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quinta-feira, 28 de junho de 2012

A Bíblia é Homofóbica? (Um anti-contra-argumento)

Por Paulo Stekel



Este artigo, a despeito de seu subtítulo, pretende ser um complemento e uma contribuição ao debate mais do que algum tipo de contestação aos dois artigos anteriores publicados neste blogue com o mesmo título (os quais recomendamos que se leia antes do nosso):




Um argumento pretende defender uma ideia lançando mão de algumas premissas iniciais. No caso em questão, consideramos como argumento a ideia de que a Bíblia é homofóbica.

Um contra-argumento ou retribuição é uma objeção a uma objeção, podendo ser usado para rebater uma objeção a uma premissa. Ele pode pretender lançar dúvida sobre a veracidade de uma ou mais premissas iniciais de um argumento, ou mostrar que os argumentos iniciais não se seguem a suas premissas de maneira válida, ou pode dar pouca atenção às premissas e simplesmente tentar demonstrar a verdade de uma conclusão incompatível com o que é estipulado no argumento inicial. No caso em questão, o contra-argumento é a ideia de que apenas partes da Bíblia são homofóbicas, enquanto outras parecem enaltecer a homo-afetividade (casos Davi-Jônatas, Rute-Noemi).

Com o que chamamos de anti-contra-argumento pretendemos lançar uma terceira ideia: a de que a Bíblia não é um texto coeso, de que entre o Antigo e o Novo Testamento há muitas contradições, de modo que querer defini-la no seu todo como sendo homofóbica ou não-homofóbica é esquecer que a homofobia depende mais da interpretação que se a dá HOJE.

Se se lhe dá uma interpretação literalista, conectada de modo radical a um momento histórico (o levítico-deuteronomista, por exemplo) e sem qualquer recontextualização para com o nosso tempo atual, isso pode ser entendido como uma interpretação homofóbica.

Por outro lado, se se lhe dá uma interpretação contextualizadora e moderna, que considera as mudanças históricas dentro do próprio texto bíblico (as mudanças de costumes e aplicação de leis entre o Antigo e o Novo Testamento, por exemplo) e as adaptações do homem ao longo do tempo, bem como os novos conceitos biológicos, sociais e tecnológicos, isso pode ser entendido como uma interpretação não-homofóbica e naturalmente inclusiva.

João Marinho no texto que abriu este debate deixou claro que mesmo após o surgimento da Teologia Inclusiva a homofobia dentro do texto bíblico não pode ser maquiada: “Mesmo com a teologia inclusiva e supostas passagens pró-homossexualidade, não devemos maquiar a homofobia e demais preconceitos de certos textos bíblicos. (…) Na verdade, a questão do embate entre as diferentes formas de teologia inclusiva e as vertentes mais conservadoras, para mim, é mais profunda do que escolher um lado ou outro.”

Com certeza. E, ao termos dividido acima a interpretação bíblica entre a literalista e a contextualizadora, não estamos falando, no caso da segunda, em Teologia Inclusiva. Estamos falando em uma interpretação naturalmente inclusiva. Qual a diferença? No caso da Teologia Inclusiva, frequentemente, sua consequência é a criação de “igrejas” alcunhadas de “inclusivas” que nem sequer são aceitas pela maioria dos grupos cristãos como sendo igrejas cristãs. Já, uma interpretação naturalmente inclusiva deveria estar disponível em todos os grupos cristãos, o que seria muito mais producente para a inclusão da pessoa LGBT que escolheu para sua vida religiosa o Cristianismo.

Provavelmente o surgimento das Igrejas Inclusivas tenha se dado pela resistência dos grupos cristãos existentes até então em se permitirem a uma interpretação contextualizadora como descrita acima. Para alguns, incluindo muitos gays cristãos, tais Igrejas Inclusivas são uma aberração dentro do Cristianismo, já que este deveria acolher a todos sem distinção, sem preconceito e sem demonização. Para outros, elas são algo legitimamente cristão, embora o texto de que se valem apresente dificuldades exegéticas consideráveis no caso do tema homossexualidade e homo-afetividade. Em nosso anti-contra-argumento dizemos que tais Igrejas são um mal necessário enquanto a inclusão do indivíduo LGBT precisa ser algo “negociável” com relação à maioria cristã.

Walter Silva, no segundo artigo desta polêmica, escreveu algo aparentemente óbvio, mas que não custa relembrar, dada a sua gravidade: “(…) questionar se a bíblia é homofóbica pode parecer mesmo uma grande ingenuidade, quando não uma pilhéria grotesca.”

É o que parece. E, muitos comentários recebidos pelos dois artigos até aqui evidenciam exatamente esta certeza: a de que a Bíblia é homofóbica.

Mas, João Marinho, ao citar Davi e Jônatas, já havia argumentado: “Agora, porém, assumamos que realmente tenha havido um relacionamento gay entre Davi e Jônatas, que a história contada seja essa – uma homofilia bíblica, em vez de seu oposto, a homofobia. Isso descartaria a existência da mesma homofobia na Bíblia?

Não é porque os livros de Samuel, Reis e Crônicas exaltam o relacionamento entre Davi e Jônatas e ambos trocaram declarações carinhosas que o Levítico e suas injunções a certas práticas homoeróticas deixam de existir.”

Realmente, não. Contudo, há uma polarização moderna evidente quando os teólogos inclusivos tendem a argumentar (conforme o artigo de João Marinho) que “a Bíblia não é, ou talvez não seja, toda homofóbica classicamente falando, como os cristãos conservadores tanto gostam de retratá-la” e os teólogos conservadores dizem que “a Bíblia não é nada homofóbica”.

Para João Marinho “o que é producente, portanto, é tomar a Bíblia pelo que ela é: um livro histórico-religioso, com um sem-número de contradições, inclusive com relação à homossexualidade”. Isso nos leva ao terceiro argumento: a Bíblia está desconectada de nossa realidade moderna exatamente por ser um livro histórico-religioso escrito ao longo de milhares de anos. Isso explica as inúmeras contradições que apresenta no tocante a vários assuntos.

Um dos argumentos mais usados pelos defensores de Levítico para atacar os homossexuais é o de que, segundo estes, não apenas o Antigo Testamento condena os atos homossexuais, mas também o Novo Testamento. As demais leis judaicas de Levítico e Deuteronômio que não aparecem no Novo Testamento teriam sido “abrandadas” pelo Cristianismo, como as proibições alimentares, por exemplo. Mas, como Coríntios ataca os gays, nada feito. Será? A posição inferior da mulher diante do marido, seu status de propriedade do homem, de que deve calar-se, etc, aparece em ambos os Testamentos da mesma forma que as críticas aos eunucos, efeminados e sodomitas. Contudo, qual cristão hoje imagina dizer para sua mulher manter-se calada numa conversa porque Deus assim manda na Bíblia? A misoginia foi “abrandada”, mas a homofobia não? Conveniências? Talvez. Mas, que muitos cristãos machistas gostariam de poder calar suas mulheres em público sob a autoridade bíblica, ah, isso sim!

O que fazer então? Continuar cristão gay em meio a homofóbicos, aderir a Igrejas Inclusivas ou deixar de ser cristão? João Marinho: “(...) não posso esperar que todos se tornem ateus apenas por serem LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), quando eu mesmo, por sinal, não sou.”

Não há necessidade de gays cristãos deixarem de ser cristãos. Por que? Porque todo e qualquer trecho bíblico sobre homossexualidade está sujeito a interpretações diversas. E, isso tem um motivo simples, mas crucial: na época bíblica ninguém tinha consciência de orientação sexual, de que uma delas é a homossexual, de que isso é natural e de que não pode ser mudada. Se tivessem tal consciência, as orientações LGBT estariam na conta do que foi criado por Deus e não estariam sujeitas às leis mosaicas e deuteronomistas, que são mais tentativas de regrar a vida privada dos israelitas e judeus que preceitos divinos universais. Em suma, não são pecado, mas interdições, a maioria delas, inclusive, dirigidas aos heterossexuais. E, interdições, não levam ao Inferno. Apenas o pecado não remido pelo arrependimento leva ao Inferno, segundo as crenças cristãs.

Como bem pontuou Walter Silva, na época bíblica nem sequer havia a consciência de existirem heterossexuais e homossexuais. Só se tratava do sexo como entre macho e fêmea. Não havia a diferenciação entre sexo biológico, gênero, identidade e orientação sexual. Para os antigos semitas tudo se resumia no macho-fêmea, e pretendiam que era assim também no reino animal. A Ciência moderna colapsou tal ideia ao descobrir animais andróginos, hermafroditas, e espécies que podem até mudar de sexo sob certas circunstâncias. Com que animais estas espécies se alojaram na Arca de Noé???

O que quero deixar claro com meu anti-contra-argumento é que, antes de alcunharmos o livro inteiro chamado “Bíblia” como homofóbico, devemos declarar que a Bíblia ignora tudo o que sabemos hoje sobre a sexualidade humana. Então, a Bíblia é ignorante quanto à pessoa LGBT e, por tal contraste com nossa realidade atual, figura como homofóbica. Além disso, no momento em que fanáticos preconceituosos desvirtuam os textos e traduzem termos antigos com palavras modernas – como quando se traduz “sodomita” por “homossexual” -, a ideia “mastigada” e falaciosa lançada para a maioria é a de que a Bíblia condena os gays.

Mas, como pode um texto que sequer concebe a existência de gays condená-los? Tudo no texto bíblico é escrito numa ótica homem e mulher, macho fêmea. Ele não concebe sexo entre homens além da noção de algo não-natural que deve ser interdito; não concebe o amor entre pessoas do mesmo sexo que não seja o amor paternal-filial-fraternal pois não acredita que tal amor seja possível em sua visão normativa homem-mulher; não concebe a união/casamento entre pessoas do mesmo sexo porque não percebe uma pessoa que mantém relações com outra do mesmo sexo como alguém que possa amar esta outra pessoa e desejar viver toda a vida com ela de modo equivalente a um homem e uma mulher.

Este argumento parece simples, mas tem implicações importantes já apresentadas por Walter Silva ao citar John Richard Boswell, autor do livro “Cristianismo, tolerância social e homossexualidade’’: "(…) Boswell foi celebrado ao expor uma interpretação revolucionária, argumentando que a igreja no início da sua trajetória e ao longo de uma parte do medievo, conviveu com a homossexualidade de forma pouco conflituosa, possibilitando inclusive o emergir de uma subcultura gay, expressando-se através de primorosos poemas e cartas eróticos de amor e amizade do mesmo sexo, escritos por bispos e clérigos cristãos.”

Isso demonstra o que dissemos sobre a ignorância bíblica a respeito da pessoa homossexual! Tal ignorância, na Idade Média, serviu para uma evidente tolerância da Igreja Católica para com pessoas com tendências ao amor pelo semelhante, o mesmo sexo, enquanto que a mesma ignorância hoje tem servido aos setores fundamentalistas que traduzem a seu gosto o texto bíblico para condenar os LGBTs. Se isso não fosse verdade, não teríamos várias Igrejas Cristãs protestantes que não se consideram “inclusivas” aceitando LGBTs entre seus fieis, ordenando sacerdotes gays e celebrando casamentos entre homossexuais. É o caso da Igreja Luterana nos EUA (no Brasil, infelizmente, não é bem assim), da Igreja Presbiteriana (também nos EUA), da Igreja Anglicana, da Igreja Episcopal dos Estados Unidos, de setores minoritários da Igreja Batista e Metodista, entre outras.

Walter Silva: “De modo contraditório os literalistas afirmam que Deus não reconheceu a categoria dos homossexuais (então qual o sentido de dizer que Deus não condena a pessoa gay?), que Deus criou somente o “macho’’ e a “fêmea’’; indivíduos gays, portanto são machos e fêmeas que se recusam a cumprir com os desígnios de sua natureza verdadeira (heterossexual).”

A questão é mais ampla: o Deus bíblico não cita “gays”, “homossexuais” ou “LGBTs” simplesmente porque desconhece sua existência. Mas, dirão os beatos, como pode Deus desconhecer o que hoje conhecemos? E, dirão os teólogos beatos, como poderia Deus reconhecer o que não existe e é uma doença, uma aberração e uma imoralidade? E, dirão os 10% da humanidade que Deus “desconhece” ou que pensa não existirem, se Deus nos desconhece ou se cala sobre nós porque não existimos, por que seus adeptos colocam na boca do Criador uma condenação que não faz sentido, dados os argumentos? Alguns setores protestantes norte-americanos entenderam isso (anglicanos, luteranos, etc.) e deixaram de adotar posturas anti-gays. Quando os cristãos brasileiros vão acordar? Quando deixarão de ouvir o vociferante e infernal discurso de Malafaia, Magno Malta, Marco Feliciano e legião, e passarão a incluir os LGBTs em suas vidas sem ódio, sem preconceito e sem demonização?

Quando dizemos que a Bíblia é homofóbica, estamos alimentando um discurso falso de que todo o cristão e de que todos os grupos cristãos são homofóbicos e contra os direitos gays.

Quando dizemos que a Bíblia não é homofóbica, pois ama o gay mas condena o ato homossexual, estamos alimentando a hipocrisia violenta daqueles cristãos que se aproveitam deste argumento para condenar os gays ao Inferno e para tentar impedi-los de conquistar direitos básicos.

Porém, quando dizemos, equilibrando as coisas:

1 – Que a Bíblia desconhece as noções modernas de sexualidade, orientação sexual, identidade de gênero, heterossexualidade, homossexualidade e bissexualidade;

2 – Que a Bíblia condena comportamentos sob a perspectiva de que sejam efetuados por pessoas vistas dentro do padrão macho-fêmea, sem alternativa diferente;

3 – Que, mesmo a despeito de tais condenações, a Bíblia deve ser interpretada, contextualizada e tornada “viva” na modernidade, sem os arcaísmos embutidos;

Quando dizemos tudo isso, fica claro que não é a Bíblia que é homofóbica – por uma impossibilidade histórica de sê-la –, mas os que a adotam hoje para fazer uma interpretação arcaica, desconectada da vida humana, dos sentimentos humanos, da realidade interna do ser humano, trabalho este que tem sido feito pela Psicologia, mas no qual a Teologia moderna apenas engatinha.

Contudo, é certo que se a Bíblia não é homofóbica por ser antes ignorante da pessoa LGBT, também não é um livro inclusivo pelo mesmo motivo!

O Novo Testamento apresenta uma noção um pouco menos ignorante da existência de uma alternativa à visão do padrão macho-fêmea (baseado na imprecisa observação dos animais pelos antigos) e homem-mulher (baseado unicamente nos gêneros evidentes física e mentalmente) ao referir-se aos “eunucos de nascimento”, como brilhantemente esclareceu Walter Silva em seu artigo: “(…) a Bíblia repudia a afeminação não natural nos homens heterossexuais, o sexo homossexual com prostitutos sagrados e a disposição de alguns heterossexuais para a luxúria ocasional com o mesmo sexo.”

A tendência “feminina” em eunucos era conhecida e aceita, portanto. O que não era aceito – ou conhecido, já que se desconhecia também a noção de orientação sexual desconectada de tendências masculinas-femininas – era um homem não-feminino que se desse ao mesmo sexo, como se “feminino” fosse. Novamente, uma tentativa sutil de encaixar mesmo os eunucos no padrão macho-fêmea, homem-mulher. Sem contar que a mulher no ato sexual, na visão judaico-cristã, é considerada como “submetida” ao homem, e não em caráter de igualdade, como hoje em dia. Então, como se considerada o submetido como inferior, assim também eram considerados, como as mulheres, os eunucos, os homens femininos e os prostitutos sagrados. Nesta noção machista-patriarcal é inadmissível um homem não-feminino deitar-se com outro não-feminino...

Já naquela época bíblica, portanto, se percebe uma tentativa de conter o fator gay (ainda nem considerado existente como hoje) dentro de uma categoria aceitável (o eunuco de nascimento), em oposição à não aceitável (o prostituto sagrado).

Atualmente, quanto ao tema, vemos radicalismos de ambos os lados: do lado fundamentalista, uma tentativa de “eugenia social”; do lado de alguns LGBT que não gostam de religião, uma tentativa de desqualificar todo e qualquer valor da espiritualidade para a vida LGBT. Extremos nunca se entendem. Podem se tocar, mas nunca se entendem.

O que desejam os “patrulheiros da moral e dos bons costumes” de origem cristã? Estes “patrulheiros” desejam que os gays voltem aos guetos, que amem seus iguais às escondidas, sem postular direitos, casamento, adoção, benefícios iguais aos dos heterossexuais... Querem, assim, promover no Brasil uma verdadeira eugenia social dos homossexuais aos moldes da proposta nazista? Jamais o permitiremos!

Quando uso o argumento da eugenia social contra gays, muitos dizem que essa comparação é um absurdo. Mas, não é. A eugenia (termo cunhado em 1883 por Francis Galton), significa “bem nascido” e é o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente. Ou seja, melhoramento genético. Hitler se baseou nisso ao imaginar que o arianos loiros heterossexuais eram mais puros e superiores aos judeus, negros, ciganos, deficientes e homossexuais.

Aplicando isso à noção de eugenia social contra gays, ela significaria a discriminação de pessoas por categorias sexuais, por orientação sexual, levando apenas a uma relativa aceitação dos gays mais “comportados”, mais semelhantes aos padrões heterossexuais, que seriam melhor aceitos na sociedade, mas nunca completamente integrados, incluídos. Contudo, continuariam sendo considerados não-aptos para a reprodução, como se, afinal, todos os gays e lésbicas fossem estéreis!!! Segundo esta eugenia social, os melhores gays seriam os do armário, os caladinhos, os que aceitam a ofensa, a demonização e a violência, de modo a nem serem percebidos pela sociedade e não constituírem qualquer ameaça a “família cristã”. Ledo engano! Não se joga para debaixo do tapete cerca de 10% da humanidade (se não for mais!) como Hitler tentou fazer com os que ele considerava inferiores.

Para finalizar, a Bíblia deve ser lida e interpretada como um livro antigo, escrito por muitos autores ao longo de milhares de anos e que não trata de todos os assuntos que interessam à vida dos fieis com a riqueza de detalhes e nos termos modernos, como se gostaria. É um livro sagrado – como todos os demais, aliás – para ser estudado, esmiuçado, esquadrinhado, e não usado como arma contra outros seres humanos por pessoas que, em geral, não entendem o que está ali escrito.

A propósito, tenho visto pastores semi-analfabetos vomitando preconceitos como certezas teológicas enquanto ouço dúvidas profundas e pertinentes de teólogos com décadas de estudos. Para os primeiros, estes analfabetos de Deus que se consideram Seus intérpretes, deixo alguns trechos do Livro da Sabedoria, atribuído a Salomão:

“O Senhor de todos não fará exceção para ninguém, e não se deixará impor pela grandeza, porque, pequenos ou grandes, é ele que a todos criou, e de todos cuida igualmente; mas para os poderosos o julgamento será severo.

Resplandescente é a Sabedoria, e sua beleza é inalterável: os que a amam, descobrem-na facilmente.
Os que a procuram encontram-na. Ela antecipa-se aos que a desejam.

Quem, para possuí-la, levanta-se de madrugada, não terá trabalho, porque a encontrará sentada à sua porta.

Fazê-la objeto de seus pensamentos é a prudência perfeita, e quem por ela vigia, em breve não terá mais cuidado.

Ela mesma vai à procura dos que são dignos dela; ela lhes aparece nos caminhos cheia de benevolência, e vai ao encontro deles em todos os seus pensamentos, porque, verdadeiramente, desde o começo, seu desejo é instruir, e desejar instruir-se é amá-la.

Mais ágil que todo o movimento é a Sabedoria, ela atravessa e penetra tudo, graças à sua pureza.

Embora única, tudo pode; imutável em si mesma, renova todas as coisas. Ela se derrama de geração em geração nas almas santas e forma os amigos e os intérpretes de Deus, porque Deus somente ama quem vive com a sabedoria!”

(Livro da Sabedoria, VI. 7-8, 12-17; VII. 24, 27-28)


Sobre o autor


Paulo Stekel é jornalista, escritor, músico, poliglota, especialista em religiões, tradições espirituais e línguas sagradas. Ativista LGBT focado na relação entre homofobia e religião, é o criador do Movimento Espiritualidade Inclusiva e possui quase uma centena de artigos sobre espiritualidade, orientação sexual, homofobia religiosa e espiritualidade inclusiva. Contatos: espiritualidadeinclusiva@gmail.com

quarta-feira, 20 de junho de 2012

A Bíblia é homofóbica? (Um segundo argumento)

Por Walter Silva


Essa questão foi colocada em debate em um fórum social e suscitou um interessante e provocativo artigo (ler o primeiro artigo em http://espiritualidadeinclusiva.blogspot.com.br/2012/06/biblia-e-homofobica.html), para cujo desenvolvimento do tema estou oferecendo uma contribuição aqui.

Vou me deter na exposição e análise de alguns argumentos das igrejas inclusivas bem como das igrejas cuja perspectiva chamarei de “literalista’’, e tentar apresentar o meu próprio ponto de vista a cerca do assunto.

A Bíblia sagrada se mantém como uma dolorosa espada de Dâmocles suspensa sobre a cabeça de homens gays e mulheres lésbicas, provocando a angustiante sensação de danação iminente e norteando também as políticas e atitudes sociais hostis para com pessoas LGBT ao longo dos séculos, independente de crença ou descrença.

Portanto, diante disso questionar se a bíblia é homofóbica pode parecer mesmo uma grande ingenuidade, quando não uma pilhéria grotesca. Apesar de tudo, proponho ao menos uma mudança ligeira e significativa de posição no sofá das convenções ideológicas durante as próximas linhas.

Os pressupostos morais estabelecidos firmemente durante gerações de cristãos no Ocidente foram desafiados com maior entusiasmo e elegante inteligência pela primeira vez quando John Richard Boswell, iminente professor de história da universidade de Yale, publicou no início dos anos oitenta o surpreendente livro “Cristianismo, tolerância social e homossexualidade’’.

A obra de Boswell gerou uma onda de intensa polêmica, ganhou prêmios, foi entusiástica e afetuosamente acolhida por gays cristãos e recebeu críticas ferrenhas tanto de ativistas LGBT quanto de fundamentalistas e grupos antigay.

O meio acadêmico, igualmente, reagiu de modo variado.

O dogma do construcionismo social despontava; a tese essencialista apregoada pelo professor gay de Yale não estava mais na moda (embora o próprio Foucault tenha elogiado o livro) e muitos ativistas LGBT se sentiram “traídos’’ por aquilo que eles entenderam como uma tentativa de “branquear’’ o cristianismo e retirar a culpa dos ombros da igreja por todos os crimes cometidos contra homossexuais.

Por outro lado, Boswell foi celebrado ao expor uma interpretação revolucionária, argumentando que a igreja no início da sua trajetória e ao longo de uma parte do medievo, conviveu com a homossexualidade de forma pouco conflituosa, possibilitando inclusive o emergir de uma subcultura gay, expressando-se através de primorosos poemas e cartas eróticos de amor e amizade do mesmo sexo, escritos por bispos e clérigos cristãos.

O professor John Boswell também se tornou pioneiro ao fazer uma exegese “inclusiva’’ de trechos bíblicos tradicionalmente considerados homofóbicos, causando uma controvérsia que dura até hoje, fornecendo o lastro sobre o qual repousa a assim chamada “teologia inclusiva’’.

Afinal, a bíblia é homofóbica? Não vou entrar no mérito de discutir a semântica apontada como a razão da condenação explícita a atos homossexuais, motivo de disputa ferrenha entre os adeptos da interpretação inclusiva e os adeptos da interpretação literalista.

Ao contrário, vou assumir aqui que a Bíblia de fato condena atos homossexuais, uma alegação com a qual Boswell também concordaria.

Uma assertiva bastante comum entre os cristãos literalistas homofóbicos é aquela que diz que “Deus não condena o indivíduo homossexual; Deus condena atos homossexuais’’.

Suspeito que essa afirmação contém inadvertidamente uma verdade oculta, fundamental e divergente da intenção com a qual é propagada, conforme veremos.

De modo contraditório os literalistas afirmam que Deus não reconheceu a categoria dos homossexuais (então qual o sentido de dizer que Deus não condena a pessoa gay?) que Deus criou somente o “macho’’ e a “fêmea’’; indivíduos gays, portanto são machos e fêmeas que se recusam a cumprir com os desígnios de sua natureza verdadeira (heterossexual).

Desconsiderando solenemente a teoria social construtivista (de viés Marxista) e os equívocos derivados da crença Foucaultiana de que a identidade gay é uma invenção moderna, é bastante razoável discordar da idéia de que Deus “limitou-se’’ a “criar’’ duas distintas classes de pessoas; com efeito, diversas escrituras jurídicas, literárias, religiosas e de medicina do mundo antigo se referem explicitamente a uma terceira categoria de pessoas, com estatus próprio naturalizado e normatizado, para além da nomeação de “homem’’ ou “mulher’’.

Essa classe específica de pessoas por vezes foi considerada um terceiro gênero, ou gênero neutro, ou uma combinação de ambos os gêneros.

A própria Bíblia confirma a existência de uma terceira classe de pessoas, não aptas para o casamento procriativo, nascidas exatamente desta forma desde o “ventre materno’’.

Quem são essas pessoas?

No Evangelho de Mateus, no verso que se refere ao divórcio e casamento entre homem e mulher (19,11-12) Jesus declara:

“Não tendes lido que o criador os fez, desde o princípio, homem e mulher, e que ordenou: Por isso deixará pai e mãe e unir-se-á com sua mulher, e será uma só carne?’’

Responderam-se os discípulos, opinando sobre a interdição de Cristo ao divórcio:

“Se tal é a condição do homem relativo à mulher, melhor não casar.’’

Jesus retrucou então:

“Nem todos podem entender esse ensino. Mas somente aqueles a quem isso foi dado.

Porque há eunucos que nasceram assim, e há eunucos que pelos homens foram feitos tais; e há outros que se fizeram eunucos por causa do reino dos céus.

Quem puder aceitar isso que aceite.’’

Jesus coloca a questão do repúdio da esposa, consentido pela lei de Moisés, e no final, excepcionalmente deixa claro que existem pessoas que não são aptas para se engajar no casamento heteronormativo prescrito por ordem divina.

Faris Malik, um pesquisador de concepções antigas de identidade de gênero e identidade sexual, entre outros defende a tese de que os “eunucos de nascimento’’ citados no evangelho de Mateus é a denominação primitiva genérica aplicada por vários povos da antiguidade aos homossexuais exclusivos.

A primeira objeção ao argumento é a mais óbvia: Jesus pode simplesmente estar se referindo a homens que nasceram com disfunções biológicas que impossibilitam a reprodução.

“Eunuco de nascimento’’ então se refere a homens estéreis naturalmente, em oposição aos esterilizados artificialmente e os que escolheram não procriar (celibatários).

Malik está consciente do problema e sua pesquisa aborda sem rodeios a busca pelo significado original do “eunuco de nascença’’; ele observa que apesar de quase todas as definições atuais de eunucos se encontrarem atreladas ao conceito de castração ou danos físicos à capacidade reprodutiva, seja por nascimento ou por algum tipo de emasculação, para os povos do passado, um eunuco se caracterizava essencialmente pela ausência de desejo sexual por pessoas do sexo oposto.

O mito Sumério da criação do eunuco diz que eles foram criados especificamente para não sentir desejo por mulheres; Asushunamir, o eunuco que vai para o reino dos mortos em missão de resgate da deusa Isthar, precisa ser imune à sedução da rainha do submundo, que mantém a deusa do amor prisioneira.

Clemente de Alexandria, comentando a respeito das crenças gnósticas dos adeptos de Basilides (Em Stromata) menciona a versão gnóstica do discurso de Jesus em Mateus 19: “Alguns homens, desde o nascimento, têm a natureza que os impele a afastar-se das mulheres, e deste modo fazem bem em não se casar. São os eunucos de nascença.’’

Em outras palavras, o eunuco de nascença não era necessariamente um homem estéril biologicamente; apenas era relativamente estéril, porque incapaz de sentir desejo por mulher.

Isso tem cabimento?

De acordo com o Sumário de direito romano, codificado por Justiniano, e reunindo os principais peritos da legislação romana (Papiniano, Ulpiano, Paulus e Juliano), a definição geral de eunuco engloba o “eunuco de nascimento’’ e faz distinção entre os eunucos castrados e os não castrados.

A lei romana prevê a possibilidade de um eunuco “não castrado’’ casar-se com uma mulher e consumar o casamento, restringindo o direito de casar de um eunuco castrado. O eunuco castrado não pode casar porque não pode procriar. O eunuco não castrado pode casar porque pode procriar.

Considerando ainda o termo “doença’’ uma condição natural física que prejudicava o uso do corpo para os fins aos quais ele se destinava, Ulpiano pondera que a situação dos eunucos naturais procriadores não condizia com a definição de doença, já que alguns eram capazes de procriar.

O direito romano reconhece que “eunuco’’ é um termo genérico, aplicado a diversos tipos de pessoas, inclusive homens que podem procriar, portanto.

O jurista Paulus confirma, por outro lado, que se alguém é um eunuco e lhe faltam os órgãos necessários para procriar, ainda que “internamente’’ então ele é incapacitado, um doente.

Nem todo homem que se engajava em sexo homossexual foi reconhecido como eunuco; há uma boa razão para isso.

A bissexualidade era mais amplamente aceita socialmente; a pederastia caracterizava-se como relação homofílica passageira e tinha aspecto transgeracional, e mesmo o “amor pelos meninos’’ foi alvo de intolerância e hostilidades. O pederasta não perdia o estatus de homem, a não ser de modo temporário, quando era Catamito e passivo.

Homossexuais exclusivos, naturalmente, não se encaixavam no estereótipo de gênero masculino naquela época.

Ser eunuco não era exatamente uma vantagem, embora não fosse crime; numa sociedade patriarcalista e misógina, que valorizava o poder do gênero masculino e a fertilidade, é compreensível o interesse de alguns eunucos pelo casamento heterossexual. O poderoso senhor do atraente José do Egito, Potifar, é um exemplo. O desejo licencioso da esposa de Potifar é sintomático e revelador, aliás.

Quem nunca ouviu falar em gays que se casam com mulheres para fugir do estigma social? E de mulheres de gays que se ressentem da falta de desejo dos maridos?

Dito isto, vamos examinar o contra argumento literalista que sugere que em todos os casos, um eunuco é ou um homem castrado, ou um homem estéril de nascença, ou um celibatário (alguém que escolheu manter-se casto).

Malik destaca o comentário do sumeriano Manual de Summa Alu (2500 antes de cristo) de prognósticos místicos: “Se um homem tem relações sexuais com um assinu (eunuco, prostituto sagrado), ao longo de um ano todas as suas aflições irão desaparecer’’;

Eliano, Orador grego do século terceiro, em “Histórias diversas’’ faz referência a um rei persa apaixonado por um lindo eunuco morto recentemente; Quintius Curtius informa que Dario tinha 365 concubinas, e Alexandre magno dispunha do mesmo número, contando ainda com um efetivo de eunucos, que “eram usados como as mulheres’’ (Curtius fala ainda da paixão de Alexandre pelo Eunuco Bagoas, que ganhou o respeito do rei oferecendo-lhe seu corpo para sexo); O historiador judeu Flávio josefo diz que Herodes teve muitos problemas por causa de um eunuco por quem ele era muito apaixonado por conta de sua beleza (Antiguidades judaicas); Suetônio deixa-nos saber a futrica sobre o imperador Tito, acusando-o de deleitar-se em excessiva luxúria com seus eunucos; o astrólogo do século quarto, Firmicus Maternus, descreve a luxúria de eunucos que desempenham o papel passivo no sexo.

Recapitulando, eunucos naturais eram fisicamente perfeitos (capazes de procriar), eunucos transavam com homens, eunucos não tinham interesse em mulheres.

Precisa mais de que para confrontar-se com a realidade de que “eunuco’’ foi uma denominação genérica que incluía pessoas homossexuais?

Voltando à questão inicial do debate, se as pessoas exclusivamente homossexuais eram consideradas um tipo de “eunuco’’ (existem documentos rabínicos que mencionam também a “mulher eunuco’’, o protótipo da lésbica machona), se o eunuco é uma criação de Deus (porque nasceu eunuco), se o eunuco não está apto para o casamento heteronormativo (porque é relativamente impotente e desinteressado do sexo oposto) para quem a Bíblia está dirigindo as suas reprovações e admoestações antigay em Levítico e outras escrituras?

De acordo com o professor John Boswell, para os heterossexuais.

Faz sentido.

O texto sumeriano do Manual de Summa Alu parece confirmar que o sexo homoerótico era proibido em alguns contextos e liberado em outras situações. O sexo entre um “homem’’ e um “eunuco’’ não era punido. Se um indivíduo considerado “homem’’ (naturalmente inclinado para as mulheres) relaciona-se com outro “homem’’ (sendo o passivo, por exemplo) havia o interdito.

O argumento de Boswell é que a Bíblia repudia a afeminação não natural nos homens heterossexuais, o sexo homossexual com prostitutos sagrados e a disposição de alguns heterossexuais para a luxúria ocasional com o mesmo sexo.

Entretanto, os apologetas literalistas rebatem questionando sobre qual é o sentido de se afirmar que Deus proíbe um pecado em uma circunstância e permite o mesmo pecado noutra?

Ora, Deus também proíbe a mentira e ainda assim induziu profetas a mentir e enganar o rei Acabe de Israel (“E disse o SENHOR: Quem induzirá Acabe, para que suba, e caia em Ramote de Gileade?’’; 1, Reis 22).

A Bíblia afirma, porém, que diante de Deus os eunucos podem encontrar graça e favor.

“Não fale o estrangeiro que se houver chegado ao SENHOR, dizendo: O SENHOR, com efeito, me separará do seu povo; nem tampouco diga o eunuco: Eis que eu sou uma árvore seca.

Porque assim diz o SENHOR: Aos eunucos que guardam os meus sábados, escolhem aquilo que me agrada e abraçam a minha aliança; Darei na minha casa e dentro dos meus muros, um memorial e um nome melhor do que filhos e filhas; um nome eterno darei a cada um deles, que nunca se apagará.’’ (Isaías 56)

A promessa de Deus para os eunucos em Isaías é auspiciosa e sugestiva em termos de salvação; afinal em Deuteronômio 23 está escrito que alguém com defeito nos testículos ou fisicamente castrado não entrará na congregação do senhor. Mais uma vez um indicativo de que a Bíblia fala diretamente para os “nascidos eunucos sem defeitos físicos que impedem a procriação’’.

Termino este texto com uma frase transcrita do Carmina Burana no livro “Cristianismo, tolerância social e homossexualidade’’ do professor Boswell:

“Love is not a crime; if it were a crime to love,

God would not have bound even the divine with love.’’


Sobre o autor

Walter Silva é ativista LGBT (assim o reconhecemos, dada a qualidade do material acima) e mora em mora em Belém (Paraíba).

segunda-feira, 14 de maio de 2012

[Tradução] A Bíblia na verdade diz “com varão de tua família não te deitarás”

Por Ocio Gay (entrevista publicada originalmente em espanhol em http://www.ociogay.com/2012/05/03/la-biblia-en-realidad-dice-con-varon-de-tu-familia-no-te-acostaras e traduzida por Paulo Stekel)

(O polêmico e irreverente teólogo dinamarquês Renato Lings)

Nós conversamos com o tradutor e teólogo Renato Lings, autor de "Bíblia e Homossexualidade".

Com seu tom calmo e grande senso de humor, o autor dinamarquês explica durante sua visita a Madri que, depois de muitos anos de estudo, "A Bíblia" é para ele uma amiga, não uma fonte de medo, como muitos querem considerar. Doutor em teologia, tradutor de hebraico, grego e espanhol, Lings tem feito do estudo de textos sagrados com relação à homossexualidade uma de suas principais ocupações. Acaba de publicar “Bíblia e homossexualidade - erraram os tradutores?”, onde resume que os problemas da Igreja com os homossexuais são realmente uma questão de um "Lost in Translation" medieval.

- A partir da disseminação gradual do Cristianismo pelo Império Romano vem a necessidade de disponibilizar a totalidade dos escritos bíblicos em latim. Em resposta a essa demanda aparece a Vulgata em cerca de 400 d. C. É esta a origem dos males da homossexualidade para a Igreja?

- A Vulgata é importante sob vários pontos de vista: primeiro, porque a tradução é executada por um personagem muito importante para a Igreja Romana, Jerônimo, e em segundo lugar porque é a primeira versão que tem todos os livros da Bíblia em latim. Em grande parte, revisa as traduções existentes, mas também traduziu outras partes. Ele pensou que seria fácil traduzir da Septuaginta, que é a tradução para o grego antigo, mas percebeu que já naquele tempo teve muitos erros e não podia ser confiável, motivo pelo qual estudou hebraico e assim traduziu o Antigo Testamento também. Isso exigiu um grande esforço. Dito isto, convém notar que, devido à uniformidade que estava adquirindo a Igreja Romana, esta foi se impondo como a única versão da "Bíblia", ou seja, até que finalmente se tornou a verdade. Esta versão deu cor aos capítulos mais controversos.

Conforme avançava a Igreja, esta foi se fechando mais no latim e se perdeu completamente o grego e o hebraico, a ponto de, na Idade Média, o latim ter se tornado a língua de Jesus Cristo. Isso é problemático por várias razões, mas principalmente porque durante a Idade Média entre as correntes teológicas havia muita tendência ao ascetismo, à renúncia de prazeres carnais, estabelecendo-se assim os vícios, incluindo a sodomia.

- Na verdade, você aponta que a “sodomia” não aparece como termo até o século XI.

- De fato. Antes havia o vício da sodomia, mas não havia uma definição única do que isso significava. Havia uma variedade de definições, mas tinha a ver com a vida sexual das pessoas, já que em ambientes eclesiásticos ao fazer o voto de castidade não havia espaço para as relações sexuais.

Então rolou como uma bola de neve o perigo que são as relações homoeróticas, pois as heterossexuais não são mais um problema ao se entrar no mosteiro. Muitos interpretaram, então, o desejo homoerótico que sentiam como sendo uma inspiração demoníaca, pois, não entendiam que depois de entregar corpo e alma a Deus lhes surgiriam fantasias eróticas e sonhos com parceiros da comunidade.

- Outra das análises mais abrangentes que você faz no livro é sobre a famosa frase do Levítico: "Com varão não te deitarás" que na verdade é "com varão não terás repousos [lit. “jazer para relações sexuais”] de mulheres."

- Eu tenho minhas dúvidas, por várias razões. Praticamente toda a literatura que está incluída no que chamamos de "Antigo Testamento", que eu prefiro chamar de "A Bíblia hebraica", tem um alto nível de refinamento literário. Eu não acho que esses textos correspondem a mentes retrógradas em questões de antropologia. Por isso, é curioso que, no caso de "Levítico" há tantos séculos haja um debate sobre o que significa. A proibição de relações homoeróticas com base neste livro não aparece até o século IV D.C.; antes não há nenhum registro de que tenha sido interpretado nesse sentido, pelo menos no Cristianismo, porque no Judaísmo há todavia mais literatura sobre o assunto.

Como pode um versículo de uma linha e meia gerar tanto debate? Alguns acreditam que se fala da penetração anal, e dentro dessa tendência, há divergências, pois existem alguns que acreditam que o que é proibido é o contato do sêmen com fezes, outros dizem que se trata de proteger a procriação e evitar qualquer dispersão de sêmen em outro vaso que não seja a vagina. Uma terceira teoria diz que o que é censurado é a parte ativa da relação homoerótica, isto é, não deves penetrar a outro homem analmente. A quarta, porém, acredita que se refere à parte passiva: você não deve se comportar como uma mulher na frente de um homem deixando-se penetrar.

Eu sugiro uma quinta interpretação que não tem nada a ver com a penetração anal, e que já foi sugerida por David Stewart: a do incesto. Praticamente todo o capítulo em que isto está escrito, o 18, fala do incesto entre homem e mulher. Ele acha que esta proibição também se estende entre dois homens da mesma família. Mas, como é um texto altamente sofisticado continua a gerar debate. Eu tive que ir até o capítulo 20 para perceber que este versículo reaparece junto com outros que proíbem o incesto, com a pena de morte incluída. Acho interessante este achado porque também existe na tradição hitita uma proibição incestuosa deste tipo, expressa sem rodeios. Como existem muitos paralelos entre as passagens da "Bíblia", com outras tradições antigas do Oriente Médio, eu duvido que haja um povo tão radicalmente separados dos outros.

Há outra razão para pensar que o incesto, da segunda parte ("repousos de mulher") é difícil de interpretar, porque ele usa um vocabulário elaborado. A primeira parte diz: "com varão não te deitarás", não "com um homem" e isso é importante porque não se trata de dois sinônimos. "Varão" também inclui os jovens que não chegam a "homens", e os idosos. A segunda é fundamental, e grande parte da Igreja decidiu que queria dizer "com nenhum". E eu me pergunto, se todo o capítulo é destinado à família porque esta parte não? Também sempre se refere a "varões israelitas", não a todos do mundo. E também especifica "mulher", não "fêmea". David Stewart, de quem sigo a pista, define que a palavra "repousos" só aparece uma vez mais nesta parte da Bíblia hebraica e no segundo caso, está no livro de "Gênesis", onde Jacó fala para seu filho mais velho Ruben, que cometeu um ato de incesto com uma das esposas deste. Ele diz "Foste até os repousos de teu pai", o que reforça a minha teoria do incesto porque o "repouso" no singular ocorre com mais freqüência.

- Também “Sodoma” surge sob outro prisma depois de sua análise.

- Lhe dediquei sete anos, apesar de que só tem um capítulo e meio. Eu me sinto muito em paz porque eu o trabalhei de cima para baixo e de fora para dentro. Todos os profetas do Antigo Testamento, que eram testemunhas oculares que falavam hebraico e estão imersos na sua cultura, utilizam "Sodoma e Gomorra" como uma metáfora.

- Se algo fica depois de se ler o livro é a sensação de que se tem interpretado os textos sagrados a partir da literalidade absoluta, mesmo quando se fala em metáforas.

- Somos muito mais fundamentalistas que os antigos; nós tomamos a "Bíblia" ao pé da letra, enquanto que eles sabiam como interpretar os símbolos. Produziam um discurso altamente desenvolvido no literário e no teológico. Bem, os profetas usam o mito de Sodoma e Gomorra em contextos de injustiça social, se referem à raiva que sentem quando os poderosos maltratam os pobres, especialmente Isaías e Ezequiel (que critica por meio disso a idolatria dos israelitas que se lançam a adorar outros deuses). Não se referem a questões sexuais. Isso me deu a dica de que algo não sabíamos sobre esse texto, e continuamos prisioneiros da tradição medieval. É mais convincente a investigação a partir da perspectiva dos profetas, porque é mais fiel ao contexto original.

- "Para a pessoa cristã o essencial é seguir a Cristo e não ser influenciada pelas pressões do ambiente social" você afirma, baseando-se em São Paulo: "Busco eu agora persuadir os homens ou a Deus? Se, todavia, tentasse agradar aos homens já não seria servo de Cristo". Isto tem sido completamente esquecido, e mais, às vezes a igreja é quem exerce a pressão social.
- Até mesmo, às vezes, forçando a seguir a igreja mais do que a Cristo.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Destruindo sofismas cristãos

Por Andrea Freitas Foltz (publicado originalmente em http://andreafreitas.wordpress.com/category/destruindo-sofismas-cristaos)

A Bíblia nunca poderia ser divina; isto percebemos quando a lemos e fazemos a separação do que os seus escritores expressaram durante aquela época para a realidade em que vivemos. Os autores bíblicos eram ignorantes a respeito de inúmeros assuntos e isto inclui também a homossexualidade. Sem firme fundamentação nos seus argumentos sobre a sexualidade humana, os cristãos acabam por reduzir os textos usados contra a homossexualidade a referências “mal-interpretadas” ou mal-induzidas por seus líderes!

A cultura dos hebreus era machista e até hoje continua a ser no meio cristão. Vemos através de suas teorias a respeito de seu deus que se “apresentava” como um ser masculinizado [Gn 32.24,28] e que criou outros seres [anjos] também masculinizados [Gn 18.2; 32.24] – segundo suas “aparições”. Por que o Criador não se deu ao trabalho de criar um ser celestial sequer com característica feminina? Seria ele também preconceituoso? Machista?

O homem era o centro das atenções do deus hebreu, com um corte no pênis [prepúcio] simbolizando uma aliança entre a criatura-macho e o criador masculinizado [Gn 17.10-14]. Tudo isso contribuiu para que a condição da homossexualidade, fosse encarada como aberração e abominação, como eles bem pregam por aí!

Durante toda a existência do cristianismo, os cristãos que se opõem aos direitos dos gays e lésbicas citam frequentemente Gênesis 19 (a história de Sodoma) para repudiarem a homossexualidade e todos aqueles que nascem sob essa condição. Tal interpretação mostra até que ponto o preconceito e a homofobia deformam e camuflam a verdadeira causa da destruição dessas cidades nos relatos bíblicos.

A verdade é que tanto no Antigo como no Novo Testamento, o “pecado” de Sodoma nunca foi entendido como homossexualidade. Ao contrário, era egoísmo, orgulho, descaso perante pobres e da falta de hospitalidade para com os estrangeiros; pois no contexto do deserto, a recusa de hospedar os estrangeiros poderia significar a morte. Confira: Ezequiel 16.49-50.

Inúmeros teólogos cristãos e autores sérios de artigos que abordam a questão da homossexualidade afirmam isso:

1 - Walter Wink – professor do Seminário Teológico, Doutor em Teologia (Th.D) do Union Theological Seminary de Nova York;

2 - Theodore W. Jennings – professor-assistente no Chicago Theological Seminary;

3 - John B. Cobb Jr. – Professor Emérito de teologia e co-diretor do Centro de Estudos sobre Processo da Faculdade de Teologia de Claremont, Califórnia;

4 - James B. Nelson – professor de ética cristã no United Theological Seminary em New Brighton e Minnesota;

5 - Robert K. Johnston – Ph.D., professor de Teologia e Cultura no Seminário Teológico Fuller, em Pasadena – Califórnia… Dentre outros!

A Verdade que liberta

Segundo Nelson (2008), os estudos bíblicos contemporâneos indicam com suficiente persuasão que o tema principal da história e a preocupação do escritor [Moisés, ou seja lá quem escreveu] não era a atividade homossexual, mas a violação da justiça social rudimentar e das antigas normas hebraicas de hospitalidade. O pecado de Sodoma foi a quebra das leis de hospitalidade e justiça.

Relembremos ainda que era prática comum no Oriente Médio, na época, submeter os inimigos do sexo masculino capturados ao estupro anal. A prática significava domínio e desprezo. À medida que a atividade homossexual expressava ódio e desprezo – particularmente nas sociedades que davam grande importância à dignidade masculina – era natural que essa atividade fosse sumariamente rejeitada.

Fazendo-se justiça ao texto, é difícil considerar a narrativa sobre Sodoma como julgamento sobre todas as atividades homossexuais, uma vez que estava em jogo o estupro homossexual, esse sim, condenado. Para uma melhor compreensão do que seria o “estupro homossexual”, é o mesmo que acontece hoje em nossos presídios. Alguns presos [heterossexuais] indignados com criminosos julgados como pedófilos ou estupradores, fazem “justiça” própria submetendo o acusado à vergonha de ser molestado sexualmente; dando-lhe a mesma paga pelo crime cometido.

Segundo Wink, “o pecado dos sodomitas era o rapto homossexual perpetrado por heterossexuais com a intenção de humilhar os estrangeiros ao tratá-los “como mulheres”, desmasculinizando-os” (2008, p. 9). E o mesmo acontece em Juízes 19.21 – acrescenta ele. “Os casos brutais de estupro praticados por bandos em nada correspondem à questão da legitimidade ou não das consentidas expressões de amor entre adultos do mesmo sexo” (Ibid, p.9).

Em Dt 23.17-18, Wink lamenta que em algumas versões – especificamente a King James – o termo usado como “sodomita”, na verdade se refere a um “garanhão” heterossexual envolvido com os ritos cananeus de fertilidade infiltrados no culto judaico. Veja o uso do termo em questão por outras traduções:

- Bíblia Católica – Versão dos Monges de Maredsous [1958]: omite tanto “prostituto” como “sodomita”;

- Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas [1986]: também usa o termo “prostitutos” tanto para homens como para mulheres.

- Bíblia na Linguagem de Hoje [1988]: “refere-se tanto a homens e mulheres como “praticantes de prostituição”;

- Bíblia de Jerusalém [1995]: usou o termo “prostituto sagrado”;

- Bíblia Plenitude [2002]: traduziu como “sodomita”, seguindo o exemplo da King James;

- Traduções de João Ferreira de Almeida:

a) Revista e Atualizada [1992]: usou o termo “Sodomita”;
b) Revista e Corrigida [1995]: usou o termo “Sodomita”.

Segundo Johnston (2008), tanto o texto de Dt 23.17-19 como I Rs 14.24 e II Rs 23.7, que parecem referir-se a “prostitutos sagrados” masculinos, trata-se na verdade, de tradução errada da palavra hebraica qadesh. A raiz da palavra significa “sagrado” e se refere ao contexto dos que trabalhavam em templos não-judaicos. Enquanto a forma feminina, qadesh(ah) descrevia deveres sexuais, o vocábulo masculino aplicava-se a sacerdotes com outras funções no culto.

Perceberam aí a malícia dos tradutores cristãos que interpretam tais passagens como lhes convém?

NOTA: Ao contrário do que os pastores pregam por aí nas igrejas, a prostituição na Bíblia era natural e não era considerada pecaminosa, pois servia até para salvaguardar a virgindade de muitas mulheres solteiras e o direito de propriedade dos maridos. Em Gênesis 38.12-19, vemos Tamar disfarçando-se de prostituta para seduzir e transar com Judá; Em Josué 2.1, vemos que dois espias enviados por Josué ao chegarem em Jericó, não procuraram outro lugar para “pousar” senão a casa da prostituta Raabe; e em Juízes 16.1, vemos Sansão – um homem escolhido por Jeová – transando também com uma prostituta. Em lugar nenhum do Velho Testamento lemos explicitamente a proibição de relações sexuais antes do casamento; pelo contrário, no livro de Cantares encontramos relatos de uma relação amorosa proibida e acima de tudo pedófila! Ainda de acordo com Wink (2008,p.p.14-15), “a poligamia era vivida tanto no Velho como no Novo Testamento e continuou a ser praticada esporadicamente no judaísmo até alguns séculos depois do período do Novo Testamento; isso pode-se saber por meio do Mishnah e do Talmude”! Confira também em I Tm 3.2,12 e Tt 1.6.

Quanto a I Coríntios 6.9 e I Timóteo 1.10, Wink também afirma categoricamente que “não é claro que referem-se a parceiros “ativos” ou “passivos” em relações homossexuais ou prostitutos do sexo masculino homossexuais ou heterossexuais. Não se sabe se era apenas homossexualidade, promiscuidade ou sexo por dinheiro.” (Ibid,p.10)

Mas e quanto aos outros versículos? O que realmente dizem sobre a homossexualidade? Quais as interpretações corretas? Vamos tecer algumas considerações acerca deles:

a) Levítico 18.22 e 20.13 diz que é abominação um homem deitar-se com outro homem e ordena que tais homens sejam mortos. Tal ato foi abominado pelos hebreus por diversas “razões”:

I – O conhecimento hebraico pré-científico entendia que o sêmen continha a totalidade da vida que iria nascer. Sem conhecer óvulos nem ovulação, os hebreus achavam que a mulher fornecia apenas o espaço para a incubação. Quando o derramar do sêmen fugia do propósito de procriação, como coito interrompido, masturbação masculina e atos homossexuais, era considerado abominação – semelhante ao aborto ou assassinato. Ao contrário do homem, não havia qualquer proibição desses atos entre mulheres, deixando claro o patriarcalismo da cultura hebraica.

II – A recusa de Onan de engravidar sua cunhada viúva, praticando o coito interrompido, foi interpretada por Moisés como séria violação do decreto divino a ponto dele ser [supostamente] morto por Javé [Gn 38.1-11].

b) Romanos 1.26-27 referem-se a eles como “praticantes de imoralidades”. O que enquadra praticamente a toda a humanidade, pois qual desses cristãos propagadores de tal Palavra que não peca? Não há diferença alguma entre um pecado e outros citados por Paulo. Isto só prova que de “pecado” ele não entendia nem dos dele!

O Livro de Levítico

O livro de Levítico – de acordo com a tradição – foi escrito por Moisés e lida muito com assuntos relacionados à pureza, santidade de Deus e a santidade na vida cotidiana dos hebreus. Foi o primeiro livro a ser ensinado para as crianças na educação judaica. Os “sábios” judeus decidiram que suas crianças deveriam ser educadas sobre a santidade de Deus e a responsabilidade de viver uma vida “santa”.

Mas Levítico está longe de conter o verdadeiro significado de pureza e santidade! A “santidade” exigida e vivida nele não passa simplesmente da imperfeita e imperiosa vontade do homem – Moisés! Não sabemos como um livro escrito há milhares de anos, com um conteúdo machista e absurdamente desumano, pode servir de base na educação de crianças!

Talvez o que é/foi passado para essas crianças seja o mesmo conteúdo que é passado nas igrejas cristãs de hoje; ou seja, o que o torna desumano e insano é camuflado com a mensagem de pureza e santidade de Deus.

Não precisa ser um bom observador para perceber que os versículos mais citados pelos cristãos hoje [do livro de Levítico] são aqueles que condenam a homossexualidade. Esses… Eles têm na ponta da língua! Porém, os mesmos cristãos, de um modo geral, sabem reter muito bem o que lhes convém nesse livro e descartar o que não lhes interessa. A exemplo disso vemos:

I – Nudez natural: A nudez natural, típica do Éden, era condenada pelos escritores do judaísmo – Moisés, Ezequiel, Isaías e Samuel – até no âmbito da família: Lv 18.6-19; Ez 22.10; II Sm 6.20; 10.4; Is 20.2-4 e 47.3). Era crime um filho ver a nudez do pai: Gn 9.20-27.

Todavia, não mais se cobra tal conduta entre os atuais cristãos. Pelo contrário, existem relatos de pais cristãos que tomam até banho junto aos seus filhos [homens]. Estão estes pais cometendo algum pecado? Claro que não! Quem se importa com tamanha bobagem?

II – Relações sexuais no período menstrual: A lei de Levítico proibia relações sexuais nos sete dias do período menstrual [cfr. 15.18-24], considerando o praticante “imundo”. Depois, Moisés achando que estava sendo benevolente com tais “transgressores”, resolveu executá-los: Lv 18.19. Até a própria mulher, mesmo não tendo relações sexuais, era considerada imunda no período menstrual!

Pergunta: Quais casais cristãos que saem confessando terem relações sexuais no período menstrual da mulher? Quem se importa com a intimidade “alheia” de casais heterossexuais?

III – O fluxo seminal do homem: As pessoas que tocassem no sêmen eram consideradas “impuro-imundas” e tinham que ser lançadas fora do arraial, inclusive o próprio homem, caso ejaculasse durante o sono [polução noturna]: Lv 15.2,16-18; 22.4; Nm 5.2.

Pergunta: Quais dos adolescentes [meninos] ou até mesmo homens são considerados “imundos” nas igrejas cristãs de hoje; até por praticarem a masturbação, o que consideramos natural para o desenvolvimento sexual? É verdade que em algumas igrejas ainda se prega que a masturbação é um pecado, porém não impede que tais adolescentes/homens a pratiquem e nem os exclui da congregação; até porque é praticamente impossível monitorá-los!

Até que ponto as proibições de Levítico devem ser aceitas pela consciência cristã ou de outros? A não ser que aceitemos todas as proibições desse livro, deveria haver alguma razão para estabelecer discriminações.

Creio que esses três itens são suficientes para uma boa compreensão da omissão e descarte dessas passagens pelos chamados “cristãos” da atualidade. Não vamos entrar em outras “proibições” de Moisés a não ser nestas de caráter sexual.

Jesus e a Homossexualidade

A homossexualidade nunca é mencionada nas narrativas do ministério de Jesus nos quatro evangelhos; e isso tem sido um “espinho” no calcanhar dos cristãos homofóbicos – a exemplo do Silas Malafaia – que tentam usar a Bíblia como arma para condenar homossexuais e subjugá-los a uma ditadura cristã.

Segundo os evangelhos, sempre que Jesus mencionou Sodoma, identificou o pecado da cidade como negação de hospitalidade aos estrangeiros. Como exemplo disso, lemos no livro de Luca que Jesus critica as cidades que evitavam hospedar os discípulos: “Digo-vos que naquele dia haverá menos rigor para Sodoma do que para aquela cidade” [10.12]. Não há uma passagem sequer em que Jesus tenha feito alusão aos homossexuais como “malditos”. Pelo contrário, Cristo falou contra muitas coisas: divórcio, falta de amor ao próximo, pena de morte… Mas não falou absolutamente NADA contra a homossexualidade.

Há quem diga que Jesus ao proferir as palavras contidas no livro de Mateus, capítulo 19 e versículo 5, ele tenha deixado claro que o “homem nasceu para a mulher” e vice-versa. Mas isso não deixa de ser mais uma tentativa de condenar a homossexualidade através das palavras do Cristo. No mesmo capítulo Jesus tratou de vários temas como: divórcio, relações sexuais ilícitas, casamento e por fim sobre a condição dos Eunucos.

Como naquela época a palavra “homossexual” não tinha sido empregada para homens que sentiam atração pelo próprio sexo, talvez o termo “eunuco” tenha sido aplicado pelo Cristo aos homossexuais também… Quem sabe? Ao contrário de Paulo – que espero estar à destra do diabo no inferno – Jesus não usou em momento algum a palavra “sodomitas”.

Mas a questão é que os cristãos têm afirmado que através da fé em Jesus os homossexuais podem “achar a cura” para sua condição sexual. O que não é verdade!

Vamos tomar, por exemplo, a condição dos eunucos tanto no Velho como no Novo Testamento. Durante séculos os eunucos foram proibidos de entrar na congregação [ou templo] por causa do seu “defeito” nos testículos (Deuteronômio 23.1).

Estranho o deus de Moisés que operou tantos milagres como criar o homem do barro (Gn 2.7), de uma costela masculina, formar uma mulher perfeita (Gn 2.21-22), abrir o mar vermelho (Ex 14.21), destruir grandes muralhas (Js 6.20) e curar leproso (II Rs 5.14), não teve misericórdia de um simples eunuco e assim restaurar seus testículos, tornando-o digno de entrar no templo. Antes preferiu condená-lo à exclusão!

E não há um registro sequer nos quatro evangelhos em que Jesus tenha restaurado testículos e funções sexuais de algum eunuco, tornando-o apto ao casamento. Alguém se habilita a mostrar?

Escrituras de Paulo

Para podermos interpretar o capítulo de Romanos referente à homossexualidade é preciso primeiro conhecer quem foi seu escritor, o que pensava e como agia segundo a sua ignorância!

Paulo considerava a homossexualidade tão contrária à natureza quanto o uso de cabelo comprido pelos homens: confira Rm 1.26 e 1º Co 2.14.

Embora a descrição de Paulo em Rm 1 não se aplique a homossexuais que não são idólatras nem praticam atos lascivos e nem mesmo se engajam em atos contrários à sua orientação sexual, ainda considero uma afronta da parte dele à liberdade de qualquer ser humano de fazer o que bem quiser da sua vida! Por que o “apóstolo” não citou os atos de pedofilia praticados pelos heróis bíblicos no passado?

O “apóstolo” menciona perversões particulares da prática homossexual de acordo a sua interpretação da Lei (I Tm 1) e do “reino de seu deus” (I Co 6); porém vemos que apesar de muitos acreditarem que tal apóstolo foi inspirado pelo espírito santo, ele não tinha conhecimento sobre orientação sexual e tampouco sobre o reino de seu deus. De acordo com o Novo Testamento, Jesus era o próprio Deus em carne e proprietário do reino celestial, porém em nenhum dos evangelhos lemos sobre a proibição de Cristo feita aos homossexuais de entrar no seu reino; mas Paulo contrariando a seu próprio “Senhor”, ousou fazê-lo.

Não é claro se o termo usado por Paulo em tais passagens referem-se a parceiros “ativos” e “passivos” em relações homossexuais ou a prostitutos do sexo masculino homossexuais ou heterossexuais. Não se sabe se a questão era apenas homossexualidade ou promiscuidade e sexo por dinheiro. O que se sabe – hoje – é que o tal apóstolo julgava-se inspirado por seu deus ao ponto de escrever suas “asneiras” sem ao menos imaginar que a ciência avançaria e chegaria ao ponto de contradizer seus argumentos.

Ainda em Rm 1.28-32, Paulo situa a homossexualidade no centro de seu argumento com a função de ilustrar de que maneira a idolatria nos leva a comportamentos contrários à natureza; ou seja, desvio da ordem estabelecida por seu deus na criação. Para ele, seu deus criou o homem para a mulher e vice-versa; considerando assim a homossexualidade um desvio da intenção de seu deus na criação do homem e da mulher.

Porém, notem que nos dias atuais, principalmente nas igrejas cristãs, quantos heterossexuais [inclusive pastores] se enquadram nesta lista de vícios elaborada pelo apóstolo:

a) Injustiça – Inúmeros cristãos cometem injustiças dentro e fora da igreja;

b) Malícia – 100% dos heterossexuais que estão nas igrejas são maliciosos;

c) Avareza – Inúmeros pastores [ricos] são avarentos;

d) Invejosos – Quem poderá dizer que nunca invejou algo na vida?

e) Homicidas – Inúmeros heterossexuais estão cumprindo pena por homicídio;

f) Contenda – Isto é o que mais acontece no seio da igreja.

g) Dolo – É a arte mais usada pelos chamados pastores de ovelhas. O próprio Paulo foi um dos que cometeu “dolo” [II Co. 12.16]. Quem se habilita dizer o lugar que o deus dele o colocou: céu ou inferno?

h) Malignidade – Segundo a bíblia, até o próprio cristo era mal [Mc 10.17-27]. O seus seguidores escapariam do mesmo destino?

i) Difamadores – A bíblia está cheia de exemplos de difamações praticadas pelos santos homens heterossexuais de Javé;

j) Caluniadores – idem itens b e f;

l) Soberba – Assista um pronunciamento de Malafaia e depois tire suas conclusões.

E muito mais: presunção, desobediência, insensatez, perfídia, etc.

Todos esses itens são praticados por heterossexuais dentro e fora das igrejas cristãs, mas injustamente são direcionados em forma de acusações pelos próprios cristãos apenas aos homossexuais. Entretanto, para a vergonha de tais cristãos homofóbicos, vemos que a crítica de Paulo era contra os que, se sentindo livres desses vícios passavam a julgar os outros que praticavam: “Portanto, és indesculpável, ó homem, quando julgas, quem quer que sejas; porque, no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas.” (Rm 2.1) Pelo menos aqui o falso apóstolo pareceu misericordioso e justo!

Como o próprio Cobb Jr. diz: “Seria bom que todos os que condenam a homossexualidade e assim se auto-justificam, lessem com atenção do versículo 27 do primeiro capítulo de Romanos até o capítulo 2.1. Se o fizerem, a Igreja será um lugar bem diferente do que é agora.” (Cobb Jr, p. 45)

Conclusão

Ralph Blair (1972, p.24) convictamente afirma que jamais algum homossexual foi curado. “Não existe nenhuma evidência da mudança de orientação de homossexuais para a heterossexualidade nem por meio de terapia nem de conversão cristã ou de orações”. Blair é um psicoterapeuta americano, fundador da Comunidade Homossexual Centro de Orientação, em Nova York. Em 1975, fundou Evangélicos Preocupados, Inc. (ou CE), uma rede de gays e lésbicas cristãos evangélicos e amigos. Então, com que base os cristãos afirmam e até fazem questão de expor pessoas que alegam ter sido curadas da homossexualidade? A única base que percebemos em suas afirmações é o que eles chamam de “fé”. Daí eu afirmo: Sem fé é impossível aceitar a condição homossexual!

Ainda as escritoras e pesquisadoras Letha Scanzoni e Virginia Ramsey Mollenkott, acreditam que a Bíblia claramente condena certos tipos de práticas homossexuais como o estupro coletivo cometido na narração de Sodoma; porém silencia sobre a “ideia de orientação homossexual pela vida inteira”. (Scanzoni e Mollenkott, Is the Homosexual my Neighbor? Pp. 111,71,72). É claro que muitos destes autores, à exemplo de Scanzoni e Mollenkott, ainda apresentam alguma consideração pelos escritos bíblicos, mas isso fica por conta da crença deles, o que não é o nosso caso que procuramos “enxergar” tais escrituras de uma forma crítica e livre de crenças.

A verdade é que o deus hebreu tinha/tem paixão por sua principal criação. Um Ser Supremo que cria primeiro o homem; exige um sinal [corte no pênis – prepúcio] como aliança entre criatura-masculinizada e criador-masculinizado; que tem um espírito que fecunda mulher; que encarna em forma de homem; que não toca em mulheres durante sua vida terrena, não cumprindo assim a própria lei natural estabelecida por Ele mesmo que é “casar” e “procriar”… Não pode de maneira alguma abominar os homossexuais pela condição estabelecida por Ele mesmo! E, provavelmente o próprio Paulo sabia disso, pois seguiu os mesmos passos de seu “senhor” não casando, não tocando em mulheres, oferecendo seu prepúcio ao seu deus e condenando os homossexuais ao inferno!

Já tinha lido sobre humanos oferecerem seus filhos aos seus deuses, mas oferecerem o prepúcio a Javé… Éca! O que o deus hebreu fez com tantos prepúcios? Implantou nos seus anjos?

Quanto a história de Sodoma, resta-nos saber – se possível for – o que Ló fazia numa cidade onde os cristãos atuais a consideram como “cidade de homossexuais”? O que teria levado Ló a ir morar em Sodoma? Pregação do “Evangelho”? Por que hospedaram a Ló e sua família? Por que nunca abusaram de Ló sexualmente? Por que Ló permitiu que suas filhas se tornassem noivas dos “sodomitas”?

Creio que essas perguntas só poderão ser respondidas pelos nossos acusadores – os cristãos – que recebem o espírito santo no corpo, revelando assim todas as “coisas ocultas”!

Temos que encarar a Bíblia e seus relatos como um livro de lendas, contos e mitos, que com o passar dos séculos vai se tornando obsoleto e desqualificado para ensinar, instruir, conduzir e até julgar os seres humanos! É claro que existem fatos históricos contidos nela, mas isso podemos encarar como um simples registro de uma raça que viveu no passado e que continua a manter viva a sua “história”, mesmo que seja através do preconceito!

REFERÊNCIAS:

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1995, 7ª Impressão.

A Bíblia Sagrada. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada. Ed. 1992. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1992.

A Bíblia Sagrada. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Corrigida. Ed. 1995. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995.

Bíblia Católica dos Monges de Maredsous. São Paulo – SP: Ave Maria, 1958.

Bíblia de Estudo Plenitude. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2002.

BLAIR, Ralph. Etiological and Treatment Literature on Homosexuality (New York: Homosexual Community Counseling Center, 1972).

WINK, Walter; NELSON, James B.; JENNINGS, Theodore W.; COBB JR. B. John; JOHNSTON, Robert K. Homossexualidade Perspectivas Cristãs. Tradução de Jaci Maraschin. São Paulo: Fonte Editorial, 2008


Sobre a autora


Andrea Freitas Foltz (“A Profetisa”) é filha de pais brasileiros, com descendência alemã. Advogada, mas atuando como escritora, é casada e tem um filho, Andrew. Sua formação religiosa era evangélica, mas abandonou a crença quando percebeu que no meio em que vivia (a igreja) havia pessoas que diziam ser algo e no íntimo eram outra coisa. O pseudônimo “A Profetisa” foi criado por ela em resposta aos ataques de muitos “cristãos fanáticos” contra a classe homossexual. Desde então, vive para combater o comportamento homofóbico e os absurdos pregados pelos chamados “seguidores de Cristo” contra os homossexuais. A estes, dedica todo o seu amor, carinho e luta através do blogue http://andreafreitas.wordpress.com .

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Fundamentalismo

Por Valéria Nagy

O fundamentalismo é a crença na interpretação literal da Bíblia (ao pé da letra); são as religiões ortodoxas, ou seja, que não aceitam ideias de reforma em sua doutrina; são quaisquer doutrinas ortodoxas.
As principais religiões sempre foram fudamentalistas. Os judeus, ainda que tenham se modernizado um pouco, mantém ainda uma parte ortodoxa; os cristãos subdivididos em católicos, protestantes, evangélicos (pentecostais e neo-pentecostais), espíritas... têm a porção mais fundamentalista, se posso assim dizer, principalmente entre os evangélicos; e os muçulmanos são os mais fundamentalistas. Sejam mais ou menos, esse radicalismo está presente em todas elas, o que é, a meu ver, uma trava nos passos da evolução humana.
Viajando na história, lembremos do fundamentalismo católico da Idade Média denominado Santa Inquisição, fundamentalismo esse que dizimou milhões de seres humanos, pelos meios mais dolorosos que se possa imaginar. Além de prender os considerados hereges, a Igreja de Roma torturou com requintes da mais absoluta crueldade centenas de milhares de pessoas, até a sentença final: a morte. As Cruzadas destruíram e mataram populações de cidades inteiras "em nome de Deus". Na verdade, em nome do Papa.
Já são décadas de conflitos intermináveis no Oriente Médio por conta do fundamentalismo religioso. Muçulmanos e judeus se matam pela Terra Santa, uma terra de ninguém, haja vista o quanto sangue já escorreu por ali e nada mudou; grupos radicais também; e a indignação com o ocidente provoca ataques terroristas como o que vimos em Nova York, em 2001. Matam-se líderes como Sadam Hussein, Osama Bin Laden, Muamar Kaddafi... e daí, o fundamentalismo acabará por causa disso? Não. Pelo contrário, isso só faz aumentar a raiva dentro desses indivíduos, que se autoexplodem em nome de Allah.
Paralelo ao Oriente Médio, vemos crescer o fundamentalismo evangélico, onde religiões pregam o ódio contra outras religiões e contra comportamentos sociais que eles consideram pecado. Com a força da mídia a seu lado, vão propagando sua doutrina a quem possam alcançar, pois as grandes igrejas têm emissoras ou programas de TV aberta e de rede nacional. No momento em que o mundo se prepara para uma grande mudança, como será o arrebatamento? A "fúria" de Deus salvará somente os seguidores dessas religiões?
É preciso parar. Parar e pensar. Será que o fundamentalismo levou a humanidade para algo bom? Será que a Bíblia, a Torá ou o Alcorão devem ser interpretadas de forma tão radical, ao pé da letra? Por que ignorar as palavras de Paulo Apóstolo, quando disse que "a letra mata, mas o Espírito vivifica" (2 Coríntios 3:6)? O que o apóstolo quis dizer? Não nos esqueçamos das milhões de mortes "em nome de Deus" e o aumento da violência "em nome de Jesus" que vimos e vemos por aí. Vamos pensar um pouco melhor no sentido da existência da religião?

Paz Profunda!
Twitter: @nagy_valeria

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

David e Jônatas: homo-afetividade bíblica?

Por Paulo Stekel
 Há muitos anos me interesso pela história homo-afetiva de David e Jônatas, um, o pai do futuro Rei Salomão, o outro, filho do tirânico Rei Saul. Não são poucos os pesquisadores, linguistas, arqueólogos e até sacerdotes cristãos que imaginam no relato bíblico sobre estas personagens uma relação homo-afetiva velada. É claro que a ala fundamentalista do Cristianismo rechaça a ideia com toda a veemência do seu discurso sempre vazio de argumentos mas cheio de agressividade. Contudo, os indícios existentes no próprio texto bíblico não são pouco nem irrelevantes.

Em meu livro “Elohê Israel – filosofia esotérica na Bíblia” (versão impressa de 2001 e versão digital de 2006 – baixe trechos do livro em http://stekelmusic.blogspot.com/2011/05/livros-de-stekel-e-books-em-pdf.html), uma das obras que uso como material didático em meus cursos de Cabala, Hebraico antigo e Interpretação Bíblica, discorri sobre o tema analisando o que diz o texto original em Hebraico. Reproduzo abaixo os trechos do livros sobre David e Jônatas, com algumas inserções adequadas para o presente artigo:

“A história de David é uma das mais controversas e impressionantes do Antigo Testamento. Muitos dos seus feitos foram exagerados pelos redatores. A vitória sobre o gigante filisteu Golias pode não ter sido sua (cfe. I Sm 17.40-54), pois II Sm 21.19 diz: “Ainda em Gob, noutra guerra contra os filisteus, Elcanã, filho de Jair, de Belém, matou Golias de Gat; a madeira de sua lança era como cilindro de tear.” Se vê que não era consenso em Israel ter sido David o matador do Golias filisteu.

Morto o gigante, Saul passou a invejar David, enquanto o povo admirava o jovem. O próprio filho de Saul, Jônatas, parece ter amado David mais do que seria aceitável na sociedade israelita daquela época, embora fosse aceitável para os povos vizinhos a Israel. Atualmente, alguns teólogos têm aventado a hipótese de uma ligação homossexual entre David e Jônatas. Apesar da ideia causar espanto, na Grécia antiga esta era uma prática perfeitamente aceitável entre os homens, principalmente em períodos de guerra, quando os guerreiros abandonavam suas esposas para lutar. Entre os povos vizinhos a Israel esta parece ter sido uma prática muito comum, e deve ter sido tolerada em Israel por muito tempo, até ser criminalizada pelos sacerdotes deuteronomistas pós-exílicos. David, entretanto, como se sabe, tinha uma queda irresistível pelas práticas “pagãs”!

I Sm 18.1,3 diz: “Aconteceu que, terminando ele [David] de falar com Saul, a alma de Jônatas
apegou-se à alma de David
[orig. Hebraico -
venéfesh yehonathan niqsherah benéfesh davidh]. E Jônatas começou a amá-lo como a si mesmo [orig. Hebraico - vaye'ehavehu yehonathan kenafsho]. (...) Jônatas fez um pacto com David, porque o amava como a si mesmo. Jônatas tirou o manto que vestia e o deu a David, e também lhe deu a sua roupa, a sua espada, o seu arco e o seu cinturão.”

As roupas são parte da personalidade. Então, ao dar suas roupas a David, o apaixonado Jônatas, pego, ao que parece, por um amor à primeira vista, se tornou ligado a David de um modo indissolúvel, como se fossem “almas gêmeas”.

"O termo “nefesh”, que se traduz por “alma” equivale também ao corpo na Cabala. Assim, a tradução incluiria o sentido: “(...) o corpo de Jônatas ligou-se ao corpo de David. E Jônatas começou a amá-lo como a seu próprio corpo.” Não se trataria de uma simples amizade, como nos tentaram fazer entender os redatores do livro de Samuel. Afinal, a lei deuteronomista não aprovava este tipo de relação, abominada por ser considerada prática pagã.

Analisemos mais alguns trechos sobre esta questão: “Ora, Jônatas, filho de Saul, tinha muita afeição [orig. Hebraico -
chafets] por David.” [I Sm 19.1] O termo “chafets” significa “gostar” e “desejar”. Devemos entender que Jônatas tinha “muito desejo por David”?"

Este trecho analisado se refere a um dos vários momentos em que Jônatas defende David dos ataques de seu pai, o Rei Saul:

“Saul comunicou a seu filho Jônatas e a todos os seus oficiais a sua intenção de levar David à morte. Ora, Jônatas, filho de Saul, tinha muita afeição por David, e advertiu a David dizendo: 'Meu pai busca a tua morte. Fica de sobreaviso amanhã de manhã, procura o teu refúgio e esconde-te. Eu sairei e permanecerei ao lado do meu pai no campo em que estiveres, e então falarei com meu pai a teu respeito, saberei o que houver e te informarei.'”

Quanto amor! Quando David precisou fugir em definitivo de Saul, que o queria matar:

“Então David fugiu das celas de Ramá e veio ter com Jônatas, dizendo: 'Que fiz eu? Qual a minha falta? Que crime cometi contra teu pai, para que procure tirar-me a vida?' Ele lhe respondeu: 'Longe de ti tal pensamento! Tu não morrerás. Meu pai não empreende coisa alguma, importante ou não, sem confiá-la a mim. Por que ocultaria tal plano de mim? Impossível!' David fez este juramento: 'Teu pai sabe perfeitamente que me favoreces e, portanto, diz consigo: 'Não saiba Jônatas nada a respeito disso, para que não sofra'. Mas, tão certo como vive Iahweh e como tu vives, existe só um passo entre mim e a morte.' Jônatas disse a David: 'Que queres que eu faça por ti?'” (I Samuel 20)

A cumplicidade entre ambos é evidente neste e em outros trechos. O que incomodava Saul, além da inveja do herói que David era, pode ter sido a ligação homo-afetiva deste com seu filho Jônatas. Ambos eram casados com mulheres mas, à moda grega, isso não seria impedimento naquela época para momentos homo-afetivos.

"I Sm 20.17 diz que Jônatas “o amava com toda a sua alma”. As ambições dos dois talvez fossem
maiores do que essa “amizade grega”, pois no momento em que Saul perseguia David, Jônatas o protegia de cada ataque, e disse, em I Sm 23.17: “Não temas, porque a mão de meu pai Saul não te atingirá. Tu reinarás sobre Israel, e eu serei o teu segundo. Até mesmo meu pai Saul bem sabe disso.” Seria possível que os dois reinassem juntos, caso Jônatas não tivesse sido morto em batalha? Para alívio dos ortodoxos, eivados de preconceitos e hipocrisia, esta é uma pergunta sem resposta.


Após a morte de Saul e Jônatas, David compôs uma lamentação (II Sm 1.19-27), onde, acerca do
amigo, revela: “Jônatas, a tua morte dilacerou-me o coração, tenho o coração apertado por tua causa, meu irmão [orig. Hebraico -
'achí] Jônatas. Tu me eras imensamente querido, a tua amizade [orig. Hebraico - 'ahavathkhá] me era mais cara do que o amor das mulheres [orig. Hebraico - me'ahavath nashim].” Há aqui um flagrante do receio de se traduzir corretamente um trecho pelas implicações que isso pode acarretar. O termo hebraico traduzido por “amizade” é o mesmo traduzido por “amor” das mulheres – é o termo 'ahavah, que significa “o amar, amor, amizade” e deriva do verbo 'ahev - “gostar, amar”. Assim, a tradução correta seria: “(...) o teu amor me era mais caro do que o amor das mulheres”! Fica claro, pela palavra usada, que David se refere ao mesmo tipo de amor, o do companheirismo de um relacionamento! Por isso o chama de 'achí, que, além de “meu irmão”, significa “meu companheiro”."

A lamentação completa de David a Jônatas é cheia de uma saudade amorosa impressionante:

“Pereceu o esplendor de Israel nas tuas alturas?
Como caíram os heróis?

Não o publiqueis em Gat,
não o anuncieis nas ruas de Ascalon,
que não se alegrem as filhas dos filisteus,
que não exultem as filhas dos incircunsisos!

Montanhas de Gelboé,
nem orvalho nem chuva se derramem sobre vós,
campos traiçoeiros,
pois foi desonrado o escudo dos heróis!

O escudo de Saul não foi ungido com óleo,
mas com o sangue dos feridos,
com a gordura dos guerreiros;
o arco de Jônatas jamais hesitou,
nem a espada de Saul foi inútil.

Saul e Jônatas, amados e encantadores,
na vida e na morte não se separaram.
Mais do que as águas eram velozes,
mais do que os leões eram fortes.

Filhas de Israel, chorai sobre Saul,
que vos vestiu de escarlate e de linho puro,
que adornou com ouro
os vossos vestidos.

Como caíram os heróis
no meio do combate?
Jônatas, a tua morte dilacerou-me o coração,
tenho o coração apertado por tua causa, meu irmão Jônatas.

Tu me eras imensamente querido,
o teu amor me era mais caro
do que o amor das mulheres.
Como caíram os heróis
e pereceram as armas de guerra?”


Me lembro, neste momento, da história do Imperador Adriano e de seu amante Antinous, pois aqui só estão faltando as estátuas votivas espalhadas pelo mundo antigo e o endeusamento do mancebo...