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sexta-feira, 15 de junho de 2012

Direito e amor




















Por Marcelo Moraes Caetano
"Nós somos o que fazemos repetidas vezes. Portanto, a excelência não é um ato, mas um hábito."

(Aristóteles)

Erich Fromm defende, ao longo de sua obra, que o amor é o elemento que norteia a saúde mental. Para ele, a sociedade exerce, inclusive legitimamente, influências sobre o psiquismo (usarei termos que não necessariamente eram usados pelo estudioso aqui evocado). Assim, num resumo despretensioso de parte de sua obra, pode-se entrever que o indivíduo é fruto e efeito, sim, da sociedade em que vive, mas que, diferentemente das correntes majoritárias daquele tempo (idos da década de 40 e 50 do século XX), a sociedade não é capaz de, por si só, determinar os padrões de realização do ser.


Para ele, por fim, a identificação por meio do amor passa, portanto, pela esfera social, pela alteridade, isto é, pela presença do outro em minha vida. No entanto, uma espécie de narcisismo resquicial seria meu verdadeiro parâmetro para julgar a integralização da felicidade no outro. Em termos diferentes, seria por meus próprios sentimentos de prazer e desprazer que eu julgaria, no outro, a realização de prazeres ou desprazeres.


Decorre daí que o ser humano, em suma, precisa de alguma potência maior que ele próprio, o que seria a sua própria transcendência. Essa transcendência pode ser alcançada, como se viu, no amor ao outro, numa alteridade com a lente do narcisismo, ou numa entrega a grupos de poder, religiões, Deus.


Muitos outros pensadores executaram a meritória labuta de conciliar as ideias de Freud às ideias sociológicas. Assim foi que Marcuse, por exemplo, uniu o freudismo ao marxismo, criando, entre outros, seu “Eros e civilização”. Fromm, por seu turno, preocupou-se muito com as questões do trabalho e da sociedade, e, assim como Marcuse, via no amor – em Eros – uma fonte ou um guia da aludida saúde psíquica.


Quero com isso dizer que o ser humano estará, sempre, inserido numa sociedade. Isso é premissa maior. As teorias que observam este ser humano sob o pano de fundo de tal ou qual sociedade são muito variadas – deterministas, positivistas, psicanalíticas, antropológicas etc.


Porém, de alguma forma, a maior parte delas, mesmo as mais estritamente relativistas e ortodoxas, como a de Taine, de Comte ou de Durkheim, preveem, mais ou menos parcimoniosamente, a possibilidade de o ser humano vencer os interditos e os tabus eleitos por dado “Tempo” para criarem “Enunciados” capazes de libertá-los desses interditos e tabus, que, muitas vezes, tornam-se datados, obsoletos, anacrônicos.


A adesão ou irrupção, por exemplo, são modos de se ascender ao status quo opressor. A transcendência, voltando a Fromm, pode ser, por sua vez, atingida, grosso modo, por criatividade ou por destruição. Deleuze, em seu “O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia”, lança a famosa questão: que sedução é essa, que nos impele a queremos aderir ao mesmo poder que outrora nos oprimiu?


Pois a sociedade, com seu construto necessariamente heterônomo, coercitivo, estabelece, por razões que não cabem neste artigo, vários interditos, vários tabus, várias proibições que, num ou noutro momento, tacha de naturais, morais, éticos, legalistas, legítimos e, até, divinos...


Não é à toa que Weber, por exemplo, cria relações estreitas entre o capitalismo e a ética da religião protestante. Não é à toa que Jung tenha querido conhecer as religiões dos povos ditos não-civilizados a fim de encontrar, neles, uma possível sistematização “arquetípica”, como ele próprio chamou, aplicáveis, até, nas civilizações industriais/mercantilistas.


Porque muitos são os fatores que pretendem legitimar, ao longo dos tempos, as exclusões de tal ou qual grupo, de tal ou qual indivíduo. É bom deixar claro que o “normal”, em todas as sociedades, corresponde àquilo que prvém da norma, ou seja, do que é mais comum ocorrer. No entanto, nem todas as sociedades desconhecem que o que não é mais comum seja, só por isso, desagradável, nocivo, deletério ao funcionamento regular e saudável daquela sociedade.


Para ficarmos no ocidente, e sem pretendermos ir muito a fundo, podemos dizer que foram (ou são) interditos de ordem sociocultural a “secundarização” da mulher (para fazer uma apropriação do título do livro de Simone de Beauvoir: “O segundo sexo”), o temor ao estrangeiro (sobretudo com o avanço do neoliberalismo, em que o estrangeiro é uma potencial ameaça à sobrevivência do nativo), o estranhamento a etnias, religiões e orientações sexuais diferentes da “normal” (a mais comum, como vimos) numa dada sociedade ou grupo.


Foi dessa forma que os avanços obtidos pelas chamadas populações secundárias, nas palavras de Sartre e Beauvoir, ocorreram gradativamente.


A abolição da escravatura, no Brasil, por exemplo, ocorreu, como se sabe, por questões de interesse da Inglaterra, cujo capitalismo florescente via no contingente de escravos, NÃO-CONSUMIDORES, um entrave a seus interesses. Os britânicos intervieram, até mesmo, na soberania nacional brasileira, colocando-se no patamar de juízes de navios que quisessem traficar negros para o Brasil. Criou-se, por aqui, a chamada lei “para inglês ver”, que fazia vistas grossas à proibição do trono do Reino Unido. Mais uma vez, vemos o interesse social (e, ora, evidentemente econômico) por trás da conquista de direitos humanos tão básicos.


O caso das mulheres, ainda para ficarmos nas searas brasileiras, pareceu ser um eco dos movimentos libertários franceses, estadunidenses e latino-americanos. Como nossa sociedade era – e é – de cunho preponderantemente machista, como nos mostra obras da envergadura de um “Casa Grande e senzala”, de Gilberto Freyre, ou “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda, fugir desse patriarcado requereu, da mulher, no caso do Brasil, uma flexibilidade redobrada. Apesar disso, o movimento de igualdade dos direitos, no caso das mulheres, parece um dos que mais prosperaram nos últimos tempos, que, por conseguinte, abriu precedentes importantíssimos para a conquista de direitos de outras populações secundárias.


Uma das formas de “permitir” que essas populações secundárias existissem sempre foram os chamados “guetos”. Já escrevi muitos artigos sobre essa posição de esmola que se dá às populações secundárias, o que um Victor Hugo chamaria de um “porão” ou um “sótão” na mansão da sociedade, quando trata de personagens célebres como Quasímodo, Esmeralda, Fantinne, Marius Pontmercy, Jean Valjean, Thénnardier etc.


O homossexual, por exemplo, tem, até, um certo direito de ir e vir, desde que sua presença, ou melhor, seu comportamento, não agrida a manutenção da norma social. Mais uma vez, vasculham-se miríades de supostas justificativas para a exclusão: diz-se que não é natural, que não é moral, que não é ético, que não é legítimo, que não é divino, que não é legalizado.


O único ponto ao qual quero me deter, por ora, é o último: dizer que a homossexualidade não pode ser aceita PORQUE não é legalizada.


Ora eu, como filólogo e gramático que sou, preciso me deter no conectivo PORQUE. Na verdade, trabalharei no âmbito do discurso, da retórica, porque a falácia aqui é óbvia: se quisermos dar a este PORQUE o estatuto de conectivo causal, é óbvio que a sentença precisará ser lida de trás para frente, para se tornar não apenas verossímil, como, sobretudo, verdadeira: a homossexualidade não pode ser legalizada PORQUE não pode ser aceita. E não vice-versa.

Trata-se, voltando ao início deste artigo, da noção de transcendência do status quo, por meio da ruptura, até, do pequeno narcisismo que nos limita a amar o outro DESDE QUE esse outro tenha características com as quais eu me identifico em maior ou menor grau, dependendo do grau de narcisismo de quem ama-aceita, que pode, inclusive, chegar a ser patológico, um “egoísmo”.


Amar alguém que é totalmente igual a mim é muito fácil. É a regra. É o normal, porque é o comum.

Mas a sociedade não é feita só de regras, só de “comuns”. Ela também é feita de alteridade pura, de individualidades, de aceitação-amor pelo que me é completamente diferente e, até mesmo, se for o caso, repulsivo.


A legalização do fato é apenas questão de tempo. Miguel Reale, em sua célebre e internacionalmente reconhecida teoria tridimensional do Direito, mostra-nos que há um trinômio composto por fato, valor e norma. Ou seja, o fato consolidado (expressão que parece ter tirado de Émile Durkheim) gera um valor no seio da sociedade, e isso se reflete numa norma (a lei).

O fato já existe. Homossexuais nunca deixaram de sê-lo, com ou sem lei, na obscuridade dos guetos ou na claridade dos parques.


O que está em jogo, pois, é a vertente do VALOR.


A aceitação, dessa maneira, é que precisa ser revista. Não se trata mais de aceitar-se a esmola dos “sótão” da mansão social. Trata-se, neste “Tempo”, neste “Enunciado”, de criar condições de visibilidade que propiciem manifestações concretas de respeito ao fato já de há muito consolidado. Disso, decorrerá a norma, a lei. Portanto, como eu disse acima: a homossexualidade não pode ser legalizada PORQUE não pode ser aceita; ou seja, assim que for aceita, a homossexualidade SERÁ legalizada.


Não se trata de o homossexual querer galgar ao mesmo poder que outrora o oprimiu, tese defendida (não em relação direta ao homossexual) por Deleuze e Guattari. Porque as condições de legalidade, numa sociedade justa e verdadeiramente democrática, são condições indispensáveis para a obtenção da felicidade. Uma pessoa não pode ser marginal à lei pelo fato de ser homossexual; o “Tempo” de hoje deixa isso muito explícito.


Tal ou qual religião terão, sempre, por seu conjunto de doutrinas, o direito de, por questões de foro íntimo, dogmático e doutrinário, repugnarem a certos grupos. É um direito que lhes assiste.


Mas é um direito que assiste ao homossexual – como ao negro, à mulher, ao estrangeiro, à criança, ao portador de necessidades físicas especiais etc. – receber do ordenamento jurídico bases para a sua felicidade e a sua “desmarginalização”, inclusive se esse ordenamento, por um princípio de proporcionalidade, precisar aparentemente dar privilégios legais aos grupos que, pelo simples fato de pertencerem a esses grupos, sofrerem violências sociais de todo tipo.


Momento chegará em que esses supostos privilégios se extinguirão, porque não haverá mais violência contra alguém PORQUE esse alguém é mulher, PORQUE é negro, PORQUE é estrangeiro, PORQUE é criança, PORQUE é portador de necessidades físicas especiais, PORQUE é homossexual (reparem que mais uma vez o PORQUE faz parte do X da questão, linguística, sociolinguística e antropológica).


Enquanto este momento não chega, a legalidade precisa cumprir uma tarefa dúplice: igualar os direitos de todos (indo ao fato social existente) e compensar os contumazes reacionários que se opõem a essa igualdade (indo ao valor). Em outros termos, trata-se de tratar os iguais de maneira igual, e aos desiguais de maneira desigual, na medida em que Se desigualam: o princípio da proporcionalidade.


Numa conversa que tive com Élisabeth Roudinesco, ela me disse que, em seu sonho, a sociedade ideal será aquela que conseguir unir liberdade a legalidade. Ainda segundo ela, algo com que eu concordo, nem sempre essa união é possível, pois muitas vezes a legalidade, em vez de promover a liberdade, cerceia-a. Creio, por meu turno, que seja pelo que esbocei há pouco: ocorre uma legalidade que cerceia a liberdade toda vez que um FATO existe sem que o VALOR justo lhe seja inferido.


Eu já disse muitas vezes, ecoando grandes pensadores, que o maior equívoco do mundo moderno é crer que a democracia é o regime exclusivamente das maiorias. As minorias e/ou grupos secundários têm voz e vocalidade no regime democrático, e seus direitos são tão substanciais quanto os de qualquer maioria.


O regime que só lida com maioria, com “norma”, não se chama democracia: chama-se ditadura, fascismo, nazismo.


Erradicar as minorias e igualar todo e qualquer grupo num único seja lá o que for – conceito, ideia, ideologia, religião, cor de pele – sempre tem sido o sonho dos portentosos ditadores que habitaram a Terra, de Hitler a Herodes.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Enfim, existimos!

Por Paulo Stekel (texto publicado originalmente em http://gayexpression.wordpress.com/2011/05/06/enfim-existimos)

Como alguém pode duvidar disso? Como alguém pode dizer que não existimos, que não temos direitos iguais e, contraditoriamente, atacar-nos com uma Bíblia na mão? Sim, existimos, e – com a permissão do velho lobo, Zagallo – vão ter que nos engolir!

Os dias 04 e 05 de maio de 2011 foram os mais importantes para a comunidade LGBT até aqui. Ao analisar duas ações, uma proposta pela Procuradoria-Geral da República e outra pelo governo do estado do Rio de Janeiro, em votação unânime (10X0), o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável homoafetiva, ou seja, entre casais do mesmo sexo como sendo uma entidade familiar.

A “entidade familiar”

Até agora, apenas três tipos de entidade familiar eram reconhecidas em juízo: o casal heterossexual no casamento civil, o casal heterossexual em união estável e a pessoa solteira (qualquer dos pais e seus descendentes). No primeiro caso, bastava o casamento civil entre um homem e uma mulher; no segundo, bastava a união estável (isto é, sem o casamento civil) entre um homem e uma mulher; no terceiro caso, bastava que um homem ou uma mulher fossem pais para pleitear direitos de família mesmo sem estarem casados ou sequer em união estável. O que o STF reconheceu em 05 de maio é que quando duas pessoas do mesmo sexo vivem em união estável, isso também é uma entidade familiar, com os mesmos direitos e deveres incidentes sobre a união estável entre heterossexuais. Isso criou um precedente que aos poucos será seguido pelas demais instâncias judiciais e também pela administração pública.

O número de pessoas que serão beneficiadas com esta conquista de mais cidadania ainda é indefinido, apesar do Censo Demográfico 2010 ter apontado que o Brasil tem mais de 60 mil casais homossexuais vivendo em união estável homoafetiva. Se considerarmos que muitos casais não manifestaram publicamente sua condição por vários motivos, esse número pode ser muito maior, na realidade. Mas, a decisão atual abre caminho para a aprovação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, que é direito garantido a casais em união estável no art. 226 da Constituição Federal: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

União estável não é casamento civil!

Acompanhei pela imprensa toda a votação no STF e a reação da comunidade LGBT pelas redes sociais, em especial o Twitter, por sua resposta rápida. O que percebi foi uma generalizada confusão entre união estável e casamento civil de parte da comunidade LGBT. Mas, consultando a lei, a diferença é clara! A união estável acontece sem quaisquer formalidades, naturalmente, a partir da convivência do casal que forma uma “família espontânea” (no entender do ministro do STF, Luiz Fux), isto é, sem a necessidade de aprovação de um juiz ou um sacerdote. Tanto é assim, que após uma separação, há que se comprovar a união estável para que esta gere direitos e obrigações a ambas as partes (direitos sobre filhos, pensão alimentícia, etc). Já o casamento civil é um contrato jurídico formal estabelecido entre duas pessoas, até o momento, de sexos opostos. Não é isso que o STF reconheceu para pessoas do mesmo sexo, e sim, a união estável, ao contrário da Argentina, que em julho de 2010 se tornou o primeiro país da América Latina a autorizar gays a se casarem e a adotarem filhos.

O que o STF decidiu foi simplesmente o reconhecimento da união estável gay como entidade familiar. Esse reconhecimento para a servir como recomendação em instâncias jurídicas para que casais gays passem a ter os mesmos direitos de heterossexuais em união estável, apesar da ressalva do ministro do Supremo, Ricardo Lewandowski: “Entendo que uniões de pessoas do mesmo sexo, que se projetam no tempo e ostentam a marca da publicidade, devem ser reconhecidas pelo direito, pois dos fatos nasce o direito. Creio que se está diante de outra unidade familiar distinta das que caracterizam uniões estáveis heterossexuais”. Neste caso, teríamos uma quarta entidade familiar: a formada pela união estável homoafetiva. Mas, se for assim, quando o casamento civil for aprovado, teremos uma quinta entidade familiar formada por duas pessoas em casamento civil homoafetivo? São respostas que serão dadas ao longo do tempo e conforme as decisões dos magistrados caso a caso, à medida que a comunidade LGBT for atrás de seus direitos.

Uma dúvida que percebi nas redes sociais é sobre como garantir o reconhecimento da união estável a partir da decisão do STF. Antes mesmo dela os casais homoafetivos já podiam registrar a união em cartório. Mas, até então, tratava-se de um contrato que definia há quanto tempo o casal estava em união estável, como seria a divisão de bens, etc. Ou seja, a relação era considerada um “regime de sociedade”, não uma entidade familiar. Então, não se previa “separação”, mas algo equivalente a uma “quebra de sociedade”. (Eu e meu companheiro assinamos este contrato em dezembro de 2007 e, recentemente, ele foi aceito pela Caixa Econômica Federal num financiamento para casa própria como parte da comprovação de renda conjunta.) Agora, a regulamentação virá com o tempo, mudando o status de “regime de sociedade entre duas pessoas do mesmo sexo” (regido pelo Código Civil) para “união estável homoafetiva” (regida pelo Direito de Família). Mas até que isso ocorra, os casais homoafetivos vão continuar tendo que recorrer à Justiça para obter seus direitos. O bom é que, a partir de agora, as decisões tenderão a ser mais rápidas, favoráveis e homogêneas.

Direitos que passam a ser garantidos

Mas, o maior interesse da comunidade LGBT está em saber quais direitos passam a ser garantidos ou, melhor, pleiteáveis em juízo, em casos de ação de reconhecimento de união estável que devem, a nosso ver, transcorrer de modo semelhante às ações do mesmo tipo entre casais heterossexuais. São centenas de direitos, alguns mais importantes, e que devem ser destacados.

Um deles é a declaração da união em regime de comunhão parcial de bens (o direito incide sobre o que se conquistou em conjunto após o início da união estável). Outro, é o direito a pensão alimentícia em caso de separação judicial, além de pensões do INSS que, aliás, já são concedidas para os companheiros gays de pessoas falecidas – a decisão do STF apenas dá mais respaldo jurídico. Os planos de saúde ou familiares não poderão se negar em aceitar, nem mesmo em juízo, parceiros gays como dependentes, apesar da maioria deles já possibilitar esta prática. A Receita Federal também já aceita que os homoafetivos declarem seus companheiros como dependentes. As políticas públicas deverão incluir os casais homoafetivos, e não de forma modesta, como ocorre.

Um dos direitos que consideramos mais importantes como consequência da decisão do STF é o de sucessão. Já vimos muitos casos de casais gays em que, ao morrer um dos companheiros, o outro ficou sem nada, pois os bens adquiridos em conjunto passaram à tutela da família do falecido. Isso deve mudar, felizmente.

Outro direito importantíssimo, mas que cabe entender bem, é o de adoção. A lei tem permitido a gays a adoção, mas sabemos que sempre se dá preferência a casais heterossexuais (tanto em casamento civil como união estável). Com a decisão do STF, reconhecendo a união estável homoafetiva como unidade familiar, as decisões favoráveis serão facilitadas em grande medida.

Enfim, a existência…

Existir é a primeira condição para ser visto. Sem existência, sem visibilidade. Falamos “existência” no sentido jurídico e social. Se a sociedade nega (moralmente falando) nossa existência, e a lei a acompanha, ficamos num vazio total. Não somos visíveis nem para a sociedade (o costume), nem para a lei, nem para a religião…

Mas, os tempos estão mudando. A sociedade já sabe de nós, nos vê e, em boa medida, nos apoia. A lei começou a ratificar-nos, finalmente. Mas, a religião, especialmente a ala fundamentalista cristã, esta é um jogo-duro… O catolicismo e o neopentecostalismo pregam um discurso confuso, hipócrita e contraditório de “amamos os gays mas não aceitamos suas práticas”. Não são práticas, são vivências! Prática tem menor implicação que vivência, pois esta última advém da essência do ser. E, o ser gay é algo intrinsecamente conectado à vontade natural do ser que assim nasceu. Há uma vida gay (pois se nasceu assim) muito mais que uma prática gay! Práticas homossexuais são comuns em instituições prisionais, mas não constituem, necessariamente, uma vida homossexual, salvo nos casos em que o sentir-se homossexual esteja intrinsecamente ligado à alma do ser. Mesmo porque, no caso das prisões, as práticas homossexuais se inserem muito mais na classificação do estupro (como forma de humilhação) ou da ausência de sexo oposto (diante dos imperativos fisiológicos) do que na orientação homossexual de fato, esta sim, baseada no sentir atração pelo mesmo sexo como algo constante e não transitório.
A lei reconheceu que existimos. Se existimos, somos tutelados pela lei do país em que vivemos e, neste caso, temos direitos e deveres, dos fundamentais aos últimos. E, os queremos todos! Só assim seremos cidadãos plenos e não cidadãos de segunda classe num país laico, como já escrevi em outro artigo. Se a religião não nos quer reconhecer como existindo e tendo direitos de cidadania, abdique de ter-nos como seus fiéis agindo segundo suas normas ultrapassadas e sufocantes do ser. Invocar regras deuteronômicas do Antigo Testamento para validar determinados preconceitos, esquecendo de aplicar outras, por simples conveniência, é de uma hipocrisia, má-intenção e manipulação tal que envergonha qualquer Deus por acaso existente… E, mesmo Deus sabe que existimos, pois, se nos criou como somos, não será Ele a negar-nos… antes, justifica-se através de nós e desvela aos olhos do mundo que seus auto-declarados porta-vozes não passam de vendilhões do Templo!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A União dos Iguais: Quando a Religião interfere no Direito Social

Por Paulo Stekel (artigo postado originalmente em http://gayexpression.wordpress.com/2010/11/18/a-uniao-dos-iguais-quando-a-religiao-interfere-no-direito-social/)

Nestas eleições vimos a formação de um perigoso triângulo (nada amoroso): políticos “vendilhões de votos” de um lado, evangélicos e católicos fundamentalistas de outro, e os gays em busca de seus direitos civis no topo. No centro da discussão, a união gay.


Quem gostaria de ver sua união com um companheiro ou companheira do mesmo sexo reconhecida em toda a sua expressão, tendo equiparados todos os direitos civis franqueados a uniões entre pessoas de sexos opostos? Creio que muitos casais homossexuais gostariam! Mas, há muita confusão neste assunto. Durante a campanha eleitoral de 2010 ficou claro que nem os políticos sabem exatamente a diferença entre união civil e casamento religioso, pois misturaram as estações na hora de manifestarem seu “desapoio” à união entre pessoas do mesmo sexo. O único que parecia ter certeza do que NÃO queria era o fundamentalista Malafaia… Os demais leiloavam a comunidade LGBT na insana busca por votos decisivos. Parece que a estratégia não deu certo, não assegurou nem os votos dos evangélicos, e ainda alertou a comunidade LGBT para o risco de ser tratada como massa de manobra, caso não reveja sua tendência a apoiar este ou aquele partido político por conta de promessas de apoio aos direitos civis dos gays. Na “hora H” se percebe que apoio político é moeda de troca: vale votos!

O casamento entre pessoas do mesmo sexo, casamento homossexual, Casamento Igualitário (na Argentina) ou casamento gay é uma instituição existente em certos países que une duas pessoas homossexuais. Nas nações democráticas (e laicas) há dois tipos distintos de casamento: o casamento civil (cujos direitos são assegurados pelo Estado) e o matrimônio religioso (variando em suas particularidades conforme a religião).
Apesar do Estado quase sempre aceitar a documentação expedida por instituições religiosas para estabelecer um casamento civil no registro civil, isso não quer dizer que o rito religioso chamado matrimônio equivalha ao casamento civil. Por que? Por causa de um motivo simples: o laicismo do Estado republicano e democrático. Portanto, equiparar o casamento civil homossexual ao heterossexual é algo que deve ser cobrado do Estado, não das religiões. Se elas permitirão que se celebrem casamentos religiosos em seus templos, isso é outro assunto, pois aí entramos na esfera religiosa. Por outro lado, não cabe às religiões impedir que o Estado reconheça os direitos civis dos gays, pois se trata de esfera laica.

União entre iguais não é algo novo

Apesar dos religiosos se escandalizarem com a ideia de casamento gay, não podemos esquecer que sociedades antigas já permitiram tal união. Na Era Clássica havia um tipo de união chamada Adelphopoiesis (do grego: adelphos, irmão; poie, feito, lit. “feito irmãos”).

Originalmente, era uma cerimônia realizada na sociedade greco-romana, para a união entre duas pessoas do mesmo sexo, em geral homens livres e de classe social semelhante (a mulher e os escravos tinham poucos direitos neste período, quase se confundindo). No período medieval, as Igrejas Romana e Ortodoxa Grega continuaram com esta cerimônia, mas a partir daí as fontes dizem que esse tipo de união equivalia apenas a um pacto de sangue entre amigos, não tendo conotação sexual. E, na era greco-romana? Sabemos que os Gregos viam a homossexualidade com certa naturalidade e isso influenciou muito os Romanos da Era Clássica! Na temível Esparta grega a união matrimonial entre os soldados era incentivada, pois se acreditava que, lutando juntos, seriam mais fortes contra o inimigo.

Mas, não temos só o exemplo greco-romano. Em diversas tribos da África são permitidas uniões entre iguais há séculos. Até dotes são pagos às famílias, e filhos podem ser gerados através de espécies de “parceiros de aluguel” (homens ou mulheres). Uniões entre homens foram documentadas em cinco tribos africanas, enquanto as uniões lésbicas foram registradas em mais de trinta tribos.
Na China da Dinastia Ming (1368-1644) o casamento entre iguais era permitido, mesmo entre mulheres, onde era chamado de Casamento das Orquídeas de Ouro. Entre homens havia o matrimônio Fujian, sendo o mais velho chamado de “grande irmão jurado”, e o mais jovem de “pequeno irmão jurado”. Após o Fujian, todos os custos do mais jovem seriam pagos pelo mais velho. Eles passavam a morar e a dormir juntos e mulheres (escravas) podiam ser compradas apenas para procriação.
Em certas tribos da América do Norte foram documentadas uniões homossexuais permitidas a pessoas chamadas de “dois-espíritos”, ou seja, que aparentavam alguma ambiguidade sexual.

A divergente visão religiosa

Atualmente, várias confissões religiosas têm discutido sobre a aceitação ou não da homossexualidade como algo natural e não doentio. Por conta disso, o debate sobre a celebração de casamentos religiosos entre pessoas do mesmo sexo é cada vez mais acirrado.

No mundo cristão a divisão é clara – há quem aceita e há quem prefere matar gays do que aceitar. Quem aceita, se baseia na máxima evangélica do “Ama ao próximo como a ti mesmo” (seja ele pecador ou não), já que “Deus é amor”. Quem não aceita, se baseia na lei deuteronômica que manda matar quem se deita com alguém do mesmo sexo, pois Moisés diz que Jeová é um “Deus irado”, vingativo. (Eu sei que ler essas duas versões na mesma Bíblia é de deixar qualquer fiel confuso!)

No mundo islâmico praticamente não há divisão – a solução encontrada ali é enforcar e fuzilar gays, como quer o ditador iraniano (aspirante a Hitler do século XXI) Ahmadinejad e a sharia (a lei islâmica) que ele defende. A lei islâmica é tão irreal que, no Irã com o qual o governo brasileiro tem flertado nos últimos anos, até crianças foram enforcadas sob acusação de serem gays simplesmente por usarem calções curtos demais! Sério! Contudo, ao se discordar da aplicação da sharia, não se está necessariamente atacando o Alcorão, pois ela é baseada mais nos costumes locais (os Al-Urf) do que no livro sagrado do Islã. Tanto isso é verdade que ela não é aplicada em todas as nações islâmicas. Indonésia, Bangladesh e Paquistão, por exemplo, possuem leis e constituições majoritariamente seculares, o que impede a aplicação de penas bárbaras como as que vemos no Irã, Afeganistão e Sudão. E, atualmente, vários movimentos islâmicos contestam a aplicação da sharia. As fontes da sharia são, além do Alcorão, a suna (obra que narra a vida e os caminhos de Maomé), os ahadith (as narrações de Maomé) e a ijma (o consenso da comunidade). Nos casos não previstos nas fontes sagradas citadas, os estudiosos da lei e da religião se valeram da Qiyas, raciocínio por analogia, algo que pode levar a alguns sofismas mais perigosos que o “sentido acomodatício” da Teologia cristã (aquele que consiste em dar às palavras da Bíblia um sentido diferente daquele que o autor pretendia, e que é o mais usado na liturgia e na pregação).

Algumas igrejas cristãs dos EUA, Canadá, Suécia, e até do Brasil abençoam uniões homossexuais: Metropolitan Community Church e Associação Unitária Universalista (EUA); United Church of Canada (Canadá); Igreja da Comunidade Metropolitana, Igreja Para Todos, Igreja Cristã Contemporânea e Comunidade Cristã Nova Esperança (Brasil).

No Budismo não há um “casamento” como o cristão. O que há é uma bênção do casal, dada por um sacerdote, desejando todos os benefícios para os que se unem de comum acordo. É apenas um reforço dos compromissos ou votos tomados individualmente por ambos e agora unidos pela decisão de partilharem uma vida. A separação, caso ocorra, também é um ato voluntário do casal e não requer permissão do sacerdote budista. Não há “pecado” na separação, nem numa nova união. A base moral do Budismo nestas questões está no benefício e no evitar o sofrimento. Assim, a princípio, não há qualquer impedimento de uma bênção budista para um casal gay. Muitos casais budistas gays já foram abençoados por lamas e gurus budistas em todo o mundo.

No Brasil, já tive notícias de tais bênçãos budistas a casais gays, mas isso acaba ficando reservado aos noivos e aos convidados. Rsrs. Sério! Com receio da reação cristã (que não possui qualquer gerência sobre as práticas budistas!), vários sacerdotes do Budismo Tibetano no Ocidente abençoam seus discípulos gays sem permitir que estes noticiem o que seria o evento mais feliz de suas vidas ao grande público. Contraditório? Talvez. Mas, compreensível num mundo tão preconceituoso… Eu mesmo fiquei sabendo que em certo centro budista tibetano no sul do Brasil há um séquito de lésbicas em volta da lama orientadora e que muitas delas se “casaram” ou, melhor dizendo, receberam a bênção da união por um sacerdote budista, mas foram orientadas a manter isso sob reserva, para evitar a fúria dos evangélicos da cidade onde o centro budista está instalado. Casais masculinos também receberam ali a mesma recomendação após a bênção… Os Malafaias daquela região querem de qualquer modo fechar as portas do templo budista que eles consideram a “sucursal de Satanás” na serra gaúcha! Pasmem!!! (Quase não resisto à tentação de lhes devolver a ofensa revelando-lhes onde fica a matriz!)

União civil X Casamento religioso

Desde o final década de 1990 iniciaram em vários países tentativas de legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em 2001, a Holanda foi o primeiro país a legalizar a união gay. Seguiram depois o mesmo rumo Bélgica, Canadá, África do Sul, Espanha, Noruega, Suécia, Portugal, Islândia, Argentina e dois estados norte-americanos (Massachusetts e Connecticut). Israel reconhece os casamentos gays realizados em outros países, apesar de ainda não os ter legalizado em seu próprio território.

E, no Brasil, o que temos? No máximo o registro civil, a “declaração de união homoafetiva”, um registro em cartório aprovado em várias estados, sem status de casamento civil, que serve para que casais gays possam comprovar dependência econômica e pleitear seus direitos na Previdência Social, entidades públicas e privadas, companhias de seguro, bancos, etc. Este registro permite que sua união seja reconhecida como uma entidade familiar. As decisões judiciais estaduais que permitiram a criação deste registro se basearam nos princípios constitucionais do respeito à dignidade humana e da igualdade de todos perante a lei. Mas, este registro ainda não é a união civil gay, não é um casamento com todos os direitos que este prevê.

A propósito, a confusão entre casamento gay (o religioso), união civil gay e união estável homoafetiva é muito comum, mesmo entre pessoas esclarecidas e que deveriam saber a diferença! Entre estas estão os três principais candidatos à presidência em 2010 que manifestaram a mesma ignorância do assunto.

Quando Marina Silva disse que “é preciso separar as duas coisas (união civil e casamento) porque acredita que o casamento seja “um sacramento”, Dilma Roussef disse que “a questão do casamento é religiosa” e José Serra disse que “a nomeação da união como ‘casamento’ depende de convicções religiosas”, o que todos queriam dizer? Que não sabem sequer etimologia?

A palavra “casamento” vem de “casa”, onde vive o “casal”. Não importa se são de sexos opostos ou não. O fato da palavra ser derivada do latim medieval casamentu, o ato solene de união entre duas pessoas de sexo diferente, não significa que o termo não possa ser aplicado no caso da união dos sexos iguais, já que evidencia a “casa”. No antigo patriarcado, os pais “casavam” os filhos, ou seja, os investiam com uma casa, parte de seus bens e propriedades, para que o casal pudesse sustentar a nova família. Nenhuma referência etimológica a casais de sexo diferente, portanto. Talvez a palavra “matrimônio” pudesse ser interdita etimologicamente neste caso por envolver a noção da “mãe” como tendo a prerrogativa de um lar legal: “matri-monium”, do latim “mater” (mãe) e “monium” (função, cargo), ou seja, o direito adquirido pela mulher que o contrai de ser mãe dentro da legalidade.

Contudo, parece que os três candidatos não fizeram a lição de casa ou faltaram à aula no dia em que se ensinou que o casamento é uma união civil e, assim, se diferencia da união estável, constituindo ambas as modalidades os dois regimes jurídicos criados para reconhecer uma família no Brasil. Ademais, casamento não é uma “questão religiosa”, pois a Constituição Federal (artigo 226) diz com todas as letras que o casamento “é civil e gratuita a celebração”, além de assegurar que “o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei”. O contrário não ocorre no Brasil porque o Estado é laico! E, os “termos da lei” de um Estado laico significa que o casamento, mesmo tendo sido realizado numa cerimônia de qualquer religião, deve ser registrado em cartório para ter seus efeitos civis plenos.
A união estável, também aceita como entidade familiar, tem contudo, algumas diferenças quando comparada ao casamento, sendo preferível aos casais gays pleitearem a aprovação do último. Por que? Porque na união estável (incluindo a entre heterossexuais) ambos os indivíduos continuam sendo solteiros, não podem utilizar o sobrenome um do outro e não têm direito incontestável à partilha de herança no caso de morte de um deles. Então, o que é preferível? O casamento, que é civil, não depende de “convicções religiosas”, assegura direitos sociais equiparados e não traz em sua etimologia qualquer conotação de gênero! Deixemos os fundamentalistas religiosos à procura da matriz de Satanás… Mas, temos certeza de que ela não está numa parada gay ou num templo que celebre casamentos entre iguais…