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quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Gays, evangélicos e o direito à igualdade num Estado Laico


Por Toni Reis (publicado originalmente em http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/gays-evangelicos-e-o-direito-a-igualdade-num-estado-laico/)



Um deputado federal e pastor evangélico fez um chamado (ver tb. a resposta de Espiritualidade Inclusiva a tal artigo) no mês de julho de 2012 a todas as denominações evangélicas do Brasil para que se unam contra a criminalização da homofobia e criticou as decisões do Supremo Tribunal Federal “de esquerda” a favor de “tudo que não presta”, incluída aí a “união estável homoafetiva”.

O pastor está longe de ser o único a fazer manifestações públicas dessa natureza: basta fazer uma busca em alguns sites fundamentalistas na internet, assistir a determinados programas de televisão e ouvir discursos proferidos por certos parlamentares evangélicos.

Fico me perguntando por que tanto desprezo, tanto ódio, tanta agressão, tanto amedrontamento infundado dos fiéis, tanto anúncio da “catástrofe” por vir que representaria a proteção jurídica dos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), e tanta perseguição até contra pessoas que não são LGBT, mas que têm manifestado seu apoio à causa da diversidade, vide alguns ataques que já se iniciaram nestas eleições. Onde está o espírito do cristianismo exemplificado e pregado pelo próprio Cristo? O que aconteceu com o mandamento pregado por ele: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”?

A homofobia é pecado, assim como o racismo. Vejam, por analogia, o relato de Tiago: “Todavia, se estais cumprindo a lei real segundo a escritura de amar ao teu próximo como a ti mesmo, fazeis bem. Mas se fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, sendo por isso condenados pela lei como transgressores”. E também em Atos: “Então Pedro, tomando a palavra, disse: ‘Na verdade, reconheço que Deus não faz acepção de pessoas’”. Mesmo que fôssemos utilizar argumentos de livros sagrados, o que não é o caso, está havendo – sim – acepção da comunidade LGBT.

Querer marginalizar segmentos da sociedade em nome de uma suposta verdade é uma prática perigosa, e também um erro no sentido original da palavra pecar (errar o alvo). A esse respeito é impossível não fazer um paralelo com o extermínio nazista de todas as pessoas que – segundo o dogma deles – também “não prestavam”. O resultado disso foi o holocausto. O paralelo também se espelha em seguir de modo incondicional, cegamente e sem senso crítico, as pregações dos líderes fundamentalistas, até se chegar ao caos irreversível, o verdadeiro inferno na terra: o holocausto, no caso do regime nazista; a intolerância e barbárie no caso do islamismo fundamentalista, por exemplo. Seria imperdoável a religião – no caso, o fundamentalismo evangélico no Brasil – errar mais uma vez.

Os protestantes/evangélicos já sofreram muito no Brasil e em outros países católicos, chegando a ser uma minoria perseguida. Por que então perseguir outra minoria por causa de sua condição sexual? Não se aprendeu nada da triste lição de ser objeto de preconceito, discriminação e até de morte por serem “hereges”, ou terem uma religião diferente da predominante? E é assim que as pessoas LGBT sofrem hoje por terem uma sexualidade diferente da convencionalmente aceita. Apenas como exemplo, na semana passada publicaram-se os resultados de mais uma pesquisa que apontou que 70% dos gays de São Paulo já sofreram agressão, verbal, física ou sexual.

Temos plena consciência de que é um erro generalizar e sabemos – de primeira mão – que há muitas pessoas evangélicas que não seguem essas posições fundamentalistas homofóbicas e, sim, procuram respeitar a todos na profissão e no exercício de sua fé.

Um exemplo é o bispo negro sul-africano Desmond Tutu, da igreja anglicana, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, que tem se posicionado inúmeras vezes contra a prática de fazer acepção às pessoas LGBT:

“Discriminar nossas irmãs e nossos irmãos que são lésbicas ou gays por motivo de sua orientação sexual é para mim tão totalmente inaceitável e injusto quanto o apartheid… Opor-se ao apartheid foi uma questão de justiça. Opor-se à discriminação contra as mulheres é uma questão de justiça. Opor-se à discriminação por orientação sexual é uma questão de justiça. É improvável que o Jesus a quem louvo colabore com aqueles que vilipendiam e perseguem uma minoria que já é oprimida” (tradução minha, fonte).

Não queremos uma guerra santa ou uma guerra arco-íris, muito menos criar e impor uma “ditadura gay” ou um “império gay”. Não! Absolutamente! Não queremos ser excluídos das famílias e nem destruí-las, como se alega. Queremos ter a nossa vivência e construir a nossa família da nossa forma, em coexistência pacífica e harmoniosa com as já estabelecidas. A diversidade existe e isso há de ser reconhecido e respeitado. Uma sociedade se faz com toda a diversidade: “Quase sempre minorias criativas e dedicadas tornam o mundo melhor” (Martin Luther King). Não se deve discriminar ninguém, sejam tais parcelas sociais representativas de 0,25%, 25% ou 90% da população. Respeitar as minorias é dever de todos, como já diz o grande pacifista Gandhi: “Uma civilização é julgada pelo tratamento que dispensa às minorias”.

Também há muitas pessoas LGBT que são cristãs e para as quais é dolorido serem tachadas de pecadoras e desviantes dentro do seio das igrejas, ao ponto de se sentirem excluídas e desistirem de frequentá-las. Nesse sentido, gostaria de citar o primeiro ministro do Reino Unido, David Cameron (Partido Conservador) em pronunciamento recente: “Eu sei que isso é muito complicado e difícil para todas as igrejas, mas acredito fortemente que as instituições devem redescobrir a questão da igualdade e as igrejas não devem ser oposição a pessoas que são gays, bissexuais ou a transgêneros, que também podem ser membros plenos das igrejas, assim como muitas pessoas com visões cristãs profundamente enraizadas são homossexuais”.

A igualdade é uma das questões no cerne desse debate. O Brasil é um Estado laico – não há nenhuma religião oficial, as manifestações religiosas são respeitadas, mas não devem interferir nas decisões governamentais – e o país é regido por uma lei magna, a nossa Constituição Federal. A Constituição garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e que não haverá discriminação. Por isso as proposições legislativas que visem a restringir nossos direitos se veem derrotadas uma a uma.

No caso da população LGBT no Brasil, ainda não temos igualdade de direitos em todos os quesitos, e ainda sofremos muita discriminação. Os dados oficiais do governo federal para o ano 2011, obtidos através do módulo LGBT do serviço telefônico Disque-denúncia, revelam que houve 6.809 denúncias de violações de direitos humanos de pessoas LGBT, representando 18,6 violações por dia. As violências mais denunciadas são as de ordem psicológica (42,5%), por discriminação (22,3%) e a violência física (15,9%).

Esse quadro, que inclui também o elevado número de assassinatos, se repete todos os anos no Brasil. Apesar disso, o Congresso Nacional tem sido omisso e em 11 anos não aprovou nenhuma proposição em resposta a essa situação. A omissão é mais um sinal de desrespeito aos preceitos constitucionais da igualdade, da não discriminação, da dignidade humana, entre outros e, acima de tudo, um sinal claro do desrespeito e da indiferença quanto à situação vivida pela população LGBT. Diante disso, não podemos mais ficar de braços cruzados e aceitar o descaso. Buscamos junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) a possibilidade do reconhecimento de nosso direito à proteção jurídica contra a violência e a discriminação homofóbica, como já existe em 58 países.

Isso não é uma ameaça à liberdade de expressão, e nem à liberdade de crença. A nossa iniciativa não é um ataque frontal voltado para as igrejas. Defendemos intransigentemente essas liberdades, contanto que não sejam utilizadas como salvo-conduto para ataques à nossa cidadania, e nos defenderemos com todas as armas políticas e jurídicas disponíveis – incluídos aí o Ministério Público e o Judiciário, sempre.

O mandado de injunção apresentado ao STF é uma tentativa de reverter o comprovado quadro de violência e discriminação que nós, cidadãs e cidadãos LGBT brasileiros, vivenciamos nos mais diversos campos, mas que – ao contrário do racismo, por exemplo – não é punido por legislação específica, de modo a incentivar e perpetuar a impunidade de quem pratica esses crimes.

A decisão de 5 de maio de 2011 do STF em reconhecer a união estável homoafetiva foi uma afirmação da soberania da Constituição em nosso país e da indivisibilidade da igualdade dos direitos. Isso quer dizer que não há mais direitos para alguns setores da sociedade e menos para outros, mas que os direitos são iguais, ou pelo menos deveriam ser, no dia a dia da sociedade brasileira. Enquanto o Legislativo federal persiste em não reconhecer isso, a mais alta instância do Judiciário foi firme e unânime em fazer valer os preceitos constitucionais indiscriminadamente. Que o mesmo exemplo seja dado em relação à criminalização da homofobia.


Sobre o autor


Toni Reis é Professor, paranaense, 46 anos, formado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em sexualidade, mestre em Ética e Sexualidade e doutorando em Educação. Preside a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e é conselheiro do Conselho Nacional LGBT.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Quero ser um yorkshire!

Por Paulo Stekel


Exatamente! Quero ser um yorkshire porque, como gay, não consigo que se tenha por mim ou meus iguais o mesmo sentimento de emoção fleumática, misto de indignação, pena e desencargo de consciência que se viu há algumas semanas no caso do yorkshire espancado até à morte pela enfermeira Camilla Corrêa na cidade de Formosa, cidade goiana no entorno do Distrito Federal. Muitos gays são espancados todos os anos, mortos com requintes de crueldade, e não só não vemos tal movimentação indignada, como ainda temos que suportar os fundamentalistas religiosos culpando as vítimas por serem gays, incitando ainda mais a brutal violência anti-gay.

Quero ser um yorkshire porque assim posso ter mais de 328 mil pessoas assinando uma petição pública contra meu agressor – um buzz sem precedentes -, pedindo sua prisão, multa e os mais exaltados, até sua morte! Como gay agredido, além de outros gays, quem mais assinaria em meu favor?

Quero ser um yorkshire porque assim posso ter um forte aparato de defesa – a sociedade protetora dos animais – , formada por uma militância implacável que se mobiliza em todas as mídias com uma velocidade impressionante e se valendo de argumentos radicais e, por vezes, até chocantes, como o de uma militante que disse: “Prefiro ajudar um cachorro faminto na rua do que dar de comer a um pivete nas esquinas”. Quem preferiria ajudar um gay numa situação extrema?

Quero ser um yorkshire porque assim posso me sentir vingado quando o perfil de meu agressor nas redes sociais é alvejado com todo tipo de trollagem, discurso de ódio, indignação e ofensas por pessoas comuns que se consideram sérias, honestas, pagadoras de impostos e cumpridoras de seus deveres de cidadãs. Como gay, eu é quem sou o trollado!

Quero ser um yorkshire porque, se meu dono não conseguir me matar, e os que amam animais me resgatarem, serei criado num lar feliz onde todos consideram meu passado de sofrimento como determinante na hora de me verem como um ser digno de amor e de afeto. O passado de sofrimento de um gay não tem o mesmo peso, pois os fanáticos julgam que ele sofre porque decidiu ser como é, desconsiderando que nasceu assim...

Quero ser um yorkshire porque assim posso ter a sorte de alguém gravar um vídeo com as agressões sofridas por mim, postar o conteúdo em websites como o youtube, sendo assistido por milhões de pessoas e incitando a opinião pública a exigir do agressor a pena máxima e até a não devida.

Quero ser um yorkshire porque, por mais que meu agressor me bata e depois diga que foi um simples estresse e que, na verdade, ama os animais, ninguém acreditará nele, baixando a lenha em seus argumentos insanos. Como gay, quando fanáticos religiosos ou políticos homofóbicos incitam a violência em seus discursos, mas dizem que amam os gays como seres humanos, e que apenas foram muito intensos em suas palavras, pois defendiam a família, a moral e os bons costumes, fica tudo por isso mesmo.

Enfim, quero ser um yorkshire porque, neste caso, sendo um animal, pequeno, fofinho, sem poder falar, me expressar ou me defender, há quem defenda meus direitos e até adivinhe o que sinto, o quanto sofro e a felicidade que almejo. Que bom que existem pessoas sensíveis assim! Porém, como gay, poucos são os que defendem meus direitos fundamentais, os que sequer imaginam o que sinto, o quanto sofro e a felicidade que almejo... embora seja fácil deduzir, já que meu coração bate do mesmo modo que o de todos os seres humanos... e é quase igual ao do yorkshire: um coração vivo!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Constrangimentos de Fim de Ano

Por Paulo Stekel (artigo postado originalmente em http://gayexpression.wordpress.com/2010/12/21/constrangimentos-de-fim-de-ano/)

Uma de minhas maiores tristezas é o fato de que nunca pude revelar a meus familiares a minha condição… Na maior parte do ano, morando em outra cidade, era até fácil esconder a verdade, dar desculpas não checadas, falar de namoradas fictícias e montar discursos satisfatórios de minhas atividades na capital. Mas, então, chegava o período das festas de fim de ano e a angústia se apossava de mim. Viajar ao interior, junto ao seio familiar, sem as “provas” de normalidade tão ansiada por todos, era um suplício. Parecia que eu me dirigia à cadeira elétrica ou que portava uma bomba-relógio que poderia explodir a qualquer momento.
Todos os meus irmãos iam com suas esposas ou namoradas. Independente de seus atos privados, podiam gozar da visão da normalidade tão desejada pelo “clã”. Eu sempre ia sozinho… triste… acuado como um cão culpado por ter feito algo desaprovado por seu dono. De certa forma, isso me tornava o centro das atenções, das perguntas indiscretas e das preocupações de meus pais. O fato de eu ter ido bem na faculdade, de estar trabalhando e de aparentar ótima saúde parecia irrelevante diante da anormalidade de ter vinte e cinco anos e ainda não ter casado, nem de jamais ter sequer levado uma namorada para visitar minha terra natal. Um constrangimento indescritível. Um ano inteiro de apreensão maquinando respostas às perguntas mais astutas sobre minha vida pessoal.
Mas, quando conheci o amor de minha vida, esse teatro de quinta não podia mais continuar. O conheci no início do ano e, antes de junho já morávamos juntos. Para meus familiares, era só um colega de faculdade que dividia o apartamento comigo. Como nunca nos visitavam, era fácil manter a mentira. Contudo, para os familiares dele, tudo era o oposto. Sabiam, aceitavam e aprovavam. Algum alento em meio ao inferno que minha alma enfrentava todo o tempo.
Mais um final de ano e uma decisão difícil: passar o Natal na casa dos pais dele, sendo aceito plenamente, ou ir sozinho para a casa de meus pais, repetindo a peça teatral há tanto tempo em cartaz… Se decidisse ir para a casa dos pais dele, como explicar aos meus minha ausência?
Depressão, sono, remédios e muito choro após, tomei uma decisão aparentemente insana: ir para a casa de meus pais… com ele. E, fomos! Inicialmente o apresentei como o meu colega de apartamento, o que não era de fato uma inverdade. Mas, os olhares indiscretos, já tão constrangedores em outros anos, agora eram como um pelotão de fuzilamento.
Por fim, me decidi a ir para o paredão e, orgulhoso de minha coragem justa, disse minhas últimas palavras: “Pessoal, este homem que veio comigo não é apenas meu colega. É muito mais do que isso. É a força que eu não tinha, a auto-estima que eu buscava e o amor próprio que tinha perdido. Com ele conheci a família que nunca tive. Ele é meu namorado, o homem que eu amo…”
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A vida é mais irônica e cruel que a ficção. Aprendi isso com o tempo. Quando mais jovem, pensava que a ficção forçava a realidade. Depois, vi que a ficção às vezes é até mais leve.
Quando eu o conheci, acho que nossas almas se entenderam imediatamente. Mas, para ele, a força do ambiente era um impedimento enorme. Sua depressão evidenciava a pressão da família para que não nos víssemos mais. Algumas vezes pensava que ele poderia se suicidar. O pai, um militar linha dura daqueles que adora justificar os tempos da Ditadura, um exemplo de marido (quando a esposa não estava por perto para ver seus casos extraconjugais) e um nobre maçom partidário da Igualdade e o resto que se segue – não sei como ele conciliava tudo isso – de tudo fazia para nos afastar, por ter percebido mesmo antes de nós o que estava sendo engendrado em nossos jovens corações. Os embates intelectuais entre eu e ele eram memoráveis… e tensos. Meu amor ficava mudo, sem dizer uma palavra, apenas ouvindo… ou entorpecido pelo medo.
Chegou a época da formatura do meu amor e ele retornou a sua cidade natal. O pai dele comemorava com os olhos um afastamento que julgava ser definitivo, qual uma cura para um mal que – ele insistia em fazer de conta que não percebia – com certeza não estava em mim.
No final do ano estava eu longe de quem mais me importava ter por perto. Ele sentia o mesmo. Telefonava-me às escondidas, pois estava sob “vigilância militar”. Decidiu vir vir-me no final do ano. Se impôs pela primeira vez, aumentando o ódio que o pai dele sentia de mim. Mas, ele veio. Passou o Natal comigo. Contudo, sua depressão continuou e eu o fiz retornar a sua família.
Num golpe de coragem extrema eu fui até ele após o ano novo. Enfrentei as ironias do “sogro”, a apatia da “sogra” e o comportamento robotizado/normalizado dos “cunhados”. Filhotes de ditador muito bem treinados… Naquela casa passei uns três dias, me sentindo parte de um experimento do “general” do lugar, que deixou as coisas correrem para ver até onde iríamos. Não fomos muito longe… O medo que um filho pressionado tem de seu pai pode paralisar tudo, até o coração. Ele se afastou, não me atendeu ao telefone, tentou o suicídio. Fracassou… Sobreviveu. Entrou nos “eixos da normalidade” e se anulou para si mesmo. Passados muitos anos, está tão obeso quanto seu pai. Eu, contudo, fiz tudo ao contrário. Revivi, levantei, venci, o esqueci e amei novamente. Escolhas… nada mais que escolhas.
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O que mais importa no final do ano? Celebrar, fofocar ou dar-se à hipocrisia? Todos se consideram cristãos incontestes, mas raramente lembram de quem é o aniversariante no Natal. Esquecem totalmente o amor ao próximo pregado por ele. Então, no que se transformou este dia que quase ninguém ousa não comemorar? Em um teatro de marionetes de péssimo gosto. Sempre me senti uma marionete nesta época. Por isso, deixei de comemorar o Natal ou o Ano Novo com minha família. Não sou o tipo que fica inventando mentiras sobre minha vida pessoal para agradar a hipócritas não-santos que se acham a fina flor da “normalidade familiar”. A normalidade familiar é a podridão da mentira e da hipocrisia, é o que se esconde para aparentar autoridade moral.
Depois de muitos anos passando as festas de fim de ano com amigos em lugares públicos, bares e festas privadas, resolvi naquele ano passar com a família de meu namorado. Ele havia me explicado que, embora nunca tenha se assumido, eles pareciam perceber tudo e nunca interferiam, nem ficavam fazendo perguntas constrangedoras. Perfeito demais, pensei… Mas, vamos lá.
A mãe recebeu-nos com a gentileza típica de quem sempre foi “do lar”, empanturrando-nos com todo o tipo de guloseimas de Natal, algo que ela teve muito tempo de sua mesmice de vida de esposa-empregada do marido e dos filhos para aprender.
O pai havia morrido. Os irmãos tinham suas próprias vidas e não se intrometiam uns nos negócios dos outros. Então, as festas de fim de ano serviam apenas para um rápido relatório das atividades anuais, sem muitos detalhes. Essa era a salvaguarda de meu namorado. A mim, só perguntaram coisas comuns, como estudo, trabalho, gosto musical ou literatura. Religião parecia assunto interdito, apesar do Natal ser a maior festa religiosa do Ocidente…
Pode parecer estranho, mas mesmo não sendo alvejado por perguntas constrangedoras, me sentia constrangido naquela mesa farta. O silêncio constrange tanto ou mais que a palavra cortante.
Por baixo da mesa tentei pegar na mão de meu amor, mas ele a retirou imediatamente, olhando-me com ar de reprovação. Perguntei-lhe no ouvido o motivo de não poder pegar em sua mão. Não me respondeu.
Terminada a ceia-cena-ato cronometrado, rito cumprido para exorcizar demônios inquisitórios arquetípicos, cada um foi se retirando e retornando a sua casa. Eu ainda mantinha meu semblante de indignação por nem sequer poder abraçar quem amo na hora do “Feliz Natal”.
Assim que todos saíram e só ficamos eu, ele e a “sogra-empregada”, perguntei-lhe novamente o motivo de não poder me aproximar. Ele novamente emudeceu, mas a mãe chegou em meus ouvidos e sussurrou: “A regra do pai dele ainda é seguida aqui – faça o que quiser de sua vida, frequente a casa paterna com quem quiser, mas não obrigue minha alma a compartilhar da indecência que deve ficar apenas entre você, Deus e o Inferno…”
Indignado, me pus porta afora, não sem antes dizer em alto e bom som: “Antes o Inferno da Verdade da Alma que o Paraíso da hipocrisia dos salvos autodeclarados!”
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Estas três histórias ilustram muito bem o constrangimento que gays passam junto a seus familiares no período das festas de fim de ano. Duas destas histórias são fictícias; uma delas é verdadeira, e se passou comigo. Deixo para vocês a tarefa de descobrir qual delas é um pedaço de minha vida.

Conheço muitos gays que vivem longe de suas famílias. Muitos estudaram, foram ótimos alunos, trabalham e se sustentam, e saíram de suas cidades natais para evitar os constrangimentos típicos de quem ama alguém do mesmo sexo. Na maior parte do tempo o constrangimento é evitado, salvo nas festas de fim de ano. Reencontrar pais, irmãos, primos, tios e sobrinhos é um prato cheio para perguntas totalmente destituídas de inocência. Afinal, nossos parentes nos conhecem muito bem, principalmente nossos pontos fracos. O pai pergunta: “Como vão as namoradas?” (Um pai machista não se sente seguro se for uma só!) A mãe pergunta: “Você está se cuidando?” (O velho clichê da promiscuidade dos gays…) Os irmãos perguntam: “Então, vai casar com mulher ou continuar pagando de veado para todos?” (Esses são os mais sinceros!) Os parentes mais distantes (mas não menos maquiavélicos) perguntam: “Por que não trouxe a namorada desta vez? Você tem namorada, não é? Um rapaz de quase trinta anos sem namorada, já viu, né?” (Vontade de responder: “Veado é seu filho, que tem quinhentas namoradas de fachada e vive dando em cima de mim!”)
A grande verdade é que as festas de fim de ano, especialmente o Natal, são um momento constrangedor para todos, gays ou não. As disputas se acirram, as mágoas se revelam, a hipocrisia reina absoluta, mas o peru tem que estar impecavelmente assado sobre a mesa. E, o aniversariante? Quase nunca é lembrado, salvo em famílias muito religiosas em que alguém ainda lembra que o Natal é a comemoração de um aniversário.

Quando eu era cristão não me indignava tanto com isso como agora, que sou budista. Quando era cristão estava imerso na onda e não percebia o óbvio. Como budista, consigo perceber a deformação e me lembro do aniversariante em sinal de respeito muito mais que muitos cristãos na noite de Natal. O comércio tomou conta da festa, a hipocrisia se tornou a tônica da celebração e o presépio foi susbtituído pelo Papai Noel.
Em geral, meus amigos gays não gostam destas coisas, pois são pessoas inteligentes e percebem a jogada. Gays são pessoas que acabam por aprender a viver sozinhos, a se sustentar, a responder à intolerância e a ironizar a hipocrisia das famílias. A única exceção é um primo meu, formando de Medicina (o julgava culto e inteligente…), que ao saber que não comemoro o Natal por ser budista (ele sabe o que é isso?), largou esta pérola: “Como assim? Todo mundo comemora o Natal! Não conheço quem não comemore!” (Silêncio sepulcral…) [Só para matar a curiosidade de vocês: ele ainda vai sozinho para o interior no final do ano e jura que tem namorada, mas mora com o namorado há anos.]

Nota atual: A pessoa que protagonizou comigo a história verdadeira (vocês deverão deduzir qual é ela) morreu num trágico acidente de carro em abril de 2011, portanto, quatro meses após eu ter escrito este artigo. Foi uma fatalidade. Ele estava na carona do carro da empresa e não resistiu aos ferimentos. Ao Eduardo, seu nome verdadeiro, rendo minhas homenagens póstumas...)