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quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Auto-aceitação - Sobre Guetos, Homofobia Internalizada, Heterossexualidade Presumida e o Sair do Armário


Por Paulo Stekel


Um dia, apoiamos a escravidão... Na Antiguidade, ela era socialmente aceita e os escravos eram de todas as raças, todos os povos, homens, mulheres e crianças. A Bíblia é tão conivente com a escravidão que possui inúmeras regras para o tratamento dos servos. Outros livros sagrados, como o Corão, seguiram a mesma linha. Quando nos damos conta de que há menos de 130 anos ainda havia escravos negros no Brasil, o mal-estar toma conta de nosso espírito...

Um dia, negamos às mulheres direitos mínimos... Desde a Antiguidade, as mulheres eram consideradas servas de seus maridos, propriedades deles, não tinham direito a voz, nem alma... Enfim, não tinham vida nem dignidade. Mais uma vez, a Bíblia e outros livros sagrados foram coniventes, perpetrando uma milenar misoginia religiosa que negou às mulheres a condição de seres humanos completos – algumas seitas indianas vixnuítas consideram a mulher um “meio ser”... Quando nos damos conta de que há menos de 100 anos as mulheres sequer podiam votar, nos envergonhamos...

Um dia, negamos aos gays, lésbicas, bissexuais e todos os “tipos” considerados “anormais”, “inadequados”, “pervertidos” ou “estranhos”, como os travestis e transexuais, qualquer liberdade (como antes, se negou aos escravos), qualquer dignidade e qualquer plenitude cidadã (como antes, se negou às mulheres)... Opa! Um dia? Não! Ainda se lhes nega muito disso, em maior ou menor grau, em todas as absolutas centenas de nações do mundo!

Os LGBT vivem, por conta desta negação de plenitude cidadã, em verdadeiros guetos sociais, à margem da liberdade de expressão, da alegria de viver, de trabalhar, de amar... Por conta do preconceito que todos SABEM que sofrerão, a homofobia internalizada se amplia e, cruel e paradoxalmente, muitos se fazem de algozes de seus iguais, amedrontados pela ideia de serem descobertos e, então, virarem a vítima da vez... Afinal, nos dias de hoje, quem não tem sua heterossexualidade presumida facilmente, é considerado um gay em potencial e, antes mesmo de qualquer confirmação, pode ver seu rosto estilhaçado por lâmpadas de neon, porretes e cusparadas indignadas de hipócritas fiscais do alheio...

Diante deste quadro, fica a pergunta crucial: Qual é a forma mais segura de sair do armário e de construir sua própria identidade sexual num mundo hipócrita que, ainda que não tolere manifestações abertas, vive uma sexualidade fora da própria norma que dita a todo o momento, como nós muito bem sabemos?

O grande problema da sociedade não são os atos, mas a revelação dos atos... Ao sair do armário, um gay sai do ato para sua revelação, e isso afronta a hipocrisia da sociedade. A prova disso é quando pastores evangélicos dizem que não são contra gays terem direitos, desde que façam seu sexo às escondidas, sem pleitearem visibilidade como um bloco em separado. Ou seja, pretendem que tudo continue ocorrendo, mas em segredo, hipocritamente, e sem dignidade... Ao exigir direitos, afrontamos a hipocrisia, o segredo e a inferioridade cidadã, onde não queremos nos encaixar, pois nascemos sob o mesmo sol... “Categorizações” não podem nos definir. Há os gays caricatos, os não-caricatos, os efeminados, os masculinizados, os assexuados, não importa. Por mais categorias que inventemos, elas nunca definirão a totalidade do que é ser LGBT! Mesmo a definição LGBT (e outras similares) é provisória e pode, um dia, quando discriminar um ser humano por sua orientação sexual for considerado abominável, vir a ser abolida. Mas, no momento, ela é útil e necessária. Mas, eu sei que eu não sou um LGBT(TTTXYZ...)! Eu sou simplesmente um SER HUMANO!

Também não sou homossexual, heterossexual ou bissexual, pois um ser humano não pode ser definido apenas por um aspecto de sua vida, o sexual. Há que diferenciar-se, por exemplo, as expressões “homossexualidade” e “homoafetividade”. Da mesma forma, seria adequado pensar-se em “heteroafetividade” mais que em “heterossexualidade”. Por que? Porque o que realmente determina a orientação sexual não é o gênero da outra pessoa com a qual se mantem relações sexuais, mas sim, existindo ou não o ato sexual, o gênero da outra pessoa pela qual se desenvolve um afeto mais profundo, o qual pode incluir aspectos sexuais. Em prisões, por exemplo, relações homossexuais são comuns, o que não significa que os envolvidos sejam gays. Na verdade, nestas situações, os envolvidos se dão a atos homossexuais, mas não estão orientados homoafetivamente. Ao contrário, um homem casado com uma mulher apenas para conformar-se às regras heteronormativas, mas que nutre uma afetividade toda orientada para indivíduos do mesmo sexo, uma homoafetividade que ele sufoca para que não chegue às vias de fato, é, indubitavelmente, gay. Uma pessoa que vivencia tal conflito pode facilmente cair na tendência da heterossexualidade presumida e agir violentamente contra gays por conta de sua homofobia internalizada.

A grande questão é: se o preconceito geral da sociedade heteronormativa com o diferente fosse menor ou inexistente, será que as coisas seriam melhores para quem padece de angústias e conflitos por causa de sua orientação sexual?

Ainda que cada caso seja um caso e nenhum ser humano vivencie sua sexualidade de forma igual a outro, creio que as coisas seriam melhores, sim. Afinal, se a aceitação fosse maior, o ambiente social seria mais amistoso aos gays e isso teria consequências diretas em sua saúde psicológica. Se gays pudessem se assumir sem constrangimentos; se não perdessem seus empregos por se assumirem; se pudessem se comportar como casais em público do mesmo modo que heterossexuais; se pudessem adotar crianças passando pelos mesmos critérios de habilitação de heterossexuais; se tivessem direito à união civil (popularmente chamada “casamento gay”) como qualquer casal não-gay; se tivessem seus direitos à integridade física, moral e psicológica garantidos quando são agredidos por serem gays; se pudessem tudo isso, então todo o sofrimento por serem “diferentes” da norma diminuiria.

Mas, antes de tudo, a auto-aceitação... Devemos aceitar ser quem somos, por mais que tenhamos dificuldade em colocar-nos dentro de uma categoria qualquer, pois, se não nos aceitarmos, o preconceito começará a partir de dentro de nós mesmos e contaminará o nosso entorno, voltando como o preconceito velado ou explícito que vemos todos os dias. Conhecer-se a si mesmo, aceitar-se como se é e agir sem medo são os passos-chave para a conquista da dignidade.

Ao manifestar o desejo de escrever este artigo, ainda no ano passado, pedi que alguns amigos da comunidade LGBT enviassem depoimentos sobre sua auto-aceitação e o sair do armário. Escolhi trechos de quatro deles para embasar os argumentos a seguir, mesclados com o meu próprio depoimento ao longo dos demais.

Depoimento 1: Maurilio

Desde pequenino eu já sentia uma atração por meninos, quando brincava com meus primos e amiguinhos da escola. (…) queria ficar perto dos meninos. Mas, como eu via meus pais falarem mal dos gays e lésbicas, eu sempre tive medo de ser um também. (…) Até que decidi entrar na Igreja pra ver se isso era coisa do demônio. (…) Fui durante 3 anos coroinha, e nada adiantou. Continuei sendo gay, mas não me assumia pra ninguém. Tinha medo de ser expulso de casa. (...) Tinha uns 9 anos e já era mais ou menos a ovelha negra da família, porque eu era bem afeminado (…) E, era uma coisa tão normal pra mim! Meus pais brigavam comigo por eu ser assim, mas eles também acreditavam que aquilo era coisa de criança e uma fase que iria passar. (…) Numa cidadezinha do Pernambuco onde nasci não tinha muitos gays ou pessoas assim. Quando um se assumia era uma coisa bombástica. A cidade inteira ficava comentando.

(…) Meu pai decidiu vir morar em São Paulo pra ver se amenizava os comentários sobre mim, e também pra tentar uma vida melhor. (…) Chegando aqui em São Paulo meu pai me falou que não era pra mim ficar andando com viado nem fazer amizade com essa gente, senão os bandidos iriam me matar. Eu, com muito medo, nem saía de casa. Mas, resolvi me assumir pros meus pais. (…) Meu pai logo falou: 'Vixe Maria! Vai pro inferno! Não quero isso aqui na minha casa, não!' Minha mãe, muito passiva, falou que não poderia fazer nada, pois ele sustentava a família. (…) Ele não me colocou pra fora de casa ainda, mas parou de falar comigo e de vez em quando soltava um 'patada', me esculachava, e isso ia doendo muito. Me sentia tão mal... Mas, tinha que continuar ali na casa dele, porque era o único lugar que eu tinha pra ficar.

Passaram-se umas duas semanas e a família começou a me criticar, a ir na minha casa só pra falar mal de mim pro meu pais, colocar mais lenha na fogueira. Desse dia em diante meu pai e meu irmão mais velho de 19 anos começaram a me bater todos os dias. Um olhar pro meu pai ou irmão já era motivo de briga. (…) Eu apanhava feito um saco de pancadas. Meu pai me batia com pau, jogava pedra, cinto, chinelo, fios de energia, enfim, tudo o que via pela frente. Me batia pra ver se eu virava homem. Mas, não teve jeito, continuei o mesmo. Daí, ele resolveu me colocar pra fora de casa. Dormi por várias vezes na rua. (…) Até que minha mãe mandou eu voltar pra casa novamente... Voltei pra casa.

Em uma balada na zona leste conheci um cara que me encantou, que me deu carinho, atenção, amor, sei lá. Foi uma coisa muito boa. Ele me tratou muito bem, fez as coisas que ninguém nunca tinha feito por mim. Então, começamos a namorar. Passaram-se uns 2 meses e resolvi contar pra minha mãe sobre o namoro com esse cara. (…) Mais uma vez meu pai, ao saber que eu estava namorando um homem, me colocou pra fora de casa e queimou minhas roupas. Não aguentei e fui morar com esse cara que estou até hoje, que me fez ver que eu nasci assim, que me ama do jeito que eu sou, que me disse que homossexualidade não é coisa do demônio, que eu também sou filho de Deus e sou digno de amor e carinho.

Desde então, ele tem me ajudado muito, e minha auto-aceitação começa daqui. Hoje eu bato no peito e tenho orgulho de dizer 'Eu sou gay'. (…) Hoje eu sou uma pessoa muito feliz e aliviado, pois sou assumido. Eu amo ser gay e, se fosse pra escolher, eu nasceria gay de novo!”

Comentário: O que aconteceu na vida de Maurilio tem acontecido na vida de centenas, milhares de gays pelo Brasil afora. Aqui no RS, onde moro, conheço vários casos de jovens postos para fora de casa ao assumirem sua homossexualidade. Homossexualidade, aliás, já percebida pela família e, enquanto escondida, tolerada, mas assim que expressada abertamente, odiada ao extremo. Meu histórico não é violento com o deste rapaz do Nordeste, mas passei por situações de preconceito sutil de parte do meu pai na infância e início da adolescência. A diferença é que comecei a trabalhar cedo, a me sustentar, e aos 17 anos já morava sozinho. A partir de então, pela filosofia de meu pai, ao sustentar-me, não lhe devia mais qualquer tipo de satisfação de minha vida, de modo que nunca foi “necessário” assumir-me para ele. Ele nunca foi um moralista – nem o poderia, com tantas mulheres que teve além de minha mãe – e disso aproveitei-me para evitar ali qualquer conflito desnecessário. Construí minha identidade a partir de minhas próprias experiências, de minha observação da vida e dos seres humanos, de minha espiritualidade e, principalmente, dos desejos, sentimentos e sensações mais íntimos, e isso tudo sem sentimento de culpa, sem hipocrisias, sem autoflagelação... Mas, sei que com muitos outros é diferente. Gays que sofrem mais preconceito saem da escola sem completar o estudo fundamental, possuem baixa auto-estima, vivem em subempregos, são presas da prostituição, das DSTs e das drogas, e raramente conseguem vislumbrar um futuro digno. Escapar a este quadro é realmente uma dádiva...

Depoimento 2: André

Tenho 35 anos, e me descobri gay desde criança. Com 04 anos de idade me lembro de sentir atração por um vizinho da mesma idade. Eu inventava brincadeiras com ele só pra ficar ao seu lado e tentava beijá-lo. Até que um dia fui surpreendido pela mãe do garoto que me recriminou, e fiquei um longo tempo com esse sentimento de que estava fazendo algo de errado.

Por volta dos 13 anos de idade, esse sentimento homossexual ressurgiu em um momento em que fui assediado por um conhecido de minha mãe. (…) A partir de então, percebi que eu não sentia atração pelo sexo feminino e comecei a ler sobre o assunto e a comprar clandestinamente revistas de temática gay pra me entender melhor. Também fui identificando entre meus amigos os que tinham a minha preferência sexual, e foram muitos.

A minha aceitação veio naturalmente, mas eu tinha vergonha de me assumir gay perante a família e alguns amigos. Só com 25 anos, quando conheci meu atual companheiro, foi que assumi minha sexualidade perante todos. O amor entre nós é muito forte até hoje, e foi o que me fez tomar coragem diante do preconceito dos outros. Sofri preconceito velado de minha mãe e escancarado do meu irmão.

Mas, ainda assim, persisti na minha condição e enfrentei tudo em nome do meu amor. Não me arrependi em nenhum momento, e conheci pessoas durante essa jornada que me encorajaram a tomar essa decisão.”

Comentário: Este depoimento tem algo em comum com meu histórico, pois também me assumi para os demais apenas com 25 anos. Mas, a primeira vez que senti atração inegável por alguém do mesmo sexo, tinha 19 anos. Digo isso, porque tivera outras experiências na adolescência, por volta dos 13 ou 14 anos e até antes, mas estavam mais relacionadas a curiosidades de meninos do que a sentimentos mais profundos ou orientação sexual. Mesmo porque meus dois irmãos tiveram as mesmas experiências e nenhum deles é gay. Contudo, aos 19 anos, ao ver um amigo seminu, a sensação que tive não me deixou mais dúvidas: os homens me atraíam mais que as mulheres. Mesmo assim, casei-me com uma mulher aos 26 anos, mas a experiência durou somente um ano e meio. Ela tivera relações com uma menina mais velha quando era pré-adolescente, e isso serviu para que tivesse certeza de que lhe interessavam os homens, e não as mulheres. Mas, era uma pessoa sem preconceitos, o que facilitou bastante o processo de separação, de modo que somos amigos até hoje.

Depoimento 3: Daniel

Meu nome é Daniel, tenho 21 anos, e moro com meus pais em Canoas – RS. Me assumi ao completar 18 anos, exatamente no dia do meu aniversário, com a intenção de que fosse algo que eu jamais esquecesse. Foi mais ou menos assim: eu e minha mãe terminamos de almoçar, sentei
junto a ela que estava a ainda na mesa, e disse: 'Mãe, quero lhe dizer uma coisa!' Ela, sem entender, disse: 'Fala!' Eu, engasgado: '...Eu não sou hétero...' (usei um termo que me senti aliviado em falar, sabendo que ela não entendera claramente) 'Eu sou bissexual... Fico com homem e com mulher.' Nesse momento de extremo nervosismo me senti largando uma pedra que eu carregava todos os dias. Ela se manteve calada, depois disse: 'Tu vais continuar sendo meu filho... Eu te amo...'

Eu pensei que não tinha sido tão ruim assim, mas foi apenas o começo de um longo tempo de luta por respeito e direito pelo qual eu luto até hoje. Pois, no decorrer dos dias, respirar era motivo de briga e discussão, e isso praticamente durou uns 7 meses ou mais! Neste mês completa 3 anos que me assumi para minha mãe, que ainda diz NÃO ACEITAR, mas respeita. E, é algo que eu trabalho todos os dias com ela, o respeito.”

Comentário: Os jovens gays estão se assumindo para a família cada vez mais cedo. Em minha época – eu já tenho 42 anos, gente! – os gays se assumiam lá pelos 25 ou 30 anos. Agora, alguns estão se assumindo aos 15 ou 16 anos, como já vi diversas vezes. Isso reflete a precocidade geral da sociedade. Os adolescentes – héteros ou gays – começam a namorar cada vez mais novos. É natural, portanto, que venham a se assumir precocemente. E, isso é bom? Creio que sim. Isso inicia o processo de auto-aceitação mais cedo também. Quanto mais pessoas de bem com sua sexualidade tivermos, mais “almas” ganhamos para a aceitação da diversidade sexual, se é que me entendem. Quando contei para minha mãe, ela disse já saber sobre minha sexualidade e, num primeiro momento, isso não acarretou problema algum. Mas, à medida que ela foi se tornando evangélica, o preconceito começou a minar sua mente, mas ela manteve seus pensamentos medievais em segredo. Quando um de meus irmãos morreu, a verdade veio à tona: Malafaia a havia contaminado com seu discurso fétido e diabólico! Apenas uma “terapia de choque” poderia corrigir isso. Por sorte, o restante da família materna não padece de homofobia, de modo que esse pessoal foi o responsável pela “terapia” da qual ela necessitava para sair da Idade Média e acordar no Século XXI... No momento, está sob observação...

Depoimento 4: Walter

Aconteceu quando tinha oito anos; estava ficando escuro e eu no meio daquelas crianças na rua. Um menino da minha idade se aproximou e segurou a minha mão. Foi um gesto de afeto espontâneo e natural entre crianças e foi também o momento em que eu senti uma onda de calor, aconchego e amor incomparáveis; aquilo foi mais gostoso que o toque da minha mãe, mais gostoso que chocolate e iogurte de morango, mais gostoso que o toque das meninas. Ele apertou suavemente minha mão na dele; e segurou transmitindo máscula sensação de proteção.

(…) Não houve, portanto, um trauma, um abuso ou a ausência de algo e de alguém; eu tive pai, dois irmãos, mãe, tios, primos, tias, avós, inúmeros modelos masculinos e possibilidades de integração e identificação heterossexual.

Entretanto, naquela época eu não sabia nada sobre homossexualidade; nordestino, criado em famílias de antigas linhagens patriarcais e católicas, morando em um município onde a televisão a cores era novidade das casas mais abastadas, eu só vi homossexuais em programas de humor, e
entendia mais ou menos que aquele personagem era um tipo de bufão ou palhaço de circo.

Foi a religião que me apresentou a primeira definição de homossexualidade; infelizmente para mim a definição distorcida. Lembro bem que as palavras da Bíblia 'de fora estarão os afeminados e os homens que se deitam com homens' me deixou viva e dolorosa impressão na alma. Eu ia para o inferno e nem sabia exatamente por que.

E lembro-me do terror de ter de esconder dos meus pais que eu era um criminoso igual a um assassino; um viado, um proscrito e alguém sem honra e sem lugar em parte alguma. A sensação de não pertencer a nada sempre recorrente; eu não era mulher e, portanto, não podia sentir atração por homens. Por outro lado, eu não era homem, porque não sentia atração por mulher.

Percorri então a minha Via Crucis; aos doze anos já tinha sinais de depressão, aos dezesseis pensava seriamente em me matar. Deixei a escola, parei de tomar banho, me tranquei dentro de casa. Chorava horas a fio no quarto ou chorava no quintal, entre as árvores e o jardim. Meus pais primeiro se zangaram depois se alarmaram depois se acostumaram.

Não tive coragem de contar sobre minha homossexualidade nem para a psicóloga que eles me arrumaram; não confiava a ninguém aquele segredo monstruoso. Eu tinha vergonha de mim, e tinha nojo. E queria ser igual aos outros garotos.

Foi a psicóloga, porém, que me ajudou inadvertidamente; às vezes ela me dava algumas revistas e livros para ler e numa dessas revistas eu vi uma matéria sobre homossexualidade. O singelo artigo me pareceu extraordinário e me atingiu de forma impactante e inesquecível; dizia que sentir atração pelo mesmo sexo não era doença, nem algo negativo, que homossexuais eram pessoas comuns e que não existia tratamento porque não havia o que curar.

Fui buscar mais informações sobre o assunto; nesse período um boato sobre um ídolo da televisão e dos cinemas, Keanu Reeves, me deixou boquiaberto. Keanu era homossexual e eu queria ser igual a ele.

Lentamente, pois, mais de modo constante, outras salvíticas histórias chegaram até mim viajando através de livros, revistas, seriados e filmes, e no geral pintando uma imagem simpática dos homossexuais, diferentemente dos anos anteriores.

Um sopro de esperança começou a me curar e de dentro da escuridão e desespero da ausência de identidade, eu nasci de novo; uma gestação demorada no ventre dos meus sonhos homoeróticos.

Primeiro surgiu a aspiração cândida do romance com alguém do mesmo sexo; depois o desejo sexual aflorou sem culpa e eu tive meu primeiro orgasmo desprovido de arrependimento. Eu suspirei de alívio; eu era normal, saudável, bonito, estava no lugar certo, eu pertencia a algo.

Decidi então contar para as pessoas que eu era gay. Foi a coisa mais difícil que já fiz, mas depois de fazê-la, abri uma porta que nunca mais se fechou; eu me tornei outro homem, eu pisei firme no
chão, eu ergui os olhos para encarar as pessoas, eu me tornei senhor de mim mesmo, eu digo quem eu sou, as cartas são minhas, ganhando ou perdendo.

Estou recuperando quase tudo que a homofobia cultural, institucional e individual me roubou na vida; há ocasiões em que parece que várias etapas do caminho se cruzam e se confundem por causa do tempo perdido. Sou homem adulto, e também sou menino.

O arrependimento é inútil para mim agora; só me serve o que tenho e o que eu sou neste momento. E o que eu tenho é orgulho, e o que sou é um homem gay."

Comentário: Ah, como este depoimento inspira! Walter Silva – sim, ele não só permitiu, como fez questão da revelação de seu nome – tem, em minha opinião, um dos melhores textos sobre orientação sexual no Brasil. Ele, paraibano, eu, gaúcho, temos em Keanu Reeves um mesmo referencial – também tenho um referencial no falecido River Phoenix, colega de Reeves no filme “Garotos de Programa” (My Own Private Idaho), de 1991. Foi conversando sobre Reeves e Phoenix, este último encontrado morto em 1993 e apenas dois dias mais velho que eu (Phoenix nasceu em 23 de agosto de 1970, e eu no dia 25 de agosto do mesmo ano), que em 1993 iniciou-se meu processo de sair do armário. O objeto de meu amor naquela época também estava a descobrir-se, mas, infelizmente, até sua morte trágica em um acidente de carro, em 2011, não conseguira escancarar o armário... Mas, ensinou-me muito sobre o que é amar alguém do mesmo sexo sem sequer dizer uma palavra sobre o assunto e sem convencionar rótulos... e sem consumar fisicamente este amor... A ausência de tudo isso não conseguia abafar a realidade que ali se percebia... e que as almas entendiam em seus próprios termos... Ele, não conseguia se imaginar assumindo algo que já estava muito claro. Eu, não conseguia imaginar criar um gueto para algo que queria compartilhar com o mundo. Venceu, no mundo relativo, a homofobia paterna. No mundo absoluto, reinou o amor, gritando aos corações que nem a morte pode abafá-lo... O amor é como o elétron, segundo a Física Quântica: deixa marcas eternas por onde passa... Hoje, tais marcas me servem muito bem e as transformei em pilares de sabedoria, compaixão e sinceridade para comigo mesmo.

Então, agora posso dizer: Sou gay e não tenho vergonha de assumir isso para ninguém. E, você, tem coragem de assumir isso também? Ou se mantém num gueto social, simulando uma heterossexualidade que não convence a ninguém? Ou prefere ceder à homofobia internalizada, um modo grosseiro e falho de abafar em si o que vê manifestado em outros? Ou prefere deixar o armário trancafiado a sete chaves, seguindo pela vida infeliz, sem dignidade, sem poder expressar-se em plenitude e, pior de tudo, sem poder amar com toda a sua alma? Desculpe, mas amor e alma são sinônimos. Se você não consegue expressar um, não possui o outro. É um “carma” que impõe a si mesmo, mas que ninguém lhe imputou. Incomoda-lhe a auto-afirmação dos demais? Seja corajoso como eles, então! Afinal, ao incomodar-se com a auto-aceitação alheia, algo lhe atingiu indelevelmente. Você é quem deve decidir se isso será libertador ou uma prisão...

Sair do armário, assumir-se, deve ser produto de muita elaboração mas, principalmente, de um estado de sinceridade tal consigo mesmo que todos os sentimentos, sensações e desejos sejam devidamente expressados, sem obscurecimentos moralistas, escapistas ou enganosos. Não se trata de escolher uma sigla para sua sexualidade, ou algum modelo didático daqueles defendidos por organizações pró-LGBT, mas antes, de saber o que nos atrai de fato. Não há limitações no amor. Ele não depende de siglas. O amor não é uma regra moral, nem mesmo ética. É alma, é vida e mantenedor de vida. Ele deve melhorar nossa auto-estima, não rebaixá-la. Converse com as pessoas na base do amor mais profundo, e seu ativismo será extremamente perigoso para a homofobia reinante, abrindo horizontes, libertando escravos e permitindo gozos... Abaixo a clandestinidade, viva a revelação! Quem deve se acostumar com sua essência são os outros; a você, cabe expressá-la e ser feliz!


domingo, 6 de maio de 2012

A terapia dos homofóbicos anônimos

Por Rodrigo Ancora da Luz

Certa vez, depois que o Congresso brasileiro aprovou o Projeto de Lei da Câmara n.º 122/2006, criminalizando a homofobia no país, uma psicóloga teve a genial ideia de criar grupos de apoio para auxiliar no tratamento de pacientes homofóbicos no Rio de Janeiro. Homens que cometeram crimes de menor potencial ofensivo relacionados ao preconceito contra os homossexuais, passaram a ser encaminhados pela Justiça para a ONG da doutora Kátia e, desta maneira, recebiam uma nova chance para não serem condenados à prisão. O parecer dela tornava-se quase sempre o fundamento da sentença proferida pela magistrada titular do Juizado Especial Criminal (JECRIM) da cidade.


Iniciando mais uma sessão do seu complicado grupo de machões provocadores, a doutora Kátia assim saudou a todos:

- “Bom dia, meninos! Este é o nosso décimo segundo encontro e hoje gostaria que cada um contasse sobre aquilo que mais lhe causa aversão num homossexual, conforme pedi que refletissem na semana passada. Vocês estão lembrados?”

Sérgio, um dos participantes mais alterados do grupo, interrompeu a psicóloga:

- “Doutora Kátia! A senhora não está querendo que eu saia hoje daqui assumindo que sou frutinha. Já cansei de ouvir aquele velho papo de que todo machão é um gay enrustido. Chega! Prefiro, neste caso, renunciar ao benefício da Justiça e ser condenado de cabeça erguida pelo insulto que proferi contra aquelas duas bichas lá na praia de Copacabana. Jamais ofenderei a minha própria honra e me comprometo em nunca mais andar pela Zona Sul da cidade!”

- “Sérgio, sei que você não estava no encontro anterior quando falei que a homofobia das pessoas seria resultado da projeção que cada um faz no outro quanto aos seus próprios sentimentos. Isto não significa que todo homofóbico seja necessariamente um homossexual que recusa a se assumir. Ele pode, por exemplo, ter escolhido um grupo social em desvantagem para descarregar suas frustrações mal resolvidas. Espero que hoje ainda descubra qual é o seu caso, pois de nada adianta enganar a si próprio. Você admitiria que é um homofóbico ou não se vê desta maneira?”

- “Doutora, não tenho nenhuma fobia dos gays. Se for pra sair no braço com eles, podem vir dois pra cima de mim que eu arrebento. O meu caso é que sou um dos poucos homens de bem que sobraram nesta sociedade decadente. Tenho orgulho de ser macho, trabalhador, não dever a ninguém, criar filhos e viver com decência. Por isto eu sempre votei no Jair Bolsonaro. Ele é o único que presta no meio daqueles deputados cretinos e conseguiu impedir que a vaca da nossa presidenta aprovasse aqueles vídeos de educação homossexual no ano de 2011. Infelizmente, as ONGs GLS, com o apoio dos banqueiros sionistas, aprovaram esta lei vergonhosa que criminaliza o natural sentimento de repulsa contra a anormalidade. Mas o que podemos esperar de uma mulher que sempre se disse favorável ao aborto e fingiu ser santa nas eleições para ter o apoio dos religiosos?”

- “Sérgio! Por favor fale só de você. Nosso tempo é curto e as regras do grupo foram explicadas claramente desde o primeiro encontro há três meses atrás. Aqui eu só permito que o meu paciente fale de si. Ronaldo, agora é a sua vez.”

- “Bom dia, doutora. Ontem fiquei pensando nas coisas sobre as quais tínhamos debatido aqui e descobri por que eu me tornei um homofóbico. No fundo eu tinha era inveja da liberdade dos gays porque muitos deles são pessoas abertas e espontâneas ao passo que eu me tornei um cara reprimido. Papai queria controlar todas as minhas manifestações espontâneas. Ele podou minha maneira de rir, meu jeito de me vestir e proibiu que eu e meu irmão fizéssemos teatro na escola. Depois de adulto, preservei todo aquele enquadramento e então todo homossexual masculino que tinha um comportamento extravagante me despertava raiva”

- “E hoje você ainda culpa seu pai, Ronaldo?”

- “Hoje eu o compreendo, doutora. A escolha de ter me tornado um sujeito reprimido foi toda minha. Quando meu irmão fez seus dezoito anos, ele saiu de casa e foi fazer um curso para artistas. Hoje ele é um humorista da televisão e faz bastante sucesso se fingindo até de gay.”

- “Sente inveja do seu irmão?”

- “Ainda sinto, mas luto contra isto a cada dia”

- “Tá certo. E aí, Antônio? Conseguiu chegar a uma conclusão sobre o seu problema?”

- “Sim, doutora. Descobri que a minha homofobia está associada com a adolescência conflituosa que tive. Nunca senti atração por outro homem. Meu problema era por causa da masturbação.”

Nesta hora, alguns membros do grupo não aguentaram e deram gargalhadas. A doutora Kátia, porém, procurou evitar que houvesse uma dispersão.

- “Silêncio, gente! Vamos ouvir o que o colega de vocês tem a dizer. Antônio, por que você está ligando aversão à homossexualidade com masturbação se esta é justamente uma maneira como os rapazes costumam se afirmar como heterossexuais dentro da nossa cultura antes de terem a primeira relação sexual? Por favor, explique melhor isto.”

Desrespeitosamente, Sérgio mais uma vez interrompeu:

- “Na certa foi porque, quando o Toninho estava na escola, ensinaram-lhe a maneira errada de se masturbar. Trocaram com o manual das meninas e colocaram nas mãos dele.”

Embora quase todos os membros do grupo tivessem dado um sorriso discreto, a doutora Kátia ignorou o comentário do Sérgio e pediu a Antônio que continuasse:

- “Doutora, quando eu era um adolescente, fiz parte de uma igreja evangélica em que o pastor dizia ser um pecado contra a natureza eu me masturbar. Ele comparava a masturbação com o homossexualismo e considerava pior do que o sexo antes do casamento. Então resolvi parar com aquele vício maldito mas não consegui. Toda vez que terminava de ejacular, sentia-me tão impuro quanto um gay. Aí minha aversão ao homossexualismo foi aumentando a cada dia mais.”

- “E hoje? Como você consegue lidar com isto, Antônio?”

- “Depois destas excelentes sessões de terapia, consegui melhorar bastante e descobri que o problema está em mim e preciso aceitar-me como sou. Nem culpo a igreja pelas loucuras que fui desenvolvendo na minha cabeça. Até porque só me tornei um homofóbico radical depois que me desviei dos caminhos do Senhor. Foi quando decidi erroneamente que a melhor maneira de tirar a masturbação da minha vida seria arrumando uma mina pra transar.”

- “E você não arrumou nenhuma namorada na adolescência?”

- “Até hoje não, doutora. Minha primeira transa foi pagando e eu me senti tão bloqueado que nem consegui ter ereção quando entrei no quarto com a mulher. Ficava toda hora lembrando daquela parte da Bíblia em que o apóstolo Paulo diz que quando o homem se une com uma prostituta ele se torna uma só carne com ela. Aí qualquer reação da mulher parecia que ela estava com alguma pomba-gira no corpo e fiquei com medo que o demônio pegasse em mim. Saí dali e fui pro culto da igreja no dia seguinte aceitar Jesus novamente.”

- “E hoje saberia explicar por que agrediu aquele travesti que representou contra você na polícia?”

- “Sei sim, doutora. É porque na minha cabeça eu cheguei a criar a ideia de que a dificuldade que tenho com as mulheres seria porque os gays estariam controlando o mundo através de uma conspiração diabólica para que os heterossexuais ficassem sem opção de sexo e passassem a procurá-los para satisfazerem suas necessidades. Então, no dia em que fui na boate e paguei a saída do travesti achando que fosse mulher, resolvi dar na cara dele quando chegamos no motel.”

- “Tá. Mas o travesti não te avisou que era homossexual?”

- “Não sei dizer porque eu tava mamadão de cerveja e só consegui prestar a atenção no preço do programa que muito mal negociei. Então na hora em que ela ou ele me perguntou se eu já tinha feito sexo com travesti, aproveitei o momento para extravasar tudo o que sinto contra os gays. Seria o bode expiatório das minhas frustrações sexuais.”

- “Pelo visto quem levou a pior na briga foi você, né Toninho?!”, interveio um outro participante do grupo chamado José.

- “Agora conte um pouco sobre você, José”, falou a doutora Kátia passando a palavra para o outro paciente.

- “Bem, doutora, o meu problema começou no recreio do colégio. Sempre fui um aluno meio mongo para certas brincadeiras e quase não sabia os palavrões. Principalmente os mais cabeludos. Nem mesmo fazia ideia do que significava a palavra gay ou o que era um homossexual. Sabia apenas que alguns homens gostavam de se vestir de mulher e não entendia por que os machões usavam este tipo de fantasia na época do carnaval. Quando fiz meus sete anos, mamãe colocou-me pela primeira vez na escola para cursar a primeira série, mas tive sérios problemas de adaptação. Um garoto mais velho, repetente e ainda com 13 anos na quarta série, tentou abusar de mim no banheiro.”

Todos os pacientes olharam entre si nesta hora dando uma discreta risadinha. A doutora Kátia, porém, advertiu o grupo:

- “Rapazes, vamos respeitar o colega. Uma das regras do nosso grupo de apoio é aprender a ouvir com consideração a experiência do outro. Pode prosseguir, José.”

- “Obrigado, doutora. Confesso que me sinto até hoje culpado pelo que aconteceu como se tivesse provocado o rapaz.”

- “Como assim, José? Explique melhor isto.”

- “É que certo dia, quando eu e os colegas da turma estávamos brincando de super herói, cada um escolheu para si um personagem dos desenhos. O representante da classe foi o Super Homem, o Rogerinho escolheu ser o Batman, um outro foi o Robin e eu, quando tentava ser algum herói, um outro menino dizia que era ele. Não consegui ser o Incrível Hulk, nem o He-Man, nem o Homem Aranha, nem o Capitão América ou qualquer personagem dos desenhos animados. Até a vaga do Popeye já estava ocupada por num garoto da segunda série que se meteu no nosso meio. Foi aí, sem ter nenhuma outra opção de heróis, que lembrei-me do Capitão Gay que passava num antigo programa do Jô Soares chamado Viva o Gordo”.

Sérgio não se aguentava mais de tanto rir e perguntou com ares de sarcasmo machista, pondo-se depois a cantar uma marchinha de Carnaval:

- “Você jura mesmo, Zé, que que não sabia que o Capitão Gay era um boiolão? Acho que todos já descobrimos seu problema. Olha a cabeleira do Zezé! Será que ele é?! Será que ele é?!”

A doutora Kátia desta vez advertiu seriamente Sérgio:

- “É a última vez que chamo a sua atenção. Se você continuar com este comportamento, vou ter que tirá-lo do grupo e comunicar a minha decisão à juíza do JECRIM. Aqui não estou tratando de crianças. Só posso admitir pacientes realmente dispostos a se tratar. Se você não está afim de encarar a terapia, não posso deixar que a sua atitude covarde atrapalhe os outros que estão aqui tentando compreender melhor a si mesmos”

- “Tudo bem, doutora. Se é assim, vou falar de mim. A senhora quer saber por que eu não suporto os gays? Pois te contarei agora todos os meus motivos e, se me escutar com atenção até o final, com sensatez e sensibilidade, sei que vai me dar razão.”

- “Então continue, Sérgio. Quero ouvi-lo.”

- “Sabe, doutora. Eu concordo em parte com o Toninho quando ele acreditava numa conspiração gay. Mas não se trata bem de uma conspiração articulada pelos homossexuais e sim pelos banqueiros judeus que pretendem dominar o mundo destruindo as famílias dos povos. Por causa disto, temos visto tantos homossexuais, inclusive lésbicas, ocupando cargos elevados na política e nas empresas. Nossa presidenta, por exemplo, é uma sapata a serviço dos sionistas.”

- “E você se sente incomodado porque vê uma mulher independente com um salário melhor do que o seu e se recusando a transar contigo? Quer que todas elas sejam submissas a você? Isto te ameaça?”

Sérgio emudeceu, pensou um pouco e depois respondeu:

- “Doutora Kátia. Estou achando a sua sexualidade bem duvidosa. No dia em que você for comigo pra cama e experimentar um macho de verdade vai aprender a gostar de homem.”

Indignada com a atitude de Sérgio, doutora Kátia resolveu encerrar a sessão.

- “Paciente Sérgio, queira se retirar. Não sou mais a sua terapeuta e me julgo por impedida para dar um parecer sobre o seu caso. Ficará a critério da juíza designar outro psicólogo para te avaliar ou te sentenciar como ela bem entender. Quanto aos demais, estão dispensados. Posso dizer que todos vocês estão em condições de continuar a conviver em sociedade. Apenas recomendo que prossigam com o tratamento no SUS ou num consultório particular. Aqui na minha ONG temos preços promocionais de vinte reais por consulta para pessoas de condição humilde e os grupos de apoio são todos gratuitos. Anotem o horário que está no mural lá do corredor.”

Sérgio deixou a sala de terapia na frente dos demais e os outros pacientes saíram todos juntos, alcançando-o minutos depois no bar onde costumavam reunir-se ao término de cada sessão. Ali todos eles davam boas gargalhadas contando piadas sobre homossexuais e zombando da doutora Kátia.

- “QUA! QUÁ! QUÁ! O Toninho enganou a mulher direitinho e acho que a doutora não vai descobrir que eu nem estava na primeira série quando a Globo exibia o Viva o Gordo”, comentou José.

- “É impossível ela descobrir que eu jamais fui crente. Decorei na íntegra as confissões de um blogueiro ex-evangélico na internet, as quais pareceram-me bem coerentes. No fundo, prefiro mais é uma boa curimba do que ir numa igreja”, ridicularizou Antônio.

- “Mas e você, Sérgio? Por que não falou pra mulher que sente inveja das lésbicas? A doutora Kátia iria ver que você compreendeu o seu problema e iria encaminhar uma resposta favorável pra juíza e você ficaria livre de tomar uma cadeia. Seu tormento terminaria dentro de poucas semanas e ficaria livre de ter que continuar vindo toda semana aqui. Agora, depois deste incidente, existe até o risco de uma condenação.”

- “Olha, amigos. Quando a doutora Kátia perguntou se eu me sentia incomodado pelo fato de uma mulher ganhar mais do que meu salário, saquei logo qual deveria ser a resposta. Mas a verdade, Toninho, é que se a Justiça me liberar, perderei a chance de ser mandado pra uma cadeia fétida lotada de homens suados, bem musculosos. Ui!”

- “Que é isto, companheiro!? Você só pode estar zoando com a nossa cara!”

- “Estou falando sério, gente! Naquele momento em que a doutora Kátia fez aquela pergunta, refleti profundamente e descobri que gosto é de homem, Toninho.”

- “Por favor, não me chame mais de Toninho. A partir de agora já não te dou estas intimidades! Saia daqui, bichona nazista, antes que agente te cubra de porrada.”

- “Eu vou sair daqui, bambinos. Mas saibam que tenho esta conversa gravadinha bem aqui neste aparelho. Todos os papos anteriores aqui do bar já estão no meu computador porque eu tinha resolvido me prevenir de vocês, caso deixassem de ser homofóbicos. E, certamente que, se vocês me baterem, nós nos veremos todas no presídio de Bangu, além de que vou espalhar pra todo mundo no Facebook. Ai, como eu tô bandida!”

Sobre o autor


Rodrigo Phanardzis Ancora da Luz é advogado e se interessa por debater História, Teologia e Política e vários outros assuntos sem nenhum compromisso profissional, por enquanto. Identifica-se como um discípulo de Jesus. Mora no Rio de Janeiro e é casado com Núbia Mara Cilense. Politicamente não se define nem como direita, esquerda ou de centro, pois considera tais conceitos como ultrapassados, por adotar uma concepção mais ampla. Porém, considera-se um social democrata. Defende causas ambientais, de inclusão social e culturais. Não se encontra filiado a nenhum partido político no momento e dá mais crédito à política não-institucionalizada, pois a força dos acontecimentos está na união de indivíduos interessados em promover mudanças, bem como nas limitações impostas pelo próprio ambiente, o que, por sua vez, relaciona-se com a soberania divina. Crê num Deus que sempre esteve no controle da História e que buscou relacionamentos com o homem por diversas maneiras, marcando profundamente os rumos deste planeta através de Jesus Cristo, através de quem recebemos as boas novas do Reino e somos convocados para transformar a realidade do nosso planeta. Email para contatos: rodrigoluz@yahoo.com

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

David e Jônatas: homo-afetividade bíblica?

Por Paulo Stekel
 Há muitos anos me interesso pela história homo-afetiva de David e Jônatas, um, o pai do futuro Rei Salomão, o outro, filho do tirânico Rei Saul. Não são poucos os pesquisadores, linguistas, arqueólogos e até sacerdotes cristãos que imaginam no relato bíblico sobre estas personagens uma relação homo-afetiva velada. É claro que a ala fundamentalista do Cristianismo rechaça a ideia com toda a veemência do seu discurso sempre vazio de argumentos mas cheio de agressividade. Contudo, os indícios existentes no próprio texto bíblico não são pouco nem irrelevantes.

Em meu livro “Elohê Israel – filosofia esotérica na Bíblia” (versão impressa de 2001 e versão digital de 2006 – baixe trechos do livro em http://stekelmusic.blogspot.com/2011/05/livros-de-stekel-e-books-em-pdf.html), uma das obras que uso como material didático em meus cursos de Cabala, Hebraico antigo e Interpretação Bíblica, discorri sobre o tema analisando o que diz o texto original em Hebraico. Reproduzo abaixo os trechos do livros sobre David e Jônatas, com algumas inserções adequadas para o presente artigo:

“A história de David é uma das mais controversas e impressionantes do Antigo Testamento. Muitos dos seus feitos foram exagerados pelos redatores. A vitória sobre o gigante filisteu Golias pode não ter sido sua (cfe. I Sm 17.40-54), pois II Sm 21.19 diz: “Ainda em Gob, noutra guerra contra os filisteus, Elcanã, filho de Jair, de Belém, matou Golias de Gat; a madeira de sua lança era como cilindro de tear.” Se vê que não era consenso em Israel ter sido David o matador do Golias filisteu.

Morto o gigante, Saul passou a invejar David, enquanto o povo admirava o jovem. O próprio filho de Saul, Jônatas, parece ter amado David mais do que seria aceitável na sociedade israelita daquela época, embora fosse aceitável para os povos vizinhos a Israel. Atualmente, alguns teólogos têm aventado a hipótese de uma ligação homossexual entre David e Jônatas. Apesar da ideia causar espanto, na Grécia antiga esta era uma prática perfeitamente aceitável entre os homens, principalmente em períodos de guerra, quando os guerreiros abandonavam suas esposas para lutar. Entre os povos vizinhos a Israel esta parece ter sido uma prática muito comum, e deve ter sido tolerada em Israel por muito tempo, até ser criminalizada pelos sacerdotes deuteronomistas pós-exílicos. David, entretanto, como se sabe, tinha uma queda irresistível pelas práticas “pagãs”!

I Sm 18.1,3 diz: “Aconteceu que, terminando ele [David] de falar com Saul, a alma de Jônatas
apegou-se à alma de David
[orig. Hebraico -
venéfesh yehonathan niqsherah benéfesh davidh]. E Jônatas começou a amá-lo como a si mesmo [orig. Hebraico - vaye'ehavehu yehonathan kenafsho]. (...) Jônatas fez um pacto com David, porque o amava como a si mesmo. Jônatas tirou o manto que vestia e o deu a David, e também lhe deu a sua roupa, a sua espada, o seu arco e o seu cinturão.”

As roupas são parte da personalidade. Então, ao dar suas roupas a David, o apaixonado Jônatas, pego, ao que parece, por um amor à primeira vista, se tornou ligado a David de um modo indissolúvel, como se fossem “almas gêmeas”.

"O termo “nefesh”, que se traduz por “alma” equivale também ao corpo na Cabala. Assim, a tradução incluiria o sentido: “(...) o corpo de Jônatas ligou-se ao corpo de David. E Jônatas começou a amá-lo como a seu próprio corpo.” Não se trataria de uma simples amizade, como nos tentaram fazer entender os redatores do livro de Samuel. Afinal, a lei deuteronomista não aprovava este tipo de relação, abominada por ser considerada prática pagã.

Analisemos mais alguns trechos sobre esta questão: “Ora, Jônatas, filho de Saul, tinha muita afeição [orig. Hebraico -
chafets] por David.” [I Sm 19.1] O termo “chafets” significa “gostar” e “desejar”. Devemos entender que Jônatas tinha “muito desejo por David”?"

Este trecho analisado se refere a um dos vários momentos em que Jônatas defende David dos ataques de seu pai, o Rei Saul:

“Saul comunicou a seu filho Jônatas e a todos os seus oficiais a sua intenção de levar David à morte. Ora, Jônatas, filho de Saul, tinha muita afeição por David, e advertiu a David dizendo: 'Meu pai busca a tua morte. Fica de sobreaviso amanhã de manhã, procura o teu refúgio e esconde-te. Eu sairei e permanecerei ao lado do meu pai no campo em que estiveres, e então falarei com meu pai a teu respeito, saberei o que houver e te informarei.'”

Quanto amor! Quando David precisou fugir em definitivo de Saul, que o queria matar:

“Então David fugiu das celas de Ramá e veio ter com Jônatas, dizendo: 'Que fiz eu? Qual a minha falta? Que crime cometi contra teu pai, para que procure tirar-me a vida?' Ele lhe respondeu: 'Longe de ti tal pensamento! Tu não morrerás. Meu pai não empreende coisa alguma, importante ou não, sem confiá-la a mim. Por que ocultaria tal plano de mim? Impossível!' David fez este juramento: 'Teu pai sabe perfeitamente que me favoreces e, portanto, diz consigo: 'Não saiba Jônatas nada a respeito disso, para que não sofra'. Mas, tão certo como vive Iahweh e como tu vives, existe só um passo entre mim e a morte.' Jônatas disse a David: 'Que queres que eu faça por ti?'” (I Samuel 20)

A cumplicidade entre ambos é evidente neste e em outros trechos. O que incomodava Saul, além da inveja do herói que David era, pode ter sido a ligação homo-afetiva deste com seu filho Jônatas. Ambos eram casados com mulheres mas, à moda grega, isso não seria impedimento naquela época para momentos homo-afetivos.

"I Sm 20.17 diz que Jônatas “o amava com toda a sua alma”. As ambições dos dois talvez fossem
maiores do que essa “amizade grega”, pois no momento em que Saul perseguia David, Jônatas o protegia de cada ataque, e disse, em I Sm 23.17: “Não temas, porque a mão de meu pai Saul não te atingirá. Tu reinarás sobre Israel, e eu serei o teu segundo. Até mesmo meu pai Saul bem sabe disso.” Seria possível que os dois reinassem juntos, caso Jônatas não tivesse sido morto em batalha? Para alívio dos ortodoxos, eivados de preconceitos e hipocrisia, esta é uma pergunta sem resposta.


Após a morte de Saul e Jônatas, David compôs uma lamentação (II Sm 1.19-27), onde, acerca do
amigo, revela: “Jônatas, a tua morte dilacerou-me o coração, tenho o coração apertado por tua causa, meu irmão [orig. Hebraico -
'achí] Jônatas. Tu me eras imensamente querido, a tua amizade [orig. Hebraico - 'ahavathkhá] me era mais cara do que o amor das mulheres [orig. Hebraico - me'ahavath nashim].” Há aqui um flagrante do receio de se traduzir corretamente um trecho pelas implicações que isso pode acarretar. O termo hebraico traduzido por “amizade” é o mesmo traduzido por “amor” das mulheres – é o termo 'ahavah, que significa “o amar, amor, amizade” e deriva do verbo 'ahev - “gostar, amar”. Assim, a tradução correta seria: “(...) o teu amor me era mais caro do que o amor das mulheres”! Fica claro, pela palavra usada, que David se refere ao mesmo tipo de amor, o do companheirismo de um relacionamento! Por isso o chama de 'achí, que, além de “meu irmão”, significa “meu companheiro”."

A lamentação completa de David a Jônatas é cheia de uma saudade amorosa impressionante:

“Pereceu o esplendor de Israel nas tuas alturas?
Como caíram os heróis?

Não o publiqueis em Gat,
não o anuncieis nas ruas de Ascalon,
que não se alegrem as filhas dos filisteus,
que não exultem as filhas dos incircunsisos!

Montanhas de Gelboé,
nem orvalho nem chuva se derramem sobre vós,
campos traiçoeiros,
pois foi desonrado o escudo dos heróis!

O escudo de Saul não foi ungido com óleo,
mas com o sangue dos feridos,
com a gordura dos guerreiros;
o arco de Jônatas jamais hesitou,
nem a espada de Saul foi inútil.

Saul e Jônatas, amados e encantadores,
na vida e na morte não se separaram.
Mais do que as águas eram velozes,
mais do que os leões eram fortes.

Filhas de Israel, chorai sobre Saul,
que vos vestiu de escarlate e de linho puro,
que adornou com ouro
os vossos vestidos.

Como caíram os heróis
no meio do combate?
Jônatas, a tua morte dilacerou-me o coração,
tenho o coração apertado por tua causa, meu irmão Jônatas.

Tu me eras imensamente querido,
o teu amor me era mais caro
do que o amor das mulheres.
Como caíram os heróis
e pereceram as armas de guerra?”


Me lembro, neste momento, da história do Imperador Adriano e de seu amante Antinous, pois aqui só estão faltando as estátuas votivas espalhadas pelo mundo antigo e o endeusamento do mancebo...

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Filhos de Abraão & de Sodoma: Cristãos Novos Homossexuais na Inquisição

Por Luiz Mott (reproduzido sob autorização do autor)
"Anti-semitismo e homofobia estão juntos nos mesmos períodos da história européia; idênticos métodos de propaganda foram usados contra judeus e homossexuais." (Boswell, 1980:16)



Filhos de Abraão & de Sodoma:
Cristãos-novos Homossexuais nos Tempos da Inquisição
(1)


Judaísmo e Homossexualidade

Não há como negar: judaísmo e sodomia, desde sua origem e ao longo dos últimos quatro mil anos, estiveram sempre juntos. No mais das vezes, o judaísmo condenando os homossexuais. Intimamente unidos, porém, enquanto vivências biográficas de judeus gays e lésbicas judias. Ambos sofrendo os horrores da intolerância, os filhos de Sodoma e de Abraão executados nas mesmas fogueiras da Inquisição e campos de concentração.

A destruição de Sodoma, o principal emblema da homossexualidade na cultura ocidental, aparece na narrativa bíblica exatamente no mesmo momento em que Javé sela sua aliança com Abraão, comprometendo-se a faze-lo pai de uma multidão de povos, cujos filhos seriam mais numerosos do que as estrelas do céu e as areias do mar(2) . Pouco tempo após tal aliança, o patriarca do povo judeu recebe a visita de três misteriosos homens/anjos que confirmam o futuro nascimento de seu herdeiro Isaac - encaminhando-se em seguida em direção de Sodoma, "cujos habitantes eram perversos e grandes pecadores". No caminho, Javé revela a Abraão: "É imenso o clamor que se eleva de Sodoma e Gomorra e o seu pecado é muito grande... Fez então o Senhor cair sobre estas duas cidades uma chuva de enxofre e de fogo, vindo do Senhor, do céu. E destruiu estas cidades e toda a planície, assim como todos seus habitantes e vegetação do solo."(3)

Como se observa, no próprio mito fundamental povo judeu, no momento em que Javé faz aliança com o patriarca dos hebreus, manifesta-se a ira divina contra o abominável estilo de vida dos sodomitas. Sob a denominação "sodomia", entendia-se no sentido restrito, a cópula anal, e quando referida de forma abrangente, a qualquer relação homossexual: "o homem que dormir com outro homem como se fosse mulher, deve ser apedrejado".(4)

Hoje, teólogos, exegetas e etno-historiadores interpretam a inclusão do amor entre pessoas do mesmo sexo no rol das abominações veterotestamentárias não só como uma forma de oposição à idolatria dos povos vizinhos, onde sacerdotes homenageavam suas divindades através de atos homoeróticos(5) , explicando-se igualmente a homofobia talmúdica como uma resposta destas pequeninas tribos de pastores nômades ao seu ambicioso projeto demográfico, estabelecendo como utopia messiânica, a conquista de uma terra prometida, o nascimento do Messias e a consolidação de uma grande nação banhada por rios com torrentes de leite e mel. Eis as palavras de Javé ao patriarca Abraão: "Levanta os olhos para os céus e conta as estrelas se és capaz... Pois assim será a tua descendência... Eu dou esta terra aos teus descendentes, desde a torrente do Egito até o grande rio Eufrates... "(6) Neste contexto triunfalista, o desperdício do sêmen passou a ser crime de lesa humanidade, posto representar o aborto virtual de um novo guerreiro, daí a pena de morte por apedrejamento contra os "perversos sodomitas". (7)
Não é apenas na gênese deste povo, cuja influência posterior tornou-se fundamental na construção da super-estrutura ideológica do mundo ocidental e de praticamente toda história humana nos últimos quatro mil anos, que se nota a forte presença do binômio judaísmo/homossexualidade: na própria consolidação na nação israelita, a figura emblemática de seu líder, o Rei Davi, é indissociável do "amor que não ousava dizer o nome". Escudeiro do rei Saúl, excelente tocador de cítara, poeta privilegiado, vencedor do gigante Golias, rei de Israel (1012-972), Davi tornou-se o fundador da nação israelita única e independente.(8) Exibicionista e desviante, por ocasião do translado da Arca da Aliança para Jerusalém, ousou afrontar um dos maiores tabus da moral judaica, dançando semi-nu, freneticamente, usando tão somente um efod de linho, "veste muito curta, uma espécie de tanga que cobria somente os rins''.(9)
A relação íntima e profunda de Davi com Jônatas, por mais que autores moralistas vejam-na apenas espiritual, cada vez mais os exegetas confirmam se tratar mesmo de um amor homoerótico. Recentemente, a filha do General Moshe Dayan causou furor no parlamento israelense, ao evocar este lado polêmico do pai do Rei Salomão. "Um caso de amor descaradamente homossexual: a amizade imorredoura ente Davi e Jônatas", afirma o sacerdote Tom Horner, doutor em Literatura Religiosa pela Universidade de Columbia, na sua obra O Sexo na Bíblia. Apesar de alguns biblicistas postularem que se tratava de um amor meramente espiritual, do tipo ágape, respeitosos exegetas garantem que se tratava mesmo do amor inspirado em eros, "o mesmo tipo de relação existente entre Aquiles e Pátroclo na Ilíada, à de Gilgamesh e Enquidu na Epopéia de Gilgamesh, e à de Alexandre Magno e Hefestion". As palavras de Davi, quando da morte precoce de seu bem amado parceiro, não deixam dúvidas desta paixão homoerótica: "Meu coração chora por tua causa, meu irmão Jônatas; quão agradável me eras: mais delicioso me era o teu amor do que o amor das mulheres".(10) Segundo analisa o mesmo estudioso: "Tais homens não eram de forma alguma efeminados: eram guerreiros amigos, essencialmente bissexuais." (11)
Um terceiro momento histórico associa dramaticamente, mais uma vez, o judaísmo ao homossexualismo: trata-se de um mesmo violento processo de exclusão social, situado na alta Idade Média, e que deu origem à mais prolongada perseguição de judeus e sodomitas no orbe cristão. Segundo o Dr. John Boswell, no clássico Christianity, Social Tolerance and Homosexuality, foi somente a partir do século XIII que a Europa presenciou o desenvolvimento generalizado de dois ódios que marcarão profundamente nosso mundo no último milênio: a homofobia e o anti-semitismo.

De acordo com recentes pesquisas historiográficas, é exatamente no século XIII, após um longo período de relativa tolerância e convivência mais ou menos pacífica dos cristãos com os sodomitas e praticantes da Lei de Moisés, que se desenvolve na Europa, um forte sentimento de anti-semitismo e homofobia, tendo a Inquisição como ponta de lança nesta cruzada de ódio e intolerância. Logo em seguida, com o alastramento da Peste Negra (1348) e o preocupante desequilíbrio demográfico dela decorrente, judeus e sodomitas são acusados de terem provocado a ira divina e alastrado criminosamente esta epidemia.(12) O crescimento deste fanatismo é marcado por diversos acontecimentos que enlutaram dramaticamente sua época: repetidas cruzadas contra os não-cristãos e hereges, a expulsão e perseguição dos judeus em diversas partes da Europa, o surgimento do Tribunal da Inquisição, a produção de rancorosos tratados de teologia contra a homossexualidade, a caça às bruxas e aos sodomitas.(13)

Um dado histórico ainda pouco conhecido, mas criteriosamente documentado, é a existência de um oásis de paz entre judaísmo e homossexualidade, registrado na Andaluzia no milieu de cultura islâmico- mourisca entre os séculos XIII e XIV, onde artistas e intelectuais judeus produziram delicados poemas enaltecendo a beleza de adolescentes, seguindo a mesma inspiração temática da literatura árabe daquela época.(14) A gazela "sebhi" destes líricos, não é a donzela inspirada no Cântico dos Cânticos, mas um esbelto rapaz, amado com seus charmes e caprichos, muito semelhante à poesia islâmica contemporânea. Segundo o Dr.Boswell, estes poemas constituem o único corpus literário homoerótico em hebreu. Como porém este tema não consta nos escritos neo-hebreus da Haskalah e nem no hebreu renascido como língua falada pelo movimento sionista e na ressurreição do estado de Israel, um premeditado complô do silêncio esconde esta página cor-de-rosa da literatura judaica na diáspora.

Segundo a Encyclopedia of Homosexuality, os judeus foram acusados de ter introduzido a homossexualidade na Espanha durante o domínio mouro e após sua expulsão, em 1492, foram novamente incriminados de ter espalhado o mau pecado em Portugal. Poetas satíricos dos séculos XIII-XV às vezes associavam o judaísmo à perversão sexual. Em Granada, Garnata al Yahud, a homossexualidade e pederastia eram normas correntes na aristocracia judaica e mourisca.(15)

Destacaram-se entre os principais poetas judeus que louvaram os amores pederásticos: Ibno Gabirol, Samuel Ha-Nagid, Moses Ibn Ezra, Ibn Sahl, Ibn Ghayyath, Ibn Sheshet, Ibn Barzel. Consta que os poetas Abrham Ibn Ezra e Judah Ha-Levi viveram intensa paixão homoerótica, sendo este último um dos mais proeminentes judeus na Espanha Cristã: poeta destacadíssimo e influente líder religioso, além de escrever de encantadores epigramas dedicados a guapos mancebos, transformou a poética heterossexual arábica em poemas homossexuais.(16) Samuel Ha-Nagid dizia-se descendente do Rei David, sugerindo em um de seus escritos que percebia, tal qual sucedeu na renascença com Miguel Ângelo, que o maior rei-poeta da antiguidade era como ele, amante do mesmo sexo. Nestes poemas hebreus laudatórios da pederastia, às vezes, o amor do macho para outro macho é usado como metáfora religios: o amor de Israel para Javé é expresso como o amor de um homem para outro homem. Os conversos, contudo, devido à crescente homofobia da Santa Madre Igreja, tiveram de viver mais secretamente suas identidades proibidas: além de cripto judeus, alguns tornaram-se cripto-sodomitas.
Na Península Ibérica, é sobretudo a partir dos finais do século XV e primórdios do XVI, com a instalação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, que novamente judeus e sodomitas vão comer o pão que o diabo amassou. Fundada na Espanha em 1478 e em Lisboa, em 1536, a Inquisição Portuguesa, teve como seu principal alvo os cristãos-novos: das mais de 40 mil pessoas aprisionadas nos cárceres secretos das inquisições de Lisboa, Coimbra e Évora e das mais de mil vítimas que efetivamente morreram na fogueira, passa de 80% o número dos condenados pela prática do judaísmo. Depois dos cristãos-novos, os sodomitas constituem o segundo grupo mais perseguido pelo Tribunal da Fé: das 4419 denúncias registradas nos Repertórios do Nefando, na Torre do Tombo, aproximadamente 450 redundaram no encarceramento dos homossexuais, e destes, 30 terminaram seus dias na fogueira.(17)

Tendo como base e fio condutor a documentação inquisitorial, meu principal escopo neste ensaio é investigar uma faceta inédita da historiografia consagrada tanto ao judaísmo como à sexualidade humana: a reconstrução biográfica e o cotidiano dos cristãos-novos portugueses acusados da prática secreta dos dois mais hediondos crimes do conhecimento do Santo Ofício: judaísmo e homossexualidade.

Até o presente localizei nos manuscritos inquisitoriais um total de 69 cristãos-novos, alguns judaizantes secretos, outros aparentemente convertidos de fato ao cristianismo, mas herdeiros de sangue hebreu, todos igualmente praticantes do "abominável e nefando pecado de sodomia". Trabalho pioneiro de ambição singela: fornecer as pistas documentais e propor algumas hipóteses a fim de que outros pesquisadores aprofundem as ilações que apenas delineio.

Perfil de uma minoria duas vezes clandestina

Nos quase trezentos anos de funcionamento da Inquisição Portuguesa (1536-1821) até o presente consegui localizar um total de 68 homens e uma mulher, referidos, denunciados ou confessados como sendo descendentes consangüíneos de famílias judaicas, e ao mesmo tempo, envolvidos com práticas homossexuais, dos quais 10 moradores do Brasil. Deste total de 69 pessoas, 28 foram réus de processos formais, dos quais 6 foram condenados à morte na fogueira; os 41 restantes apareceram apenas citados como cúmplices em outros processos de sodomia ou suas denúncias não redundaram em processo formal e prisão.

A primeira referência cronológica de um filho de Abraão envolvido com o nefando pecado de sodomia data de 1561, quando João Fernandes, XN, que "vivia de tomar conta dos fatos dos regateiros" em Lisboa, é acusado e confessa ter sodomizado alguns meninos pobres quando pediam para com ele dormir no alpendre dos vendedores ambulantes. Nestes tempos pioneiros do Santo Ofício, quando ainda não estavam bem definidas a casuística e processualística referente ao "pecado nefando", o réu teve logo seu processo despachado, sendo açoitado no cárcere e degredado para sempre para fora do Reino.(18)
Do total de 69 cristãos-novos envolvidos com o "mau pecado", entre réus e cúmplices, 13 referem-se ao século XVI, 47 à primeira metade do século XVII e 9 à metade final desta mesma centúria. Portanto, 68% dos casos de sodomitas cristãos-novos concentram-se nas cinco primeira décadas de 1600, notadamente no primeiro quartel daquele século. Repete-se com esta sub-população o observado com o conjunto dos sodomitas ao longo de todo período inquisitorial, oscilando de 81% a 84%, respectivamente, os processados por este crime no século XVII.(19) Somente uma pesquisa comparativa mais ampla e que abranja todo o período inquisitorial poderá esclarecer os fatores explicativos desta maior atuação do Santo Ofício neste período, que coincide com a dominação filipina (1580-1640) e com a ocorrência de vários surtos de pestes e fome - infortúnios que geralmente instigavam a procura de bodes expiatórios e caça as bruxas, judeus e sodomitas entre as minorias tradicionalmente mais vulneráveis.(20) A última referência a um cristão-novo sodomita data de 1689, Doroteu Antunes, estudante brasileiro residente no Rio de Janeiro.
Analisando a biografia destes 69 indivíduos denunciados, confessados ou processados pelos dois mais graves crimes perseguidos pela Inquisição, podemos estabelecer um continuum para melhor classificar os réus de ambos delitos. No que se refere aos cristãos-novos, este gradiente vai do menos culpado - quando o acusado possuía apenas alguma parcela de sangue judeu, sem acusação ou prova de que secretamente praticasse rituais judaicos - ocupando o extremo oposto aqueles cristãos-novos que comprovadamente eram judaizantes, praticando secretamente a Lei de Moisés, alguns chegando a ser dogmatistas e profanar imagens e símbolos sagrados do catolicismo. A mesma seqüência observa-se entre os acusados de práticas homossexuais: no extremo de gravidade das culpas, alguns sodomitas que foram considerados pelos juizes inquisitoriais como convictos, confessos, escandalosos e incorrigíveis. Na extremidade oposta, aqueles que viveram secretamente seus amores unissexuais ou que os praticaram poucas vezes ou superficialmente. Dentro deste escalão, encontramos todo tipo de arranjo existencial, incluindo desde sodomitas/cristãos-novos com pouquíssimas culpas, ou indivíduos altamente comprometidos com o judaísmo e apenas superficialmente com a sodomia, ou vice-versa: grandes sodomitas que apenas acidentalmente eram descendentes do povo hebreu, sem prática alguma dos rituais proibidos. Poucos são os casos de réus grandemente comprometidos tanto com a fé judaica quanto com a prática homossexual, e entre estes, um dos mais célebres mártires da inquisição portuguesa, Antônio Homem, perpetuado na história com a antonomásia de Preceptor Infelix.

O quadro abaixo, com dados básicos identificadores da biografia dos cristãos-novos/sodomitas, arrolados em ordem cronológica de sua denúncia ou prisão, permitem-nos visualizar o perfil sócio-demográfico desta sub-população duplamente heterodoxa em questões de fé e de moral sexual:

CRISTÃOS-NOVOS/SODOMITAS DENUNCIADOS E/OU PROCESSADOS

NOME ANO XN IDADE PROFISSÃO RESIDÊNCIA
1. João Fernandes 1561 XN ? Vigilante Lisboa
2. Gaspar Lopes 1569 XN ? Clérigo Beja
3. Afonso Pinto 1575 XN 45 Tange tecla e canta Lisboa
4. Guiomar Piçara 1592 XN 38 Esposa Itaparica
5. Gonçalves Pires 1593 XN 33 Mercador Bahia
6. João Batista 1593 XN 33 Mercador Lisboa
7. Diogo Afonso 1593 XN 27 Sem ofício Salvador
8. Diogo Enriques 1594 XN 18 Filho de Mercador Olinda
9. Souza 1594 XN 18 Filho de Mercador Olinda
10. João Fernandes 1594 XN 50 Vende Água Lisboa
11. Jorge de Souza 1595 XN 17 Filho de família Pernambuco
12. Diogo Henriques 1595 XN 18 Mameluco Olinda
13. Jerônimo Doso Urso 1598 24 Costureiro,Soldado Lisboa
14. Anrique D'Orta 1609 XN ? Letrado Lisboa
15. Álvaro Pires 1610 XN 22 ? Lisboa
16. Gil Franco Pinel 1610 XN 25 ? Lisboa
17. Antônio Nunes 1610 XN 27 S/Ocupação Lisboa
18. Baltazar Nunes Rosa 1610 XN 21 Vive de s/ fazenda Lisboa
19. Manoel Mendes 1611 XN 53 Cirurgião Lisboa
20. Luiz Simões 1611 XN 25 Estudante Lisboa
21. Frei Rodrigo 1611 XN 13 Filho de Medico Lisboa
22. Rodrigo Alvares 1611 XN 14 Frade Lisboa
23. João Mendes 1611 XN 27 Merceeiro, Boticário Lisboa
24. Luiz D'Avelar 1611 XN 22 Pagem Azeitão
25. Manuel Rois Navarro 1615 XN ? Lente Universidade Coimbra
26. Felipe Tomás 1618 XN ? Advogado Salvador
27. Manoel da Maia 1618 XN 40 Dono de trapiche Salvador
28. Jacinto Cardoso 1618 XN 18 Pagem Madri
29. Duarte Fernandes 1618 XN 18 Serviçal Salvador
30. João Barbosa 1620 XN ? ? Lisboa
31. Antônio de Castro 1620 XN 18 Alfaiate Lisboa
32. Jácome Rois 1620 XN 18 Lisboa
33. Domingos Rois da Rocha 1620 XN 25 Cativo Mulato Lisboa
34. Antônio Girão 1620 XN 48 Clérigo de epístola Lisboa
35. Jorge Moniz 1620 XN ? Estudante filosofia Salvador
36. Salvador Vaz Pegado 1620 XN 26 Pagem do Bispo Miranda
37. Antônio Homem 1624 XN 60 Lente de Prima Coimbra
38. Francisco do Porto 1629 XN 42 Mestre, Boticário Idanha Nova
39. Antônio Silveira 1630 XN ? ? Lisboa
40. Antônio da Cruz 1630 XN 17 ? Santarém
41. Antônio Leitão 1630 XN 19 ? Santos
42. Antônio Barbosa 1630 XN 50 ? Lisboa
43. Manoel Vaz 1630 XN ? Estudante Lisboa
44. Francisco Freire 1630 XN ? Estudante Coimbra
45. Francisco Palácios 1630 XN 21 Negociante Lisboa
46. João Batista Romano 1630 Nação ? Pagem Madri
47. Gaspar Ximenes 1630 XN 14 Pai no Brasil Lisboa
48. João de Sousa 1630 XN 27 Dominicano Lisboa
49. Matias Franco 1630 XN 55 Tange rebequinha Lisboa
50. Moço 1630 XN ? Canta, tange tecla Lisboa
51. Domingos Fnds Miranda 1630 XN 20 Tratante Lisboa
52. Afonso Rois 1630 XN 45 Traz hábito Lisboa
53. Manuel de Andrade 1631 XN 22 ? Lisboa
54. Simão Ferreira Silva 1631 XN 24 Capitão Infantaria Lisboa
55. João Rabelo 1631 XN 16 Pagem Lisboa
56. Simão Fernandes 1632 XN ? Clerigo Castela
57. D. Antônio de Flandres 1645 XN 30 Converso Lisboa
58. André Ribeiro 1645 XN 17 Pagem Lisboa
59. Antônio Salgado 1645 XN 26 Pagem Santarém
60. Manuel Ribeiro Teve 1647 XN 18 ? Lisboa
61. Antônio Vaz 1651 XN ? Clérigo Lisboa
62. Gabriel Dias Ferreira 1654 XN 28 Cônego da Sé Ribeira Gde
63. Gregório Martins Ferreira 1654 XN 47 Deão Sé Porto Alenquer
64. Bartolomeu Martins Moura 1655 XN 40 Ourives Lisboa
65. João Coelho 1656 XN 30 Pedreiro Elvas
66. Francisco Ribeiro Pires 1657 XN 18 Filho Contador Lisboa
67. Martim Leite Pereira 1661 XN 50 Cavaleiro O. Cristo Porto
68. Matias Gonçalves 1667 XN 45 Barbeiro Moura
69. Doroteu Antunes 1689 XN 18 Estudante R. de Janeiro

Ao observar esta lista, a primeira constatação merecedora de destaque é quanto aos nomes e sobrenomes destes cristãos-novos: esta nossa pequenina amostra descarta mais uma vez o mito que pretende associar mecanicamente os sobrenomes dos conversos a acidentes geográficos, plantas ou ocupações. Os cristãos-novos luso-brasileiros ostentavam exatamente os mesmos nomes e sobrenomes dos cristãos-velhos, destacando-se nesta sub-população o nome Antônio (10), João (9) e Manoel (6) e os sobrenomes Fernandes (5), Ferreira, Souza e Pires, cada um repetido três vezes.(21)

Não encontramos na documentação inquisitorial pesquisada, nenhuma vez o termo "marrano"; mesmo "converso", apareceu apenas uma vez para designar um cristão-novo estrangeiro: trata-se de D. Antônio de Flandres, 30 anos, então residente numa pousada à Porta do Mar, "que já tinha barbas e bigodes grandes, gentilhomem de rosto e falava grosso e pouco expedito", do qual se comentava que "era judeu converso batizado em Flandres", e que constava ter mantido, em 1620, duas cópulas sodomíticas com Manoel de Almeida da Cunha, moço da câmara de Sua Majestade.(22) . Outro estrangeiro, João Batista Romano, pagem do Duque de Feria, em Madri, é referido como sendo "de nação", tendo mantido intimidades homoeróticas com um importante cônego da Sé de Lisboa, D. Vicente Nogueira - cujo nome voltará a ser mencionado, posto ter sido amante de diversos cristãos-novos.(23) 43 dos sodomitas pesquisados foram indiciados genericamente com o designativo "cristão-novo", doze possuindo "parte de XN", oito como sendo "meio XN", três tendo "um quarto de XN" e um sendo "três quartos de XN". Nos processos, a indicação da "cristãnovice" dos réus é mais precisa e rigorosa, sobretudo quando são os próprios réus que se auto-identificam, embora a tendência destes seja, algumas vezes, diluir a ascendência hebréia para diminuir as suspeitas de heterodoxia. Nas denúncias, via de regra, predomina tout court o indicativo cristão-novo, sem detalhar o grau de mistura de "sangue impuro de judeu" - o que permite-nos conjeturar que na opinião popular, não se distinguia os graus decrescentes da mistura do sangue, todos os descendentes de judeus sendo sumariamente identificados como XN.

A maior ou menor porcentagem de sangue judeu era vista pelos inquisidores como indício possível de maior ou menor envolvimento com a prática do judaísmo, não sendo contudo necessariamente levada em conta como agravante, pois há réus que ostentavam apenas "parte de XN", porém, dado seu comprometimento com os rituais judaicos, foram punidos com maior severidade do que outros que descendiam desta "infecta nação" pelos quatro costados. Dos seis sodomitas cristãos-novos condenados à morte, "relaxados à justiça secular", só dois não tinham mistura com cristãos-velhos.

No tocante à idade, o mais jovem cristão-novo a ser denunciado como sodomita tinha 13 anos: Frei Rodrigo, "filho de um médico da Relação", que manteve passivamente uma cópula sodomítica com o clérigo Pascoal Correa, cristão-velho, 29 anos, filho de um cavaleiro fidalgo, ato realizado em sua casa, "numa esteira no chão".(24) Outro jovenzinho, Gaspar Ximenes, 14 anos, de nação, cujo pai, em 1630, estava no Brasil, confessou perante o notário da Inquisição "com bom modo e como pessoa sisuda e de bom entendimento" que à boca da noite, estava na igreja de S. Domingos e um homem embuçado o foi seguindo até à Rua da Palma e ali lhe perguntou como chamava, filho de quem era e "querendo encobrir, disse que se chamava Gaspar Azevedo" e o dito homem disse então "se queria ser figurante numa comédia e ir à sua casa onde seria bem recebido, e para o persuadir se desembuçou e lhe mostrou o hábito de Cristo que trazia na capa." Dois dias depois, curioso, o judeuzinho foi logo de manhã à casa deste homem, à Rua dos Cabidos, o qual disse chamar-se João Cabral, e encontrou-o na cama em camisa e calção branco. Após algumas conversas, este lhe disse que o mataria caso gritasse, e "meteu seu membro viril no traseiro dele fazendo como um animal quando tem com outro ajuntamento carnal." Ao partir, recebeu 4 vinténs. Parece que malgrado a suposta cena de violência sexual, Gaspar Ximenes gostou da somitagaria, tanto que confessou ter mantido outra cópula sodomítica com um tal Gaspar Ribeiro, "que trazia gadelhas louras muito grandes feito em anéis...e o andou primeiro namorando e já lhe disse tantas cousas que ele consentiu" - enganando-o porém, pois não lhe emprestou a desejada adaga como prometera em troca de seus amores juvenis.(25)

O mais idoso deste grupo de judeus sodomitas tinha 60 anos: trata-se de Antônio Homem, "lente de prima", catedrático da Universidade de Coimbra, seguramente, o mais famoso e letrado sodomita e cristão-novo relaxado pela Inquisição Portuguesa - o qual merecerá destaque mais adiante. 37% dos cristãos-novos denunciados por homossexualidade tinham menos de 21 anos - a idade que na época marcava a passagem para a maioridade, sete dos quais estando na faixa de 13 a 17 anos. 38% destes desviantes encontravam-se na flor da idade, entre 22-30 anos, e 34% entre 30-60 anos. Em suma: a homossexualidade contava seus adeptos em todas as idades, distribuída em proporções equilibradas.
Também diversificada é a especialização ocupacional desta sub-população: tradicionalmente, costuma-se identificar os descendentes de judeus como especialistas em atividades comerciais, agiotagem, medicina, letras e artes. Quanto aos homossexuais, associam-nos ora a ocupações inter-sexuais: cozinha, costura, serviços domésticos, ora a atividades que exigem maior delicadeza: artes, religião, letras. Embora tais ocupações efetivamente apareçam no rol das atividades exercidas pelos cristãos-novos/sodomitas, o leque profissional é maior do que estereótipo tradicional, como se constata na relação abaixo:

Ocupações dos Sodomitas/Cristãos-Novos
· Letras: estudante, lente de prima, mestre de latim, advogado, letrado (10)
· Serviços: vende água, vigilante, pagem (10)
· Religião: clérigo, cônego, deão da sé (9)
· Oficial mecânico: barbeiro, cirurgião, costureiro, merceeiro, boticário, ` ourives, músico, alfaiate (7)
· Comércio: mercador, negociante, dono de trapiche (6)
· Milícia: capitão de infantaria, soldado (2)
· Etnia: mameluco, mulato, mulato cativo (3)
· Nobreza: cavaleiro Ordem de Cristo (1)
· S/profissão: sem ofício, filho de família (17)

Os sodomitas/cristãos-novos espalham-se por todas as classes e categorias sócio-econômicas, de simples serviçais e oficiais mecânicos, a abastados comerciantes, letrados e nobreza. O de mais baixa condição, nesta nossa amostra, era um escravo mulato: Domingos Rois da Rocha, 25 anos, solteiro, filho de Joana Elza, escrava de Francisco da Rocha, moradores nas Portas da Mouraria em Lisboa. Preso em 1620, consta em seu processo que pelo lado do pai, "tem parte de XN". Seu principal crime, além da acusação de sete cúmplices com os quais manteve mais de uma dezena de atos sodomíticos, na maioria das vezes como passivo, este cristão-novo mulato entrava na periclitante categoria de escandaloso: "bailava em uma dança em trajos de mulher, por isso lhe chamam fanchono. Era o guia da dança do esparramão ou dos fanchonos".(26) Preso, após sofrer a tortura, foi considerado pela mesa inquisitorial como "negativo, agente e paciente, e devido à sua soltura, devassidão e perseverança", condenaram-no à morte no Auto de Fé realizado no Rossio de Lisboa aos 28 de novembro de 1621. Não havia qualquer referência em seu processo à práticas judaicas, pelo contrário: é apontado como "bom cristão e temente a Deus, bom filho e ordinariamente trazia as contas (do terço) nas mãos".(27)

Nesta nossa amostra, há outros sodomitas com sangue hebreu pertencentes aos estratos mais inferiores da sociedade portuguesa: coincidentemente, dois com o mesmo nome: o primeiro é o já citado João Fernandes, preso em 1651, cristão-novo que vivia de vigiar as barracas dos regateiros na Ribeira. Mesmo morando em local assaz humilde, "dormindo no alpendre dos regateiros onde tinha sua cama e quando ali vinham ter moços pobres de fora, dormiam todos juntos...", era generoso com seus "meninos de rua" pois dava-lhes de comer, dormir e vestir. Foi condenado a açoites e degredado para fora do Reino.(28)

O outro João Fernandes, cristão novo igualmente pertencente à raia miúda, foi preso em 1597: 50 anos, natural de Braga, residia na Rua do Bravão, em Lisboa. Sua ocupação era "vender água na alfândega". É acusado por dois marinheiros: um deles disse que durante dois anos seguidos manteve diversas "coxetas", isto é, ejaculação interfemural. O outro, dormindo na mesma cama do aguadeiro, ao acordar à noite devido aos afagos que recebia, disse ao sodomita: "ou lá, senhor! isso é por sonho ou quê?", soltando-o logo a seguir. Por pecadilhos tão diminutos, este infeliz aguadeiro foi condenado a galés perpétuas. (29)

Diversos sodomitas de origem judaica pertenciam à categoria dos chamados oficiais mecânicos: barbeiros, cirurgiões, costureiros, merceeiros, boticários, alfaiates, etc. Por exemplo: o barbeiro Matias Gonçalves, "parte de XN", 45 anos , natural e morador em Moura, foi preso pela Inquisição de Évora, em 1667, por culpas de judaísmo. Diminuto em suas confissões, ao ser submetido a tormento, confirmou crer na Lei de Moisés e praticar rituais judaicos, acrescentando uma novidade desconhecida pelos inquisidores: que há doze anos passados, tomado do vinho, possuiu à moda de Sodoma ao alfaiate Manoel Quaresma, 50 anos. Teve como pena abjuração de seus erros e obrigação perpétua de usar hábito penitencial.(30) Nesse caso, a mesa inquisitorial não teve curiosidade nem interesse em aprofundar o lado sodomítico do réu, sentenciando-o apenas por judaísmo.
Igual indiferença beneficiou ao cristão-novo João Coelho, pedreiro, preso em 1655 por judaísmo. Confessou que 8 meses antes, em Elvas, quando caiava o sótão da casa do taberneiro Gaspar Lopes Rosado, 30 anos, casado, entrou este no sótão e "disse que se despisse para cometer o pecado de sodomia, ao que recusando, o acusado o pegou à força e tirou-lhe a calça, penetrando-o e derramando semente, parte dentro e parte fora, porque a este tempo fez ele confitente maior força para se desviar do ato".(31) Tempos violentos aqueles, em que a própria igreja torturava tenazmente os prisioneiros de consciência e a lei permitia ao marido matar quem seduzisse sua mulher, desde que se tratasse de alguém de condição inferior.

Alguns destes profissionais, embora enquadrados na condição ordinária de "oficiais mecânicos", nem por isto deixavam de amealhar bons rendimentos e interagir com pessoas das classes mais abastadas. É o caso do cirurgião Manoel Mendes, mulato, 53 anos, meio cristão-novo, casado, natural de Beja e morador em Lisboa, filho de um lavrador XN e de uma parda cativa. Seu mandato de prisão data de 1611, acusado de ter mantido diversas cópulas sodomíticas com sete cúmplices diferentes. Em sua confissão, nomeou apenas três parceiros sexuais, com muitos atos de molices. Em suas contraditas, alegou ser "bom cristão e posto que confessou ter cometido uma vez o pecado nefando, não é costumado a cometer; não andava em conversação com pessoas infames e com moços e mancebas, antes suas conversações eram com pessoas honradas, de sua idade e profissão; é casado e em sua casa não entravam pessoas de suspeita."(32)

Neste processo há uma importante referência histórica aos embates dos cristãos-novos com o Santo Ofício: diz este cirurgião mulato que "per virtude do último perdão geral concedido à gente da nação ficaram extintos todos e quaisquer crimes que per qualquer via pertencem a este Santo Tribunal, sendo cometidos por pessoas da nação como ele réu é, pelo que não pode ser acusado pelos crimes que se diz haver cometido antes do dito perdão por lhe estarem perdoados, em caso negado que os cometesse". É a única vez que encontramos em toda documentação inquisitorial, a tentativa, fracassada, diga-se en passant, de se estender a abrangência do "perdão geral" (de 1610) para o crime de sodomia - um artifício maroto do réu, certamente auxiliado por seu astuto advogado. Nenhuma referência há no processo de que embora sendo parte de cristão-novo, o cirurgião mulato Manuel Mendes praticasse secretamente a Lei de Moisés.

Os pagens sempre foram uma das categorias profissionais mais envolvidas com o nefando pecado de sodomia na Europa e em outras sociedades estamentais, onde, costumeiramente, os nobres possuíam o privilégio do livre acesso sexual aos serviçais de ambos os sexos.(33) Tão comum era tal prestação de favores eróticos que dizia um ditado da época: "Não há galinha que não ponha ovos, nem criados que não [sejam] para cometer sodomia: este é o serviço que deles se queria..."(34) Há entre os cristãos-novos aqui pesquisados, sete pagens implicados no "vício nobre", três dos quais serviram na corte espanhola, entre estes, Salvador Vaz Pegado, 26 anos, meio XN, pagem do Bispo D. Fr. Francisco Pereira, de Miranda, de quem chegou a receber a primeira tonsura como clérigo, tendo acompanhado seu patrão quando esteve nas Cortes de Madri. Preso em setembro de 1620, contra si constavam cinco denúncias de sodomia. Negou tudo, mesmo após rigorosa tortura no potro. Como as provas contra sua pessoa eram bastante sólidas, foi condenado a 8 anos de galés, conseguindo sua comutação para Angola.(35)

Outro pagem com parte de cristão-novo igualmente envolvido com o nefando pecado foi Luís d'Avelar, 22 anos, natural de Azeitão, que embora casado , "dá má vida a sua mulher". Seu pai já fora pagem de importantes casas: do Conde de Calbeta e do Duque de Aveiro. Datavam de 1610 suas denúncias de sodomia: eram três os cúmplices, gente diferenciada, incluindo um frade carmelita e o responsável pelos negócios do Cabido da Sé do Funchal. Como o anterior, também optou por negar suas intimidades homoeróticas: condenado a 8 anos de galés, apresentou à mesa do Santo Ofício atestado onde um médico informava estar com "uma perna maltratada de frialdade e contorção de um braço e a virilha esquerda quebrada." Misericordiosos, os Inquisidores reduziram para a metade seu tempo de penitência.(36)

Encontramos certos pagens que ostentavam maior abastança material do que costumamos imaginar: Antônio Salgado, "parte de XN", 26 anos, casado com Maria Soares, morador em Santarém, vivia inserido no mundo das altas rodas: seu pai era contratador das Casas da Índia; tinha uma irmã casada com um familiar do Santo ofício; acompanhou por três anos o Bispo D.Teixeira em sua estada na Ilha Terceira, secundando o Embaixador Tristão de Mendonça quando jornadeou em Holanda. Seu inventário comprova que existiram pagens, como ele, que chegaram a ser proprietários de bens imóveis, tanto que ao ser preso, foram-lhe encontrados as seguintes posses: uma vinha, cinco pegas de vinho, um olival, uma terra, foro de seis alfas de azeite, seis cadeiras, um bufete, seis painéis, dois catres, seis lençóis de linho, um cobertor, três colchões, um leito, seis camisas, guardanapos, três toalhas de mesa, seis toalhas de água, duas baetas, uma salva de prata, duas colheres e dois garfos, um brinco de mulher de ouro, 6$000, não devendo nada a ninguém. Tinha contra si oito parceiros diferentes e dezenas de atos homoeróticos. Os juizes inquisitoriais demonstram-se convencidos, pela confissão do réu e provas da justiça, que efetivamente tinha culpas no nefando. Mas ponderando que não houvera devassidão em seu proceder, condenaram-no a ouvir sua sentença no Auto de Fé, à pena dos açoites e degredo para as galés. Ficaram apenas em dúvida quanto ao tempo de seu castigo: dividindo-se as opiniões entre 3 , 5, 8 e 10 anos. Ficaram igualmente incertos a partir de que data seus bens deveriam ser seqüestrados: concluíram que vigoraria a pena somente entre o tempo em que cometeu o delito até a proclamação de sua sentença. Prevaleceu a linha dura: foi degredado perpetuamente para a Ilha do Príncipe. Astuto, este pagem sodomita usou quantos artifícios dispunha para amenizar sua pena: primeiro requereu, com sucesso, a mudança de seu degredo para o Brasil, terra menos ingrata. Alegando não desejar desamparar sua mulher, moça de 20 anos, prenha, empobrecida com o seqüestro de seus bens, pede que seja transferido para alguma das fronteiras do Reino. Dizendo-se doente, requer em seguida permissão, sob fiança, para se tratar por quatro meses. Em 1658, quatro anos depois de lida sua sentença, representa ao Santo Ofício informando que ao embarcar para a Ilha do Príncipe, a nau em que viajava sofreu grandes tempestades e águas, indo parar no Maranhão e de lá na Ilha de São Domingos, muitos dos passageiros morrendo de fome, salvando-se ele, a nado, sendo em seguida transportado do Caribe para Madri, de onde veio mendigando até Lisboa para ver sua mulher e filho. Felizardo, após tantos sofrimentos, recebe o perdão do resto do tempo do degredo.(37)

Dentre os descendentes de Abraão de maior destaque nobiliárquico envolvidos com o nefando pecado, há de se referir a Martim Leite Pereira, 50 anos, Cavaleiro do Hábito de Cristo, viúvo de D. Anácia de Melo, com uma filha de 26 anos professa no convento de Santa Maria de Lisboa, natural e morador no Porto. Era meio cristão-novo pelo lado de seu pai, João Dias Leite. Preso em 1661, com ordem de seqüestro, em seu inventário constava uma quinta, dois campos, muita terra arrendada pelas quais recebia pagamentos em milho, trigo, cevada e galinhas. Possuía alguns móveis de pau-brasil e pau-santo, com incrustações em marfim; muitas roupas de tecidos caros, incluindo uma colcha de seda chinesa, alguns devedores e muitos credores.

Martim era bissexual, tendo sido acusado e assumido dezenas de cópulas anais heterossexuais, uma delas, cometida com grande violência contra Maria, uma adolescente de 13 anos. Segundo testemunhas, a mãe da moça encontrava-se na feira quando foi chamada para ver sua filha que estava muito maltratada: "achou a menina estirada na cama sem fala e quase morta, toda alagada em sangue, assim como a cama em que estava e três camisas e três lençóis que já se tinham ensopado. E todo aquele dia esteve a correr o dito sangue [enquanto] a mãe metia uns trapinhos de pano dentro do vaso traseiro de sua filha para lhe estancar o sangue e logo como lhos tirava, corria em bica outro sangue, de sorte que era uma lástima vê-la e lhe pareceu que ela morria daquele sucesso... porque até os sapatos que trazia se mostraram cheios de sangue. Esteve mais de oito dias sem poder assentar com razão das dores".(38)

Ao todo, consta em seu processo ter sodomizado 9 homens e 14 mulheres. Na hora de ser julgado, os inquisidores ponderaram que tendo se confessado sem denúncia prévia, e pelo fato de "ser cavaleiro, fidalgo de geração e parente de filhados nos livros del rey, por ter uma filha religiosa a quem poderá tocar infâmia se divulgar os pecados no auto", que deveria ser sentenciado intra-muros. O Conselho Geral, no entanto, foi mais rigoroso: considerou este Cavaleiro da Ordem de Cristo como convicto, confesso, devasso e incorrigível, entregando-o ao braço secular para ser relaxado. Foi queimado no Auto de Fé realizado aos 9 de julho de 1662, na Praça de Coimbra, ocasião em que foram sentenciados 116 réus, 6 dos quais com a pena máxima.
Também em Portugal, era com razão que o povo se referia à sodomia como "vício dos clérigos": 1/3 dos acusados e dos condenados à fogueira pertenciam à Igreja.(39) Apesar da tradicional oposição do direito canônico à admissão de descendentes de judeus às ordens religiosas e ao sacerdócio, posto que todo candidato à clericatura devia antes comprovar sua limpeza de sangue, através do processo de genere et moribus, não obstante, é significativa a presença de descendentes de judeus no sodalício eclesiástico. Apenas um exemplo para mostrar a veracidade e extensão desta freqüência: no cabido da sé de Coimbra, em 1617, seis dos cônegos eram não apenas cristãos-novos, como fervorosos judaizantes. Alguns, também sodomitas.(40)

Nesta nossa amostra de 69 sodomitas com sangue judeu, 9 (13%) pertenciam ao ministério católico. Entre estes, o mais célebre, o Cônego Antônio Homem, que por ter-se imortalizado sobretudo devido ao seu longo e profícuo magistério na Universidade de Coimbra, deixaremos para tratar de sua biografia na parte relativa aos sodomitas letrados.

O mais destacado dos fanchonos de ascendência judaica com titulação eclesial era nada menos que Deão da Sé do Porto, o Cônego Gregório Martins Ferreira, "parte de XN por parte de seu avô clérigo, XN inteiro", 47 anos, natural de Azambuja e morador em Alenquer, doutor em cânones por Salamanca e Coimbra, filho do Médico Dr. Manoel Martins e Desidéria Ferreira. Na Torre do Tombo constam dois processos datados de 1654: "por ter parte de NX e ter falado contra nossa santa fé católica", e o segundo, por sodomia. Denunciaram-no de ter blasfemado dizendo que "o Cristo ou o Cristinho da Sé não lhe dava de comer, [e por isto] o haveria de quebrar". Contra si pesava a pecha de ser bêbado, colérico e ateísta. O mais grave, contudo, era ser publicamente infamado de sodomita, tanto "que quando fala do nefando está zombando e diz graças e anda namorando publicamente a todos meninos bonitos". É acusado de ter dito "que não se pode viver em Portugal por amor da Inquisição". E provocativo, completou: "dizem aqui que eu sou somítigo, pois afirmo na verdade que em Roma o fui, por provar de tudo, mas cá hei medo... pois isso, dou graças ao Deus de Roma, não ao de Portugal!"

Pelo relato de seus acusantes, o Deão do Porto era de fato, sodomita inveterado, tendo em sua crônica homoerótica muitos amantes e elevado número de atos pecaminosos: com o estudante Francisco Mota, 18 anos, manteve de 70 a 80 sodomias, sendo o deão o agente, ora em sua casa no Porto, ora na Quinta do Bispo; com Manoel Cardoso, 17 anos, também estudante, durante um ano e meio, outra meia centena de cópulas "à italiana"; com Manoel Góes Franco, 25 anos, seu pagem, além de muitas punhetas recíprocas, - termo registrado pelos inquisidores desde os meados dos quinhentos - mais 80 cópulas anais. Escandaloso, o Deão Gregório Martins Ferreira esteve envolvido num episódio comprometedor: a divulgação de um poema com versos latinos de dois dísticos cujo mote era louvar os rapazes mais formosos do Porto - cujo eleito, neste que pode ser considerado o pioneiro dos concursos de "mister gay", foi ninguém menos que Francisco Mota, o estudante acima citado, que se tornou depois seu amante, ou melhor, como dizia o povo à boca pequena, "a mulher do Deão"... Em sua crônica homoerótica consta um aventura no Palácio do Príncipe de Piombino, Duque de La Garda, a três léguas de Roma, com Francisco Maria Antinori, pagem de espada do dito Príncipe.(41)

O 8º Caderno do Nefando de Lisboa, em 1651, registra outro caso de destacado eclesiástico ao mesmo tempo cristão-novo e sodomita: o procurador da Mitra do Arcebispado, o clérigo Antônio Vaz de Sousa. Segundo um seu denunciante, "ele dá grande escândalo com o modo e liberdade com que fala em molices, gabando-se de que as tem cometido com muitas pessoas ilustres... dizendo que gostava de homens que tivessem membros grandes e que aquele era seu gosto... e dava muito dinheiro às pessoas com quem cometia molice...".(42)

Outro sacerdote também de nação, Gabriel Dias Ferreira, 28 anos, filho do mercador Duarte Mendes Ferreira, XN, era natural e então cônego da Sé da Ribeira Grande, em Cabo Verde (1654). Nesta nossa lista, é o que demonstrou ter o maior número de cúmplices: 82 rapazes! Era um pederasta incorrigível: todos seus parceiros são adolescentes de 12 a 18 anos; mais da metade escravos, alguns seus, outros de vizinhos,; muitos deles, instrumentistas no coro da dita catedral. Com alguns o sexo começou de forma romântica: com Garcia, 13 anos, "assentado em uma área, se deitou ele confitente no regaço do menino para o catar (cafuné) e ali lhe meteu a mão na braguilha e lhe pegou no membro viril e o mesmo fez o dito menino e cometeram uma sodomia, sendo cônego o agente". Com Domingos Rois, mulato, 12 anos, músico, com quem praticou diversos atos sensuais, "sempre lhe dava alguma cousa, inda que de pouca consideração, alguns vinténs, papel e ataca". De alguns amantes, este cônego meio cristão-novo nem sequer lembrava o nome: "passando pela sua porta um negro de 16 anos, que não conhecia e por lhe parecer bem, o chamou e o persuadiu que cometessem o pecado sodomia e penetrou-lhe o vaso traseiro e lhe deu 2 vinténs."

Ao ser julgado, o Inquisidor Pedro Castilho, considerado pelos próprios sodomitas da época, como extremamente severo contra os fanchonos, considerou o dito cônego "devasso e prejudicial pelo cometer com muitos rapazes negros e boçais e ser dos primeiros denunciados daquela parte donde parece não havia notícia do dito crime antes dele". Malgrado o elevado número de cúmplices, foi condenado a 10 anos de galés, sendo levado em consideração seu status de "pessoa de qualidade como Deão da Sé".(43)

Também condenado à mesma pena, 10 anos de galés, foi outro clérigo de missa, Antônio Girão, 48 anos, "parte de XN", filho do advogado Álvaro Girão e Helena Torres.(44) Morava em Lisboa, no Hospital dos Palmeiros. É descrito como alvo de rosto, cãs e fala afanchonada. Preso em 1620, é um dos mais abastados desta nossa lista de marranos sodomitas: em seu inventário constou possuir 12 mil réis em moedas de ouro e prata, finos móveis e muitas roupas, telas à óleo, livros, casas, um olival, uma vinha, vários objetos de prata. Contra si pesavam sete denúncias de atos homoeróticos, inclusive com devassidão, sodomisando certa vez a um jovem, na frente de outro, com o intuito de estimular a um rapaz relutante, que também cedesse à sua volúpia. Com outro cúmplice, gabou-se das qualidades de um de seus amantes, dizendo: "meu santo, eu tenho homem que é como umas dobras de ouro e come trigo do Alentejo!" Como foi diminuto em sua confissão, na casa de tormentos, recebeu um trato esperto na roldana, sendo levantado até o libero. Não havendo absoluta certeza que praticara a sodomia perfeita, deixou de ter seus bens seqüestrados, mas como outros sacerdotes envolvidos com somitigarias, foi suspenso do exercício das ordens e de pregar, condenado a 10 anos de galés ao remo, sem soldo. Após dois anos vivendo nas galés, alegando e atestando estar doente, conseguiu o abrandamento de sua sentença: foi degredado para o Brasil. Cá chegando, envia novo requerimento aos senhores inquisidores, dizendo ter sofrido muitos naufrágios ao cruzar o oceano, chegando finalmente à Paraíba, "onde padece extremas necessidades e estando doente na dita terra, sem ter pessoa conhecida nem mais que as esmolas dos fiéis e de um Mosteiro de Santo Antônio com que não pode sustentar", pede licença para usar de suas ordens clericais, obtendo tal permissão três anos depois. Na época, o valor de uma missa celebrada diariamente dava perfeitamente para cobrir as despesas de um velho sacerdote no ultramar...

Há igualmente notícia de cristãos-novos sodomitas vivendo no seio das ordens religiosas, muito embora tenha sido mais rígida a exclusão dos descendentes de judeus aos noviciados dos conventos e mosteiros do que nos seminários do clero secular. Os jesuítas eram exceção, demonstrando sempre maior tolerância vis-a-vis os descendentes de judeus do que as demais religiões, sobretudo após a canonização de Santa Teresa Dávila, no ano do Senhor de 1622. Poucos anos depois, em 1630, no convento dominicano de Benfica, nos arredores de Lisboa, viveu o cristão-novo Frei João de Sousa, 27 anos, filho de Simão de Sousa, de nação, ourives estabelecido na Rua do Ouro, no Rossio. É descrito como "gentilhomem, ruivo, grosso, não alto de corpo, nariz grande, refeito de corpo, branco de cara".(45) Contra si haviam onze denúncias de fanchonices. Depois de preso, ao confessar, lembrou-se de 59 parceiros sexuais, quase todos jovens, alguns quando ainda vivia em casa paterna, outros, diversos frades, em diversos conventos da Ordem dos Pregadores. Foi condenado a jejuar a pão e água todas as sextas feiras durante um ano, proibido de sair de seu convento. Certamente com a conivência de seus superiores, desobedeceu à sentença, viajando para Castela por 4 meses e para a Itália, onde na Inquisição Romana, por ordem de Sua Santidade, confessou suas culpas, conforme consta nos papéis que na volta, entregou ao Inquisidor Geral, incluindo uma carta do Cardeal Cremona, datada de 1637, na qual informa que o dominicano permanecera quatro anos em Roma vivendo constantemente, confessando-se duas vezes no Santo Ofício, "com muitas lágrimas, solicitando que tão horrendo emendado seja tratado com misericórdia como se fosse à sua própria pessoa".(46)

É na categoria de letrados onde vamos encontrar o maior número de filhos de Sodoma e de Abraão: cinco estudantes, e cinco bacharéis, sendo quatro professores e um advogado. Embora os estudantes, via de regra, tenham sido denunciados mais como cúmplices eventuais de outros sodomitas, sem abertura de processo formal, um destes jovens, contudo, teve a infelicidade de ser condenado à pena máxima da fogueira.

Luís Simões, era meio cristão-novo, 25 anos, morador em Lisboa. Seu pai, que lhe deu seu mesmo nome, já falecido, tinha sido boticário da Rainha.(47) Era estudante de artes no Convento de São Domingos, preso em 1611. Consta em seu processo que "andava em traje de estudante". Contra si depuseram quatro cúmplices, três dos quais, também cristãos-novos: na casa do licenciado cristão-novo Bartolomeu de Salzedo, sodomita contumaz, Luís Simões cometeu cópula anal com outros dois jovens de sua nação, Baltasar Nunes Rosa, 21 anos, casado e com Antônio Nunes. Também com outro cristão-novo, Anrique d'Orta, letrado, praticou "menage-à-trois", constando ainda mais um de sua nação entre seus cúmplices: Rodrigo Alvares, XN, 14 anos, filho do médico da Relação, que ao depois se meteu na Ordem de S. Francisco, continuando a manter contatos homoeróticos mesmo após receber a rasura de frade.
Neste caso, os inquisidores divergiram quanto à punição do estudante: um propôs 10 anos de galés; outro, que recebesse um trato esperto na polé; um terceiro, que fosse açoitado publicamente. O Conselho Geral, porém, optou pela severidade máxima, "considerando a graveza do crime e a pouca esperança que há de sua emenda: que tenha seus bens confiscados e seja relaxado à justiça secular." Aos 31 de julho de 1611, na Ribeira, realizou-se o 36o Auto de Fé da Inquisição de Lisboa, onde foram sentenciados 92 réus, onze dos quais queimados, incluindo três sodomitas: dentre eles, o estudante Luís Simões, 25 anos.

Também relaxado à justiça secular foi um dos mais famosos mártires da Inquisição Portuguesa, o meio cristão-novo Antônio Homem: filho do almoxarife Jorge Vaz Brandão, cristão-novo, de sua mulher, Isabel Nunes de Almeida, nascido na primavera de 1564. Era irmão do licenciado Gonçalo Homem de Almeida, primeiro Ouvidor da Capitania do Rio de Janeiro, depois estabelecido como rico senhor de Engenho na Bahia, cuja biografia encontra-se sumariada por Anita Novinsky no seu clássico Cristãos Novos da Bahia.(48) Quando tinha 10 anos, sua avó paterna foi sentenciada no auto de fé, acusada de judaísmo.(49)

De família de medianos recursos, Antônio Homem formou-se no Colégio das Artes dos Jesuítas e em Cânones pela Universidade de Coimbra (1585), ocupando gradativamente os principais postos nesta Universidade, até chegar à cátedra como Lente de Prima de Cânones. Ordenado sacerdote, foi igualmente cônego doutoral, confessor e examinador sinodal. Possuidor de rica biblioteca e confortável residência, aparentemente era cidadão acima de qualquer suspeita: segundo suas próprias palavras, sempre teve "vida mui exemplar, modesta, composta em obras, trajo e palavras, com grande nome neste Reino e fora dele pelas suas letras e louvor de seus bons procedimentos. Celebra missa, vai ao coro do cabido, dá esmola 2 dias por semana aos pobres e outras secretas à viúvas e colégios pobres, considerado um dos mais exemplares e beneméritos sacerdotes de todo o Bispado". Era amigo de bispos, fidalgos, e até mesmo do Inquisidor Geral.

Secretamente, porém, era praticante de dois crimes hediondos: amava rapazes e seguia a Lei de Moisés. Contra si estão arquivados dois volumosos processos na Torre do Tombo, um por judaísmo com 660 páginas e outro por sodomia, com 240. Em ambos crimes estava gravemente comprometido.

Em devassa realizada em Coimbra em 1619, depuseram contra o Lente de Prima 35 denunciantes, entre testemunhas e cúmplices, que o acusam de grande quantidade de atos homoeróticos, no mais das vezes, molices, raramente sodomia propriamente dita. Como Sócrates, tinha uma queda irresistível pelos adolescentes: de uma relação de 30 parceiros sexuais, o mais jovem tinha 13 anos e o mais velho 19, sendo que ¾ deles ostentavam menos de 18 anos. Com Bento Rois, 13 anos, por cinco vezes em diferentes datas, trocou incontáveis beijos, abraços, manipulação recíproca da genitália, e "tirando-lhe a camisa, ficando em couro, fazia que assim nu e despido passeasse pela casa, dizendo-lhe que era muito alvo e que folgava de lhe ver o corpo... e também Antônio Homem se despia, sem embargo de ser de dia, fazendo coxetas e sodomia, dizendo ao menino que bulisse também, e que fizesse como sua mãe fazia com seu pai, e dentro derramou semente e o réu o limpou pelo traseiro com uma toalha que tinha posta debaixo dele, encima do lençol de baixo, dizendo que a punha ali que se acertasse de cair alguma cousa, não fosse nos lençóis e que o viriam os moços que fazem a cama." Ao despedir-se, sempre lhe agradava com alguns vinténs e tostões. Nutriu grande paixão pelo jovem sobrinho do Bispo de Lamego, Jorge Mexia, com o qual o Doutor manteve amizade íntima por cinco meses, sendo espiado pelos criados pelo buraco da fechadura, que "viram os calções do estudante sobre uma cadeira, que era sinal de estar despido na cama com o Doutor."

Ao ser preso e inquirido, Antônio Homem assumiu diversos atos de molices, negando porem, penetrações, sob alegação de que "não tem potência em seus órgãos para tais atos sodomíticos e que para outros pecados lhe tinha declarado o Senhor Inquisidor que não era necessário dizê-los", posto que cabia ao Santo Ofício a perseguição e criminalização exclusivamente do cópula anal. Alguns de seus cúmplices, ao serem novamente chamados a testemunhar, retificaram suas acusações, como foi o caso de Manoel Henriques, que com lágrimas negou sua primeira denúncia, dizendo que naquela ocasião fora intimado pelos Inquisidores que com palavras ásperas o apertaram e lhe disseram que "era improvável sendo criado de Antônio Homem, e que andava com negros e brancos, não andar também com ele... e o mandaram prender dizendo que por não querer confessar a verdade que o levavam à cadeia..."

Se as provas de sodomia contra Antônio Homem não eram tão sólidas, nem graves, as de cripto-judeu eram abundantes e altamente comprometedoras. Segundo seu principal biógrafo, João Manuel Andrade, "Antônio Homem descendia de judeus por varonia, e recebera de seu pai a crença na Lei de Moisés. E um dia teve um sonho. Convenceu-se de que era a pessoa ideal para unificar os judeus secretos de Portugal e restaurar o culto do Templo de Israel, apressando deste modo a vinda do Messias. E assim organizou na cidade do Mondego uma congregação de cristãos-novos judaizantes, a que deu o nome de Confraria de São Diogo, em homenagem a um frade que fora excetuado anos antes, proclamando a excelência da religião mosaica. A confraria teve um sucesso espantoso. Chegou a ter mais de 50 membros, e ramificações em três mosteiros, onde freiras cristãs-novas tanto rezavam ao Deus dos cristãos como ao Senhor de Israel. E foi descoberto quase por acaso. É que Antônio Homem tinha um outro segredo. Apreciava a beleza adolescente masculina, o que o levou a cometer graves imprudências, que não podiam deixar de ser aproveitadas pelos seus inimigos. Uma denúncia levou a uma investigação; uma descoberta levou a outra".(50) Após dezenas de prisões de amigos e confrades, uns confessando e outros denunciando, conseguiram os Inquisidores reconstituir detalhadamente a estrutura e organização desta confraria de cripto-judeus, a principal instância organizada de judaizantes em todo período inquisitorial.

As cerimônias, ritualizadas e comandadas por Antônio Homem, com alfaias e adereços inspirados nas xilogravuras de antigas bíblias e imitando descrições ouvidas nas sentenças de outros judaizantes condenados nos autos de fé e nos monitórios divulgados anualmente pelo Santo Ofício, eram feitas secretamente, em casas de outros cristãos-novos pertencentes à dita confraria. "E estando todos no escritório da casa, com as portas da rua fechadas, puseram um bufete no meio da casa do escritório, coberto com um pano de seda ou uma alcatifa, e estando sobre a dita mesa posta uma caixa pequena com um buraco no meio por onde lançavam nela o dinheiro e tendo duas velas acesas sobre o dito bufete, estando descalços, à roda da dita casa, e encostados às paredes, com as cabeças inclinadas para baixo e descobertas, logo no princípio, estiveram assim por espaço de um quarto de hora, abaixando e levantando a cabeça e ficando todos em pé, o oficiante vestido uma veste sacerdotal da Lei Velha, ao modo de loba de clérigo, a qual era de tafetá pardo, o qual disse para todos os circunstantes que aquela era a véspera do dia Grande, o qual haviam de guardar, jejuando nele por honra e observância da Lei, na forma que fizeram os seus passados, e que aquela cerimonia naquela mesma forma se faziam ainda hoje na sinagoga de Corfu, onde continuamente ardia uma lâmpada por todas as ditas pessoas. No dia seguinte, Dia Grande, o Dr. Antônio Homem estando sentado em uma cadeira das de tela, que foram do Bispo D. Afonso de Castelo Branco, começou a cerimônia com a leitura dos salmos penitenciais, estando toda a congregação de pé. Foram distribuídos tephilim aos presentes, mas só para serem aplicados à testa. Tocou-se então a buzina duas vezes em tom baixo, que era o sinal para a congregação se juntar ao Doutor. Em cima do bufete estava um retábulo, em que estava Moisés pintado com as tábuas da Lei na mão. Na qualidade de sumo-sacerdote, o Dr. Antônio Homem foi cuidadosamente paramentado pelos seus auxiliares, e lhe vestiram uma alva , atou com um cordão de retrós e logo deu para ele vestir duas vestes ao modo de uma túnica e tunicela de que os Bispos usam quando se revestem em pontifical; e sobre ela vestiu uma veste grande, a moda de capa de asperges, que tinha umas borlas de seda e ouro, a modo de campainhas, toda à roda. E os cinco cônegos cristãos-novos presentes vestiram sua veste a modo de dalmáticas, todas de chamalote de ouro, com uma mitra de dois palmos, toda fechada acima, com trazem os Papas, nas ilhargas da qual mitra havia um modo de jóias, com ovados e com pedras que reluziam. O Sumo-sacerdote e altar foram incensados, seguiu-se a homilia do costume e depois algumas orações (em latim). Os ditos sacerdotes, enquanto o dito Antônio Homem estava no altar, estavam atras dele e viravam para os circunstantes fazendo uma grande gaia e dizendo com admiração, Jeová. Os presentes perdoaram-se mutuamente e foram abençoados um por um ao modo judaico pelo Dr. Antônio Homem a quem beijavam o pé em sinal de reverência. Depois de administrado um juramento de segredo, o sumo-sacerdote fez uma discurso final encomendando a todos que guardassem pontualmente segredo, dando-lhes logo juramento no Testamento Velho, encomendando-lhes que ainda que fossem presos pelo Santo Oficio, e estivessem a risco de morrerem, o não descobrissem, ainda que os queimassem."(51)

Após quatro anos e meio penando nos cárceres, padecendo quantidade doenças e achaques, período em que se sucederam muitas diligências, contraditas, retificações e ratificações, já tendo os inquisidores arrolado o nome de 85 membros conhecidos da Confraria de São Diogo, além de 55 freiras judaizantes de diferentes conventos, tudo confirmado por diversos de seus confrades cripto-judeus, que de fato, o Dr. Antônio Homem era o corifeu e sumo-sacerdote desta "herética pravidade", conquanto persistisse em negar a prática do judaísmo, deliberam finalmente, ser merecedor da condenação à pena de morte. Foi considerando herege, apóstata, pertinaz, negativo, dogmatista e sacerdote de judeus.

Na interpretação de seu biógrafo, a única explicação de o Preceptor Infelix negar irredutivelmente assumir suas culpas de judaísmo, podendo assim safar-se da fogueira, foi seu heróico altruísmo, evitando ter de citar os nomes de todos seus discípulos, esquivando-se, desta forma, arrastá-los à mesma pira.

Oitenta e quatro réus foram sentenciados junto com o Lente de Coimbra, no auto de fé de 5 de maio de 1624, dos quais, oito relaxados à justiça secular para serem queimados. A solenidade ocorreu na Ribeira de Lisboa, junto à Casa dos Contos. O pregador, um dominicano e deputado do Santo Ofício, escolheu o Profeta Isaías como mote, execrando a quantidade de judeus existentes no reino e que dele fugiam, a ponto que os estrangeiros, "vêm a conceber a opinião que todos os portugueses são judeus!" E completa: "Há muitos poucos anos que nos autos da fé saíam somente judeus baixos e cominheiros: vede a agora o que saem: muitos eclesiásticos, religiosos, bacharéis, licenciados, doutores e lentes, aparentados com gente nobre, com a metade somente, um quarto e um oitavo de cristãos-novos."(52)

Em sua sentença, explicitavam-se os dois motivos de sua condenação: "sendo cristão batizado, obrigado a ter e crer tudo o que tem, crê e ensina a Santa Madre Igreja de Roma, ele o fez pelo contrário, e teve crença na Lei de Moisés, declarando-se judeu... Como letrado, sacerdote e homem de qualidade, e como tal obrigado a viver impa e honestamente, dando de sua vida e costumes bom exemplo, ele o fez pelo contrário, e de muito tempo a esta parte, esquecido de sua obrigação, com muito atrevimento, cometeu o horrendo e abominável pecado de sodomia contra naturam, exercitando-o por muitas vezes com diversas pessoas do sexo masculino, sendo sempre agente."

Além do confisco de todos seus bens, incluindo preciosa biblioteca, determinou-se que fossem derrubadas, assoladas e salgadas as casas onde se faziam as ditas solenidades judaicas, "e nunca mais se tornem a reedificar, levantando-se no mesmo sítio um padrão alto, com letreiro que declare a causa pela qual se derrubaram e salgaram." Foi queimado vivo.

De todos os cristãos-novos sodomitas denunciados e/ou processados pelo Santo Ofício, Antônio Homem foi, sem a menor dúvida, o mais envolvido com o resgate do judaísmo no Reino de Portugal. Abnegado e altruísta, negou sua crença herética a fim de não desgraçar a vida de muitos que o veneraram como sumo-sacerdote da Lei Antiga. Embora assumisse ter praticado inúmeros atos homoeróticos, negou até o fim a prática da sodomia perfeita, o único ato considerado crime: detalhe crucial na ótica da processualística inquisitorial, detalhe insignificante aos olhos dos seus contemporâneos e na avaliação hodierna, na medida em que crivo definidor de alguém ser homossexual, não passa necessariamente pela cópula anal, mas pelo desejo erótico e afetivo pelo mesmo sexo, coisa jamais negada pelo lente de Coimbra. Detalhe significativo: o irmão de Antônio Homem, o senhor de engenho Gonçalo Homem de Almeida, ao saber de sua execução, teria dito "agora ele está mais honrado que nunca!", conservando na capela de seu engenho uma pintura de Santo Antônio, que segundo seus vizinhos, era o próprio retrato de seu irmão, Antônio.(53)

Já que estamos no recôncavo da Bahia, antes de concluir, conviria concentrar nossa atenção no que os documentos ensinam a respeito dos cristãos-novos envolvidos com o homoerotismo no Brasil. Localizamos até o presente onze casos, a maior parte denunciados na primeira e segunda visitação dos Santo Ofício ao Nordeste, portanto, entre os anos 1592-1620.(54) Dos onze denunciados, o mais jovem cristão-novo foi Jorge de Souza, 17 anos, morador em Pernambuco, que manteve diversas cópulas sodomíticas com um sapateiro de Olinda. Em sua sentença, o Visitador escreveu: "respeitando-se porém ser menor e fraca compleição e poucas carnes e não ser [apto] para galés e outras considerações pias que se tiveram, determinam que tome quatro disciplinas [açoites] secretas no cárcere com o salmo miserere mei deus, confesse de confissão geral de toda vida, e seja degredado 5 anos para Angola e em cada um confesse nas quatro festas, comungue a conselho do confessor, e em cada dia que comungar, reze os salmos penitenciais de Davi. E no degredo receberá doutrina dos padres da Companhia que serão nomeados."(55) Outro jovem "brasileiro" também embaraçado nas malhas da Inquisição foi Duarte Fernandes, "meio de nação", 18 anos, "servente de mestre do navio", natural de Matosinhos e então residente em Salvador. Praticara o mau pecado quando há cinco anos passados, morou em Pernambuco, tendo como cúmplice seu primo coirmão, Miguel da Fonseca, também XN e mercador. Segundo o mais jovem, ele fora forçado ao pecado à custa de muita pancada e açoites, e que seu primo "é homem muito sensual e já andou por Itália e Flandres, donde devia trazer o dito vício" - idéia bastante espalhada tanto no Reino como no Novo Mundo, atribuindo-se à Itália e aos seus naturais, o excessivo gosto pelo "vício italiano". Outro sodomita também com 18 anos era mameluco: Diogo Heriques, 18 anos, morador no Caminho de São Bento, em Olinda, denunciado na Visitação de 1595. Era filho do mercador Miguel Heriques, XN, descendente de judeus de Flandres e de uma nativa do gentio da terra. Foi inculpado em 5 cópulas sodomíticas, três como agente e duas como paciente. Esclareceu aos inquisidores que "nunca tivera cópula carnal com mulher nenhuma, nem branca nem negra". Foi condenado a três anos nas galés, no Reino.(56) O mais velho destes cristãos-novos, Manoel da Maia, 40 anos, dono de um trapiche de melado na capital da Colônia, casado, confessou ter cometido há 16 anos passados o pecado nefando com um fidalgo já falecido.
Vários dos cristãos-novos sodomitas residentes no Brasil tinham experiência de longas viagens, enquadrando-se alguns na figura clássica do judeu errante. Um dos mais era o mercador João Batista, XN, 33 anos, solteiro, filho de Francisco Rois Montemor e Felipa Taeros, "judeus de Selonica, Judéia e Turquia, donde ele fugiu para Roma e de lá para Lisboa", constando já ter sido anteriormente acusado na Casa do Rocio por culpas de judaísmo. Como ele próprio assumiu, em confissão registrada nos Estaus de Lisboa, sua crônica homoerótica começara na Turquia, em 1578, onde teve várias cópulas sodomíticas, ora agente, ora paciente, com turcos e judeus. Foragido na Itália, primeiro foi duas ou três vezes possuído por outro cristão-novo residente em Florença, ao depois, em Roma , num banho turco, copulou duas vezes com um ragazzo italiano. Na costa africana, na ilha de São Tomé, sodomizou por volta de 15 negras - pratica também encontrada entre outros sodomitas bissexuais, embora predominantemente homófilos. Na Bahia, praticou somitagarias com dois rapazes, entre eles Pero de Leão, XN, de tradicional família judaica, que depois mudou-se para Pernambuco.(57)

Dentre os cristãos-novos do Brasil inculpados em sodomia, três estudantes e um advogado: Jorge Moniz, XN, 27 anos, estudante de filosofia no Colégio da Companhia da Bahia, com pai e mãe da nação, então moradores em Sergipe del Rei. Tinha em sua crônica homoerótica dois cúmplices, um cristão-velho e um mameluco. O segundo escolar cristão-novo e sodomita do Brasil remete-nos novamente à "grande inquirição de 1646", episódio descoberto e tão bem analisado pela mestra Anita Novinsky . Manoel Leão, primeiro estudante, depois ourives, era membro de destacada família hebréia, tendo sido surpreendido na Torre do Colégio dos Jesuítas, sem calças, praticando "descaração" com seu colega apelidado Perene. Foi flagrado por um sacerdote que os ameaçou de "mandar queimá-los, e eles de joelhos imploraram que não os descobrisse". Nesta mesma inquirição foi denunciado um judeu conhecido como Maia, residente na Bahia, que certa feita, na Praia Grande, estando o mar revolto e começando a chover, "tirou as calças, virou o traseiro para o céu e dizia: 'acaba de chover somítigo', referindo-se a Deus ou ao céu''. Aliás, não foi o único a associar Deus à homossexualidade: o próprio Gregório de Mattos, nosso Boca do Inferno, fora denunciado ao Santo Oficio por ter proferido a nefanda blasfêmia, garantindo que poderia provar pelas Escrituras que Jesus Cristo era sodomita.(58)

Doroteu Antunes, 18 anos, é o último somítigo com sangue israelita, que herdou do lado de sua mãe, Ursula de Arão, a cair nas malhas do Mostrum Horribilem: natural o Rio de Janeiro, "bem parecido e trigueiro", representava em comédias públicas travestido de mulher. Foi amante, tanto no Rio de Janeiro quanto na Bahia, do estanqueiro de fumo, Luiz Delgado, um dos mais "incorrigíveis" fanchonos de nossa história.(59) Foram ambos presos e enviados para os cárceres secretos do Rocio em 1689. Apear de terem vivido prolongado e comentadíssimo romance, coincidente, viveram num sítio arrendado dos jesuítas na mesma época em que o Padre Antônio Vieira era o provincial da Bahia. Já que não havia provas de ser culpado no crime de sodomia perfeita, o estudante e ex-ator-transformista foi condenado tão somente a três anos de degredo em Castro Mearim, no Algarve.(60) Sua cristãnovice atrapalhou-o certa feita, quando tentou tirar atestado de pureza de sangue para entrar no seminário: contudo, nada consta em seu processo que sugerisse ter fé ou praticasse a lei de Moisés.

O mais ilustrado nesta amostra de sodomitas do Brasil com ascendência judaica foi o lisboeta Felipe Thomás (de Miranda), "de nação", 50 anos, graduado em Cânones por Coimbra, filho de Diogo Freire e Guiomar Thomás, que saíra sambenitada num Auto de Fé. Vivendo há 20 anos nos Brasis, casado, um filho natural de 6 anos, homem rico, possuía 30 escravos, duas casas e um canavial. Segundo Anita Novinsky, era dono de 22 fazendas com plantações de cana na Ilha da Maré. Foi denunciado em 1618 pelo Chantre da Sé da Bahia, informando que o advogado fugira previamente de Pernambuco, há 12 anos passados, "pela morte de um moço seu criado, o qual o matou pelo ter acusado de cometer ambos o pecado de sodomia". Contra si pesavam mais três denúncias de atos sodômicos com diferentes cúmplices, contando ser "tão infamado no pecado nefando na Bahia e em Pernambuco, que anda em provérbio entre brancos e negros". Corria também à boca pequena que andava livrando-se do mesmo crime junto à justiça secular. Preso em 1619, por judaísmo, foi torturado por ter blasfemado, "chamando à Nossa Senhora e à Santíssima Trindade de muita merda". Foi condenado a abjurar de levi. Se voltou ao Brasil, não se sabe.(61)

O único caso de uma cristã-nova envolvida com o lesbianismo até agora localizado na Torre do Tombo remete-nos à Ilha de Itaparica, no Recôncavo da Bahia, no ano do senhor de 1592. Trata-se de Guiomar Piçarra, filha de Belchior Piçarra e Maria Rois, ambos de nação. Viera do Reino quando pequenina, e sendo moça de 12 para 13 anos, quando morava no Rio Vermelho, juntamente com Mécia, negra da Guiné, "chegaram ambas a tão desonesta amizade, que duas ou três vezes, em diferentes dias, se ajuntaram em pé, uma com outra, com as fraldas afastadas, abraçando-se, combinando e ajuntando suas naturas e vasos dianteiros um com o outro, e assim se deleitaram como homem com mulher, porém não se lembra se cumpriram..." Ao ser perguntada, um quarto de século depois, se tinha consciência que tais ajuntamentos eram sodomia, respondeu saber que eram "senão pecados mortais." Pagou $672 réis das contas processuais e foi absolvida.(62)

À guisa de conclusão

Após acompanharmos, em grandes pinceladas, as relações entre judaísmo e homossexualidade, pontuando-as desde os tempos bíblicos, passando pela Idade Média, privilegiando a reconstituição dos principais traços da vivência dos cristãos-novos sodomitas luso-brasileiros perseguidos pelo Tribunal do Santo Ofício, podemos detectar algumas tendências observadas a partir destas biografias que permitem-nos avançar a discussão etno-histórica tanto do judaísmo quanto da homossexualidade.

Viver escondido para sobreviver: numa sociedade marcada pela intolerância religiosa e moral, onde professar a crença em outra religião ou adotar sexualidade dissidente poderia redundar em prisão, seqüestro de bens, infâmia, tortura, degredo ou até à pena de morte - a solução encontrada pelos desviantes/criminosos foi a dissimulação, o disfarce, o fingimento, a hipocrisia. Como muito bem definiu o Padre Manuel Bernardes, "Simular é fingir o que não é; dissimular é encobrir o que é."(63) Assim viveram os cripto-judeus e os sodomitas encobertos: no recôndito de suas casas, clandestinidade, nas trevas, nos sítios mais ermos. Os mais descuidados e escandalosos, caíram nas garras do Monstrum Horribilem. Viver na condição de cripto ( "escondido, oculto, obscuro") implicou na construção de uma complexa subcultura, onde uma série de sinais diacríticos eram conhecidos apenas pelos iniciados e membros destes subgrupos clandestinos.

Orgulho judaico e vergonha homossexual: confrontando a história de vida destes judeus homossexuais denunciados e/ou processados pela Inquisição Portuguesa, e ampliando esta amostra com centenas de outros processos de judaísmo e sodomia consultados, constata-se uma grande distância entre o nível de consciência, identidade e afirmação pessoal e social observada entre judaizantes e sodomitas. Enquanto contam-se aos milhares os filhos de Abraão que desenvolveram sua auto-estima como grupo diferenciado, considerado pela sociedade global lusitana como inferiores, de sangue impuro, chamados de cães e porcos (marrano), entre si e no íntimo de suas almas, os judaizantes se consideravam o povo eleito, detentores da verdadeira fé e da única lei salvífica, superiores em inteligência e habilidades aos cristãos-velhos. Alguns chegaram a desenvolver tamanha hostilidade ao catolicismo, que profanavam secretamente os símbolos mais sagrados da religião de Cristo. Neste sentido, constata-se que número dos judeus convictos, verdadeiros mártires, que preferiram morrer queimados do que abjurar a Lei de Moisés é muitíssimo mais alto do que qualquer outra categoria de réus. Do lado oposto, não atinge uma dezena o número total dos sodomitas que chegaram a esboçar um débil discurso defensivo de sua orientação sexual, contando-se nos dedos de uma mão, os que ousaram afirmar a excelência do "amor que não ousava dizer o nome". Vergonha, culpa, homofobia internalizada, egodistonia, complexo de inferioridade e alienação foram os sentimentos e condutas predominantes entre os milhares de sodomitas e fanchonos, mesmo os mais explícitos e escandalosos. Só um destes judeus sodomitas, condenado mais por seus desvios sexuais do que pela heterodoxia de sua fé, o citado Deão da Sé do Porto, foi quem assumiu com certa galhardia, um discurso apologético de seus amores proibidos. A diferença fundamental entre estas duas minorias deve-se a um elemento fundamental: os pais judeus ensinavam, e continuam ensinando seus filhos, a ter orgulho de sua origem, a manter as tradições de Israel. Com os jovens homossexuais sucede exatamente o contrário de todas as demais minorias sociais: quando os parentes descobrem que um filho revela tendência homossexual, é cruelmente punido com insultos, agressões, expulsão de casa. Nos tempos inquisitoriais a repressão anti-homossexual era ainda mais virulenta, pois os familiares de sodomitas processados pelo Santo Ofício ficavam inábeis e estigmatizados por três gerações - desgraça repelida por qualquer família. Por isto se repete de norte a sul de nosso país um ditado que certamente tem sua inspiração na ideologia inquisitorial: "Viado tem mais é que morrer!"

Desconstruindo estereótipos: a análise desta amostra de 69 judeus homossexuais confirma a complexa diversidade e enorme ambivalência dos representantes destes dois grupos sociais. Se o cristão-novo foi tipificado como "homem dividido", na iluminada expressão cunhada pela Profa. Anita Novinsky, imaginemos o quão mais dividido e duplamente conflitado, devia ser o filho de Abraão que se reconhecia, também secretamente, como filho de Sodoma?! Do lado dos cristãos-novos, nossos dados retificam os estereótipos do judeu rico, mercador ou usurário: entre os judeus em Portugal havia famílias bem pobres, gente da raia miúda, desclassificados. Do lado oposto, chama a atenção a enorme inclusão destes cristãos-novos na estrutura social luso-brasileira, participando do clero secular e regular, inclusive da hierarquia eclesiástica, alguns parenteando-se até com os guardiães do sangue mais "limpo" do Reino, os familiares do Santo Ofício. A presença de seis cristãos-novos atuando ao mesmo como cônegos na Sé de Coimbra e fiéis correligionários judaizantes da Irmandade de São Diogo, revela o grau de inserção, camuflagem e dissimulação da gente de nação. A mesma retificação deve ser feita relativamente aos estereótipos dos sodomitas, ainda hoje, preconceituosamente associados à efeminação, fragilidade, futilidade. Muitos dos fanchonos e somítigos referidos neste ensaio em nada se distinguiam, por sua aparência e gestos, dos demais conterrâneos: diversos viviam casados com suas mulheres, eram bons pais de família, ostentavam conduta varonil, homens bons acima de qualquer suspeita. Judeus mofinos e fanchonos escandalosos sempre existiram, porém, em número diminuto. Contudo, nossos dados confirmam alguns clichês positivos relativos a ambos grupos: por exemplo, os cristãos-novos ostentam maior escolaridade e instrução superior se comparados com os cristãos-velhos, assim como maior mobilidade espacial, incluindo viagens e moradia no exterior. Quanto aos gays, nota-se igualmente maior afinidade com atividades profissionais ligadas à religião, às artes e aos afazeres domésticos.

Principais vítimas do preconceito: os documentos inquisitoriais, sobretudo as "contraditas" constantes em muitos processos, permitem-nos sugerir que aos olhos do povo, não havia meio termo: passou de cristão-velho era judeu, assim como alguém suspeito de fanchonice, devia ser sodomita. Cristãos-novos e homossexuais eram comumente comparados e chamados de cães, antigamente, um dos insultos mais aviltantes, numa era em que chamar alguém, caluniosamente de judeu ou somítigo, poderia implicar em queixa crime contra o insultador. Um outro lado da moeda também deve ser mencionado: a indiferença e mesmo freqüência com que muitos sodomitas cristãos-velhos, inclusive sacerdotes e religiosos, mantinham relações homoeróticas ou companheirismo com cristãos-novos. O citado cônego Vicente Nogueira, um dos mais destacados moradores da célebre Casa dos Bicos de Lisboa, incluía em seu rol de parceiros sexuais, diversos descendentes de judeus.

Maior rigor inquisitorial: judeus e sodomitas foram as principais vítimas da sanha inquisitorial, tanto em número de prisões, quanto em execuções. Nossa amostra sugere que quando o mesmo réu concentrava os dois crimes, sodomia e judaísmo, o rigor inquisitorial redobrava. Eis a prova: se tomarmos a totalidade dos processados por sodomia, independentemente de sua origem étnica ou religiosa, encontramos durante todo o período inquisitorial, para o conjunto dos réus do Santo Ofício, 6% de condenações à morte na fogueira (30 num total de 450 processos); se reunirmos agora as duas variáveis, judeu e sodomita, este número sobe para 21% (6 num total de 28 processos). Ratificando: quando um único réu era ao mesmo tempo judeu e sodomita, sua chance de ser queimado era três vezes maior do que se pertencesse apenas a um destes "grupos de risco". Detalhe: a maior ou menor quantidade de sangue hebreu não contava na determinação da severidade da pena, tanto que quatro dos relaxados tinham apenas parte de cristão-novo.

Sodomitas, os mais castigados: se compararmos as penas aplicadas aos réus duplamente comprometidos com o pecado nefando e com práticas judaizantes, constata-se que os inquisidores penalizavam mais cruelmente o desvio sexual do que a heresia. Enquanto a maior parte dos cripto-judeus foram condenados a abjuração de seus erros e ao hábito penitencial temporário ou perpétuo, os homossexuais sofreram prolongados degredos ou galés perpétuas, além das dores e infâmia dos açoites públicos citra sanguinis effusionem. Segundo ponderaram os próprios Inquisidores ao julgar Luís Simões, um dos sodomitas alhures citado, "os culpados no crime de sodomia [são] mais castigados que os hereges porque estes tem penitências de cárcere e hábito de quatro ou cinco anos e os culpados de sodomia muitos anos de galés". Prova desta opção preferencial pelo maior castigo aos fanchonos é o lembrete manuscrito na capa de diversos processos de sodomia: "Este delito merece pena de morte por direito". Do total de 28 destes réus que foram efetivamente presos e sentenciados, vinte foram julgados apenas por sodomia, seis pelos crimes de judaísmo e sodomia e dois apenas por cristãnovice. Em outros termos: apenas por volta de 1/3 dos cristãos-novos sodomitas eram efetivamente praticantes da Lei de Moisés. Alguns destes talvez tenham conseguido dissimular suas verdadeiras crenças, outros, haviam herdado apenas o sangue hebreu, mas tinham, de fato, abraçado convictamente o catolicismo, ou eram indiferentes e céticos em questões de fé.

Post Scriptum: A história continua...

No mesmo ano do Senhor de 2001, quando o filme Trembling before God, de Sandhi Simcha Dubowski, todo ele consagrado à reconstituição do dia a dia do judeus ortodoxos gays, recebeu o grande prêmio do júri no Festival de Cinema Gay & Lésbico de Los Angeles; quando a cantora transexual Dana International, israelense natural de Tel Aviv, nascida Sharon Cohen, de uma família tipicamente judia e ortodoxa, tornou-se mundialmente conhecida após sua vitória no Eurovision Song Contest; quando em Israel grupos gays e lésbicas funcionam livremente, beneficiando-se os casais do mesmo sexo, de direitos e garantias legais, realizando no último Dia do Orgulho Gay uma grande e alegre manifestação pública, onde homossexuais israelenses marcharam ao lado de seus irmãos gays palestinos; eis que no Brasil, lastimavelmente, o mais midiático líder religioso judeu continua fustigando os homossexuais, não mais com as pedradas da Lei de Moisés, nem com a fogueira dos Inquisidores ou os campos de concentração dos Nazistas - mas condenando a homossexualidade com argumentos há muito superados pela ciência. Disse o Rabino Henry Sobel: "O homossexual tem o direito de escolher a sua maneira de viver. O homossexualismo contraria a meu ver, a própria anatomia dos sexos, que foi visivelmente criada para relações heterossexuais. E também, na importância da familiar, não pode ser subestimada a continuidade das gerações, que para nós, judeus, é muito importante. Por esses motivos, eu condeno o ato homossexual, mas respeito a dignidade do homossexual como filho de Deus."(64)

Eis minha reposta, publicada na semana seguinte na mesma revista:

RABINO HOMOFÓBICO

O Rabino Sobel ao condenar o ato homossexual, ao afirmar que a homossexualidade contraria a anatomia dos sexos, que ameaça a continuidade das famílias e a continuidade das gerações, comprova ser absolutamente ignorante em história social, sexologia e antropologia, pois respeitáveis pesquisas nestas ciências comprovam exaustivamente o contrário do que afirmou. Infelizmente, não é a primeira vez que o vaidoso rabino agride os homossexuais, declarando-se repetidamente contrário ao projeto de Marta Suplicy a favor da parceria civil. Sobel usa a mesma tática das baratas - morde e assopra: diz que os gays são filhos de Deus, mas fornece munição pesada, errada e discriminatória, usada pelos neonazistas quando massacram gays, lésbicas e travestis. Os homossexuais se tornaram os judeus da atualidade: oprimidos, caluniados, discriminados, inclusive por descendentes daqueles que sofreram juntos, nos mesmos campos de concentração, os horrores da intolerância. "(65)

NOTAS

1.No Prelo: Livro em Homenagem a Profa. Anita Novinsky, Organizado por Lina 2.Gorenstein, SP, 2002.

2.Gênesis, 12; 13; 15

3.Gênesis, 18; 19

4.Levítico, 18:22

5.Yamaguchi, E.M. "Cultic Prostitution: A Case Study in Cultural Diffusion", Orient and Occident, Kevelear, Verlag Butzon & Becker, 1973: 213-222; Horner, T. Jonathan. 7.Jonathan Loved David: Homosexuality in Biblical Times. Philadelphia, Westminster, 1978

6.Gênesis, 12:1; 13:14; 15:18.

7.Bullough, Vern L. Sexual Variance in Society and History. Chicago, The Chicago University Press, 1976

8.Ausejo, Serafin. Diccionario de la Biblia. Barcelona, Editorial Herder, 1964

9.II Samuel, 6:14.

10. II Samuel, 1:26

11.Segundo a moderna exegese, Rute e Naomi representariam igualmente um exemplo de relação lésbica até hoje camuflada pelos tradicionalistas (Livro de Rute, 1: 16-17) Cf. Russell, Letty (ed) Interpretación Feminista de la Biblia. Bilbao, Desclée de Brouwer, 1995

12.Mormando, Franco. The Preacher's Demons. Bernardino de Siena and the Social Underworld of Early Renaissance Italy. Chicago, The University of Chicago Press, 1999, p. 178

13.Boswell, J. Christianity, Social Tolerance and Homosexuality. Chicago, The University of Chicago Press, 1980, p. 334

14.Schmitt, Arno & Sofer, Jehoeda. Sexuality and Eroticism among Males in Moslem Societies. New York, Harrington Park Press, 1991; Murray, S. & Roscoe, W. Islamic Homosexualities. New York, New York University Press, 1997

15.Dynes, op.cit. 1990, p.147

16.Boswell, op.cit. 1980, p. 234

17.Mott, Luiz. "Justitia et Misericordia: A Inquisição Portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia", in Inquisição: Ensaios sobre mentalidade, heresias e arte, Novinsky, A. & Carneiro, M.L.Tucci (Eds), SP, Edusp, 1992:703-738.

18.Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo N.884, 10-4-1561. [Doravante abreviado: ANTT, IL, Proc. N.]

19.Mott, op. cit., 1992, p.736

20.Richards, Jeffrey. Sexo, desvio e danação. As Minorias da Idade Média. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993

21.À guisa de ilustração: no Rol dos Culpados, divulgado por Anita Novinsky, de um total de 1098 cristãos-novos do sexo masculino, 12,5% tinham o prenome João, 11,8% Manuel, 9,8% Antônio e 7,3% José. Segundo a mesma fonte, eis uma lista dos sobrenomes mais repetidos entre os cristãos-novos residentes no Brasil no século XVIII: Almeida, Alvares, Andrade, Araújo, Azeredo, Azevedo, Barbalho, Barbosa, Barros, Calaça, Caldeira, Camacho, Cardoso, Carvalho, Castro, Cavalo, Chaves, Coelho, Correia, Costa, Coutinho, Castro, Cruz, Cunha, Dias, Dique, Duarte, Duarte, Fernandes, Faria, Ferreira, Flores, Frois, Furtado, Gama, Gomes, Gusmão, Henriques, Lara, Leitão, Leite, Lopes, Lucena, Mata, Matos, Mendes, Miranda, Moeda, Montarroio, Monteiro , Morais, Nogueira, Nunes , Oliveira, Pacheco, Paiva, Palácios, Paredes, Paredes, Pereira, Pimenta, Pina, Pinheiro, Porto, Navarro, Ramalho, Ramires, Raposo, Ribeiro, Sutil, Sampaio, Silva, Simões, Siqueira, Soares, Soares, Toledo, Tourinho, Valença, Vaz, Veiga, Viana, Vieira, Viseu, Ximenes. Como se vê, impossível distinguir sobrenomes e nomes próprios de cristãos-novos, pois repetem os mesmos apelidos das mais antigas e "limpas" famílias de cristãos-velhos. Novinsky, Anita. Rol dos Culpados, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1992.

22.ANTT, IL, Proc. N. 3144, 1620

23.ANTT, IL, Proc. N. 4241, 1617/1630

24.ANTT, IL, Proc. N.1349, 1611

25.ANTT, IL, 5º Caderno do Nefando, 143-6-32, fl. 93

26.Mott, Luiz. "Pagode Português: A Subcultura gay em Portugal nos tempos da Inquisição", Ciência e Cultura, vol. 40, fev.1980:120-139

27.ANTT, IL, Proc. N.9469, 1621

28.ANTT, IL, Proc. N. 884, 1651

29.ANTT, IL, Proc. N.12637, 1597

30.ANTT, IL, Proc. N.329; Inquisição de Évora, N.5390, 1667

31.ANTT, IL, Proc. N. 301; Inquisição de Évora, Proc.N. 7526, 1656

32.ANTT, IL, Proc. N.5038, 1611

33.Carrasco, R. Inquisicion y Represión Sexual em Valencia. Barcelona, Laerte, 1985; Bray, Alan. Homosexuality in Renaissance England. London, Gay's Men Press, 1982

34.ANTT, IL, Caderno de Nefando N.9, 22-7-1651; Mott,op.cit.1980

35.ANTT, IL, Proc.N. 1441, 1620

36.ANTT, IL, Proc. N. 2303, 1610

37.ANTT, IL, Proc. N.8236, 1645

38..ANTT, Inquisição de Coimbra, Proc. N. 2775, 1661

39.Goodich, Michael. The Unmentionable Vice. Homosexuality in the Later Medieval Period. Santa Barbara, Ross-Erikson, Publisher, 1979; Mott, op.cit. 1980

40.Andrade, João Manuel. Confraria de São Diogo. Judeus secretos na Coimbra do Séc.XVII. Lisboa, Nova Arrancada, 1999, p.128

41.ANTT, IL, Proc. N. 11030, 1654

42.ANTT, IL, 8º Caderno do Nefando, 143-6-34, fl. 369, 22-5-1651

43.ANTT, IL, Proc. N. 11298, 1654

44.ANTT, IL, Proc. N. 5397, 1620

45.ANTT, IL, Proc. N. 5423, 1630

46.ANTT, IL, Proc. N. 5423, 1630

47.ANTT, IL, Proc. N. 312, 1611

48.Novinsky, Anita. Cristãos Novos na Bahia. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972, p.82-83

49.ANTT, IL, Proc. N. 15421 (Apartados), 1618

50.Andrade, op.cit. 1999, "contracapa"

51.Andrade, op.cit. 1999, p.112-113

52.Andrade, op.cit. 1999, p.238-239

53.Novinsky, op.cit. 1972, p.159

54.Todas estas referências encontram-se devidamente documentadas in Mott, Luiz. Homossexuais da Bahia. Dicionário Biográfico, Séculos XVI-XIX. Salvador, Editora Grupo Gay da Bahia, 1999.

55.ANTT, IL, Proc. N. 2552, 1595

56.NTT, IL, Proc. N. 6349, 1595

57.ANTT, IL Proc. 4307, 1593

58.ANTT, IL, Caderno do Promotor N. 29, 1646

59.Mott, Luiz . O Sexo Proibido: Virgens, Gays e Escravos nas Garras da Inquisição. Campinas, Editora Papirus, 1989

60.ANTT, IL, Proc. N. 4230, 1689

61.ANTT, IL, Proc.7467, 1619; Novinsky, op.cit. 1972, p.148

62.ANTT, IL, Proc. 1275, 11592

63.Bernardes, Padre Manuel. Nova Floresta, IV, p. 5

64.Istoé, n.1661, 1/8/2001, p.13

65.Istoé, n.1662, 8/8/2001, Cartas do Leitor.