiro orgasmo desprovido de arrependimento. Eu suspirei de alívio; eu era normal, saudável, bonito, estava no lugar certo, eu pertencia a algo.

Decidi então contar para as pessoas que eu era gay. Foi a coisa mais difícil que já fiz, mas depois de fazê-la, abri uma porta que nunca mais se fechou; eu me tornei outro homem, eu pisei firme no
chão, eu ergui os olhos para encarar as pessoas, eu me tornei senhor de mim mesmo, eu digo quem eu sou, as cartas são minhas, ganhando ou perdendo.

Estou recuperando quase tudo que a homofobia cultural, institucional e individual me roubou na vida; há ocasiões em que parece que várias etapas do caminho se cruzam e se confundem por causa do tempo perdido. Sou homem adulto, e também sou menino.

O arrependimento é inútil para mim agora; só me serve o que tenho e o que eu sou neste momento. E o que eu tenho é orgulho, e o que sou é um homem gay."

Comentário: Ah, como este depoimento inspira! Walter Silva – sim, ele não só permitiu, como fez questão da revelação de seu nome – tem, em minha opinião, um dos melhores textos sobre orientação sexual no Brasil. Ele, paraibano, eu, gaúcho, temos em Keanu Reeves um mesmo referencial – também tenho um referencial no falecido River Phoenix, colega de Reeves no filme “Garotos de Programa” (My Own Private Idaho), de 1991. Foi conversando sobre Reeves e Phoenix, este último encontrado morto em 1993 e apenas dois dias mais velho que eu (Phoenix nasceu em 23 de agosto de 1970, e eu no dia 25 de agosto do mesmo ano), que em 1993 iniciou-se meu processo de sair do armário. O objeto de meu amor naquela época também estava a descobrir-se, mas, infelizmente, até sua morte trágica em um acidente de carro, em 2011, não conseguira escancarar o armário... Mas, ensinou-me muito sobre o que é amar alguém do mesmo sexo sem sequer dizer uma palavra sobre o assunto e sem convencionar rótulos... e sem consumar fisicamente este amor... A ausência de tudo isso não conseguia abafar a realidade que ali se percebia... e que as almas entendiam em seus próprios termos... Ele, não conseguia se imaginar assumindo algo que já estava muito claro. Eu, não conseguia imaginar criar um gueto para algo que queria compartilhar com o mundo. Venceu, no mundo relativo, a homofobia paterna. No mundo absoluto, reinou o amor, gritando aos corações que nem a morte pode abafá-lo... O amor é como o elétron, segundo a Física Quântica: deixa marcas eternas por onde passa... Hoje, tais marcas me servem muito bem e as transformei em pilares de sabedoria, compaixão e sinceridade para comigo mesmo.

Então, agora posso dizer: Sou gay e não tenho vergonha de assumir isso para ninguém. E, você, tem coragem de assumir isso também? Ou se mantém num gueto social, simulando uma heterossexualidade que não convence a ninguém? Ou prefere ceder à homofobia internalizada, um modo grosseiro e falho de abafar em si o que vê manifestado em outros? Ou prefere deixar o armário trancafiado a sete chaves, seguindo pela vida infeliz, sem dignidade, sem poder expressar-se em plenitude e, pior de tudo, sem poder amar com toda a sua alma? Desculpe, mas amor e alma são sinônimos. Se você não consegue expressar um, não possui o outro. É um “carma” que impõe a si mesmo, mas que ninguém lhe imputou. Incomoda-lhe a auto-afirmação dos demais? Seja corajoso como eles, então! Afinal, ao incomodar-se com a auto-aceitação alheia, algo lhe atingiu indelevelmente. Você é quem deve decidir se isso será libertador ou uma prisão...

Sair do armário, assumir-se, deve ser produto de muita elaboração mas, principalmente, de um estado de sinceridade tal consigo mesmo que todos os sentimentos, sensações e desejos sejam devidamente expressados, sem obscurecimentos moralistas, escapistas ou enganosos. Não se trata de escolher uma sigla para sua sexualidade, ou algum modelo didático daqueles defendidos por organizações pró-LGBT, mas antes, de saber o que nos atrai de fato. Não há limitações no amor. Ele não depende de siglas. O amor não é uma regra moral, nem mesmo ética. É alma, é vida e mantenedor de vida. Ele deve melhorar nossa auto-estima, não rebaixá-la. Converse com as pessoas na base do amor mais profundo, e seu ativismo será extremamente perigoso para a homofobia reinante, abrindo horizontes, libertando escravos e permitindo gozos... Abaixo a clandestinidade, viva a revelação! Quem deve se acostumar com sua essência são os outros; a você, cabe expressá-la e ser feliz!


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