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sexta-feira, 5 de junho de 2015

Como o Budismo abraça toda forma de amor

Por Rev. Jean Tetsuji



Esta semana a comunidade LGBT faz mais uma vez validar seu pedido de respeito e compreensão junto à sociedade por meio da famosa Parada gay. O tema deste ano, "eu nasci assim, eu cresci assim" posiciona uma nova maneira de mostrar que a diversidade de identidade sexual é real, legítima e sobretudo humana. E vai de encontro a uma breve reflexão que gostaria de fazer.

O budismo não se preocupa com relação a este assunto, ele não é um dogma moral muito menos punitivo aos olhos de um ser superior. Na verdade, tanto faz você ser gay ou hétero, pois não é a sua condição, ao que se convencionou de moral, que o leva ao nascimento a Terra Pura e ao Nirvana. A propósito, esta ação de ir nascer na Terra Pura no budismo Shin é proporcionada pelo Voto do Buda e não pela pessoa com seu esforço próprio. Não esqueçamos ainda que esse conceito moral é uma criação abrahâmica da sociedade ocidental e vivamente incutida na mente coletiva, mesmo de quem não é praticante religioso.

O desejo sexual, assim como outros instintos ou comportamentos, estão baseados fundamentalmente nos cinco agregados, os chamados skandhas: forma, sensações, percepções, formações mentais e consciência . Eles são, como tudo no universo, impermanentes, interdependentes e efêmeros. E não são eles o sofrimento em si, mas o apego que damos a eles. Em suma, nos apegarmos a ideia do desejo ou não é que gera o sofrimento, não o fato em si. A compreensão sobre esses cinco agregados nos permite uma visão melhor da própria existência humana. Todas as sexualidades, homo ou hétero levam à inquietude, à insatisfação constante da mente e por consequência ao sofrimento pela angústia e aflição do eterno desejo insaciável. Logo, o desejo gay é tão doloroso quanto o desejo hétero. E a liberação do sofrimento é o alvo maior dos ensinamentos budistas. Poderíamos ficar horas falando sobre os Cinco agregados. Reproduzo aqui uma passagem interessante.

No Sutra Girando a Roda, o Buda diz: "Quando nos apegamos aos Cinco Agregados, eles produzem sofrimento". Ele não disse que os agregados são, por si mesmos, o sofrimento. Há uma imagem no SutraRatnakuta que nos pode ser útil. Um homem joga um bolo de terra para um cachorro. O cachorro olha para o bolo de terra e late furiosamente, porque não entende que é o homem, e não o bolo de terra, o responsável por sua frustração. O sutra continua: "Da mesma maneira, uma pessoa comum, presa a conceitos dualistas, pensa que os Cinco Agregados são a causa de seu sofrimento, enquanto na verdade a raiz do sofrimento está na falta de compreensão da natureza impermanente, sem existência separada, e interdependente dos Cinco Agregados. Não são os Cinco Agregados que nos fazem sofrer, mas a forma como nos relacionamos com eles. Ao observarmos a natureza impermanente, interdependente e sem existência própria de tudo o que existe, não sentimos aversão pela vida, mas, ao contrário, constatamos como a vida é preciosa".  (retirado do site Acesso ao insight, trecho do livro A essência dos ensinamentos de Buda – Thich Nhat Hahn)

Ainda ressalto que, para o budismo, não há o conceito de pecado nem culpa julgada por um ser divino, criador, superior ou demiurgo como o conceito de Deus. Logo, para budistas (gays), a vida se torna mais leve em entender e viver sua identidade sexual. O mesmo acontece com espíritas e anglicanos e algumas vertentes que, em paralelo às escrituras tradicionais, procuram interpretar seus ensinamentos de forma mais atual e holística.

O desejo pelo mesmo sexo não é algo previsível, assim como ser canhoto ou gostar mais de doce ou salgado. Esses conflitos são produto de uma mente discriminativa do próprio ego e de uma cultura imposta como verdade absoluta. Muito menos o sexo é visto como perpetuação da espécie humana para um projeto divino. É preciso ainda lembrar que somos um grande fluxo cármico de várias gerações e variedades, onde a Vida nos é concedida, em meio à causas e condições. Sempre brinco se alguém aqui pediu para nascer, rsrs, acho que não né?

Em nossas formações fisicas e mentais, eu vejo a sexualidade antes de tudo como uma identidade do desejo inato, não de uma influência de criação sócio-familiar, senão não haveriam individuos gays pois seus pais são héteros, nem uma opção pois a vida não é uma autoprogramação, e muito menos escolha, pois não há desejo pelo oposto como alternativa, salvo aqui os bissexuais. O desejo homoafetivo assim vem junto ao nascimento, aos que assim vieram, cedo ou tarde desvela seu instinto (o jargão "sair do armário"), mas pela força da sociedade que vivemos temos uma tendência a nos subjugar pela moral ditada pelos dogmas de culturas religiosas impostas e assim nos sentirmos culpados, confusos e castigados.

Nesse ponto, algo importante a se revelar: a crença e os dogmas de uma deteminada religião só tem validade se você nela crer, caso contrário, nenhum julgamento pode ser intimidador. Os dogmas e crenças são relativos, a verdade budista não é válida para judeus, nem a cristã para os muçulmanos, e nem preciso discorrer mais sobre o ponto visto os séculos de guerras. Portanto, a comunidade LGBT se faz posicionar no conceito de sociedade laica e assim respeitar sua presença junto à ela.

Logo, no budismo, o Buda o abraça em sua Luz e Sabedoria e o recebe em sua Terra Pura do jeito que é, por razões que brevemente discorri sobre os Agregados. Em breve analogia, é o que outras vertentes como anglicanos ou espíritas preconizam, aceitando a comunidade homoafetiva em suas sedes e os compreendendo como filhos de Deus. E, apenas para finalizar, as pessoas se preocupam tanto com o ato sexual em si, perpetuação da família (que aliás esse é outro assunto para mais tarde), plano divino, mas esquecem o mais profundo e fundamental, o Amor pelo outro expresso entre si no mais puro e belo afeto. E isso é absolutamente indiscutível, legítimo e relevante diante de qualquer religião.


Sobre o autor


Rev. Jean Tetsuji começou sua trajetória pela espiritualidade com a Igreja Messiânica, na qual chegou a ser pré-seminarista. Aos 30 anos começou a se interessar pelo Budismo. A questão de Criador e criatura sempre lhe foi alvo de inquietude, sobretudo com relação a culpa, pecado e sexualidade. Em 2002, começou a frequentar a Escola Terra Pura. Mudou-se para Maceió em 2005, onde firmou mais seus estudos, iniciando um pequeno grupo de estudos junto ao Rev. Wagner Bronzeri. Decidiu-se, então, a propagar o Dharma no sentido formal do Sangha. Foi ordenado em maio de 2013, no templo matriz (Honzan) em Kyoto, Japão, em uma cerimônia belíssima e solene junto a tantos outros com objetivo de propagar o Dharma, os ensinamentos do Mestre Shinran e do Buda Shakyamuni.
 
 


terça-feira, 7 de maio de 2013

“Ama o teu próximo como a ti mesmo”: a alteridade e os desafios para o século XXI


Por Luciano Freitas Filho


Desde o começo do mundo que o homem sonha com a paz. Ela está dentro dele mesmo. Ele tem a paz e não sabe. É só fechar os olhos e olhar pra dentro de si mesmo.
Todos estão surdos, Roberto Carlos.


Sejamos cristãos ou não, amar o próximo como a nós mesmos é o maior desafio que os sujeitos do século XXI podem promover a eles mesmos e ao mundo ao redor. A palavra-chave para a qualidade de vida e melhoria das relações humanas nos tempos atuais não é a tecnologia, nem o desenvolvimento econômico, mas sim a alteridade. Novas tecnologias e desenvolvimento econômico são essenciais, contudo são objetos, eles não são os sujeitos e nem os únicos meios para o bem-estar e a qualidade de vida. Não confundamos sujeitos com objetos.

Atualmente, no Brasil, estamos lidando com situações que para quem vê de fora acredita que o tão anunciado “fim dos tempos” já chegou. Para nós, que estamos do lado de dentro, há certa entorpecência, uma banalização de fatos que nos fazem dar passos largos para trás na história.

O que está acontecendo com o país quando as ideologias fundamentalistas religiosas impõem aos homossexuais e sua homossexualidade o véu de doença, patologia, ofertando “fraternalmente” a cura?   Ou quando os mesmos, através de suas bancadas parlamentares, fomentam e defendem a internação compulsória de usuários de Crack e outras drogas?

Afirmar-se fraterno, amar o próximo como Jesus ensinou, não implica amar o outro como queremos que ele seja ao nosso bel prazer ou ideologia. Amar o outro significa amá-lo como ele/ela é, na sua essência, sem apontar para sua sexualidade o cunho de sujeira ou doença. Amar o outro impondo a ele/ela o modo para ser um sujeito amado e/ou amável, é egoísmo, é violento e, sobretudo, não é amar.
         
Quando se evangeliza em nome do Sagrado para ofender e discriminar o outro, implica na interpretação avessa do que a Palavra significa(ou). Outro aspecto que salientamos é o fato de que, quando nos utilizamos da condição de parlamentares eleitos para discriminar uma parcela da população, ferimos a Constituição que rege o país. Existem tantas temáticas emergenciais a serem discutidas e sanadas pelos parlamentares, tais como violência urbana, fome, miséria e pobreza, exploração infantil e etc., por que, então, não há um coro “Gospel” para esses assuntos nos palanques legislativos?  Qual o objetivo de centrar atenção na discussão do que os LGBT fazem ou deixam de fazer com os seus corpos?

O que falta para muitos é o exercício da alteridade. O princípio da alteridade é ser fraterno reconhecendo em si o outro e a sua diferença, respeitando-a. Eis na alteridade a chave para um equilíbrio e harmonia entre as pessoas, uma qualidade de vida global. Uma prática real de amor com/para Cristo.


Sobre o autor


Luciano Freitas Filho é Secretário Nacional LGBT do PSB.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O direito de amar


Por Daniel Lélis (publicado originalmente na Revista Jfashion Chic E Essencial)


Não faz muito tempo, tocar violão era tido como coisa de vagabundo, malandro, irresponsável. Atrizes eram tidas como prostitutas. As mulheres viviam sob o julgo masculino. Tidas como menos inteligentes, nem mesmo podiam votar. Casamentos eram arranjados e o sexo, vejam só, era somente para procriação. Houve uma época em que negros eram vistos como coisas; animais a serem domesticados; seres sem alma, cuja única finalidade para existir era servir os brancos. Século XXI. Ainda hoje homossexuais são vistos por muitos como anormais, libertinos, pecadores. Em nome da literalidade de um livro escrito há mais de dois milênios, julga-se e condena-se a pessoa que ama outro do mesmo sexo. Amar. É por este direito que lutam milhões de pessoas. É contra este direito que batalham tantas outras.

Na atualidade, se eu depreciar alguém por causa da cor da pele, posso ser preso por racismo. Chamar o outro de “negrinho fedido”, “macaco queimado” é crime, definido em lei como imprescritível e inafiançável. Contudo, se eu chamo um gay de “pecador nojento”, “promíscuo sujo”, “viadinho”, “mulherzinha”, em vez de ser punido, posso ser coroado por defender os bons costumes e a moralidade. Crimes de ódio contra homossexuais não são punidos como tal, uma vez que não há respaldo legal para tanto. Fanáticos religiosos, a maioria evangélicos, não aceitam a ideia de não poderem exclamar, incitar, propagar o ódio aos quatro cantos. A lei que pretende tornar crime a violência homofóbica, tipificando-a como aconteceu com o racismo, encontra resistência de parlamentares fundamentalistas, que não aceitam a ideia, puramente humana e generosa, de que se deve aceitar e respeitar o próximo do jeito que ele é.

Acham os conservadores que a liberdade de expressão é um valor absoluto, capaz de absolvê-los das barbaridades ditas em suas congregações. Usam como escudo a liberdade religiosa, a quem chamam de sagrada e inquestionável. Ignoram o fato de que a pregação feita por líderes religiosos contra gays reforça o preconceito e abençoa a prática discriminatória. Fecham os olhos para a realidade de milhares de homossexuais, que são violentados todos os dias somente por serem homossexuais. Negam-se a perceber que muitas vidas são ceifadas por conta do discurso anti-gay. Que liberdade é essa que dá legitimidade a atos covardes, cruéis, desumanos, contra quem, sabe-se lá porque, ama o igual? Que liberdade é essa que dá razão para o agressor e que faz da vítima o culpado?

Lembro-me do dia em que um colega confessou algo que me marcou profundamente. Ele disse que tinha relevado ao seu “melhor” amigo que era homossexual. Sua esperança era de encontrar alguém com quem pudesse contar num momento difícil de descobertas. A resposta não poderia ser pior. O “melhor” amigo disse: “nunca mais chegue perto de mim, ou eu prometo que vou te queimar vivo”. Na hora que ele me contou, fiquei sem palavras, e me perguntei em silêncio: “até quando?”. É o que pergunto agora a você, querido leitor: até quando usarão o nome de deus para justificar a própria hipocrisia? Até quando o amor será motivo de deboche, de chacota? Finalmente, até quando amar será pecado?


Sobre o autor


Daniel Lélis tem 23 anos, mora em Araguaína (TO), é Bacharel em Direito, comunicador e escritor.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Direito e amor




















Por Marcelo Moraes Caetano
"Nós somos o que fazemos repetidas vezes. Portanto, a excelência não é um ato, mas um hábito."

(Aristóteles)

Erich Fromm defende, ao longo de sua obra, que o amor é o elemento que norteia a saúde mental. Para ele, a sociedade exerce, inclusive legitimamente, influências sobre o psiquismo (usarei termos que não necessariamente eram usados pelo estudioso aqui evocado). Assim, num resumo despretensioso de parte de sua obra, pode-se entrever que o indivíduo é fruto e efeito, sim, da sociedade em que vive, mas que, diferentemente das correntes majoritárias daquele tempo (idos da década de 40 e 50 do século XX), a sociedade não é capaz de, por si só, determinar os padrões de realização do ser.


Para ele, por fim, a identificação por meio do amor passa, portanto, pela esfera social, pela alteridade, isto é, pela presença do outro em minha vida. No entanto, uma espécie de narcisismo resquicial seria meu verdadeiro parâmetro para julgar a integralização da felicidade no outro. Em termos diferentes, seria por meus próprios sentimentos de prazer e desprazer que eu julgaria, no outro, a realização de prazeres ou desprazeres.


Decorre daí que o ser humano, em suma, precisa de alguma potência maior que ele próprio, o que seria a sua própria transcendência. Essa transcendência pode ser alcançada, como se viu, no amor ao outro, numa alteridade com a lente do narcisismo, ou numa entrega a grupos de poder, religiões, Deus.


Muitos outros pensadores executaram a meritória labuta de conciliar as ideias de Freud às ideias sociológicas. Assim foi que Marcuse, por exemplo, uniu o freudismo ao marxismo, criando, entre outros, seu “Eros e civilização”. Fromm, por seu turno, preocupou-se muito com as questões do trabalho e da sociedade, e, assim como Marcuse, via no amor – em Eros – uma fonte ou um guia da aludida saúde psíquica.


Quero com isso dizer que o ser humano estará, sempre, inserido numa sociedade. Isso é premissa maior. As teorias que observam este ser humano sob o pano de fundo de tal ou qual sociedade são muito variadas – deterministas, positivistas, psicanalíticas, antropológicas etc.


Porém, de alguma forma, a maior parte delas, mesmo as mais estritamente relativistas e ortodoxas, como a de Taine, de Comte ou de Durkheim, preveem, mais ou menos parcimoniosamente, a possibilidade de o ser humano vencer os interditos e os tabus eleitos por dado “Tempo” para criarem “Enunciados” capazes de libertá-los desses interditos e tabus, que, muitas vezes, tornam-se datados, obsoletos, anacrônicos.


A adesão ou irrupção, por exemplo, são modos de se ascender ao status quo opressor. A transcendência, voltando a Fromm, pode ser, por sua vez, atingida, grosso modo, por criatividade ou por destruição. Deleuze, em seu “O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia”, lança a famosa questão: que sedução é essa, que nos impele a queremos aderir ao mesmo poder que outrora nos oprimiu?


Pois a sociedade, com seu construto necessariamente heterônomo, coercitivo, estabelece, por razões que não cabem neste artigo, vários interditos, vários tabus, várias proibições que, num ou noutro momento, tacha de naturais, morais, éticos, legalistas, legítimos e, até, divinos...


Não é à toa que Weber, por exemplo, cria relações estreitas entre o capitalismo e a ética da religião protestante. Não é à toa que Jung tenha querido conhecer as religiões dos povos ditos não-civilizados a fim de encontrar, neles, uma possível sistematização “arquetípica”, como ele próprio chamou, aplicáveis, até, nas civilizações industriais/mercantilistas.


Porque muitos são os fatores que pretendem legitimar, ao longo dos tempos, as exclusões de tal ou qual grupo, de tal ou qual indivíduo. É bom deixar claro que o “normal”, em todas as sociedades, corresponde àquilo que prvém da norma, ou seja, do que é mais comum ocorrer. No entanto, nem todas as sociedades desconhecem que o que não é mais comum seja, só por isso, desagradável, nocivo, deletério ao funcionamento regular e saudável daquela sociedade.


Para ficarmos no ocidente, e sem pretendermos ir muito a fundo, podemos dizer que foram (ou são) interditos de ordem sociocultural a “secundarização” da mulher (para fazer uma apropriação do título do livro de Simone de Beauvoir: “O segundo sexo”), o temor ao estrangeiro (sobretudo com o avanço do neoliberalismo, em que o estrangeiro é uma potencial ameaça à sobrevivência do nativo), o estranhamento a etnias, religiões e orientações sexuais diferentes da “normal” (a mais comum, como vimos) numa dada sociedade ou grupo.


Foi dessa forma que os avanços obtidos pelas chamadas populações secundárias, nas palavras de Sartre e Beauvoir, ocorreram gradativamente.


A abolição da escravatura, no Brasil, por exemplo, ocorreu, como se sabe, por questões de interesse da Inglaterra, cujo capitalismo florescente via no contingente de escravos, NÃO-CONSUMIDORES, um entrave a seus interesses. Os britânicos intervieram, até mesmo, na soberania nacional brasileira, colocando-se no patamar de juízes de navios que quisessem traficar negros para o Brasil. Criou-se, por aqui, a chamada lei “para inglês ver”, que fazia vistas grossas à proibição do trono do Reino Unido. Mais uma vez, vemos o interesse social (e, ora, evidentemente econômico) por trás da conquista de direitos humanos tão básicos.


O caso das mulheres, ainda para ficarmos nas searas brasileiras, pareceu ser um eco dos movimentos libertários franceses, estadunidenses e latino-americanos. Como nossa sociedade era – e é – de cunho preponderantemente machista, como nos mostra obras da envergadura de um “Casa Grande e senzala”, de Gilberto Freyre, ou “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda, fugir desse patriarcado requereu, da mulher, no caso do Brasil, uma flexibilidade redobrada. Apesar disso, o movimento de igualdade dos direitos, no caso das mulheres, parece um dos que mais prosperaram nos últimos tempos, que, por conseguinte, abriu precedentes importantíssimos para a conquista de direitos de outras populações secundárias.


Uma das formas de “permitir” que essas populações secundárias existissem sempre foram os chamados “guetos”. Já escrevi muitos artigos sobre essa posição de esmola que se dá às populações secundárias, o que um Victor Hugo chamaria de um “porão” ou um “sótão” na mansão da sociedade, quando trata de personagens célebres como Quasímodo, Esmeralda, Fantinne, Marius Pontmercy, Jean Valjean, Thénnardier etc.


O homossexual, por exemplo, tem, até, um certo direito de ir e vir, desde que sua presença, ou melhor, seu comportamento, não agrida a manutenção da norma social. Mais uma vez, vasculham-se miríades de supostas justificativas para a exclusão: diz-se que não é natural, que não é moral, que não é ético, que não é legítimo, que não é divino, que não é legalizado.


O único ponto ao qual quero me deter, por ora, é o último: dizer que a homossexualidade não pode ser aceita PORQUE não é legalizada.


Ora eu, como filólogo e gramático que sou, preciso me deter no conectivo PORQUE. Na verdade, trabalharei no âmbito do discurso, da retórica, porque a falácia aqui é óbvia: se quisermos dar a este PORQUE o estatuto de conectivo causal, é óbvio que a sentença precisará ser lida de trás para frente, para se tornar não apenas verossímil, como, sobretudo, verdadeira: a homossexualidade não pode ser legalizada PORQUE não pode ser aceita. E não vice-versa.

Trata-se, voltando ao início deste artigo, da noção de transcendência do status quo, por meio da ruptura, até, do pequeno narcisismo que nos limita a amar o outro DESDE QUE esse outro tenha características com as quais eu me identifico em maior ou menor grau, dependendo do grau de narcisismo de quem ama-aceita, que pode, inclusive, chegar a ser patológico, um “egoísmo”.


Amar alguém que é totalmente igual a mim é muito fácil. É a regra. É o normal, porque é o comum.

Mas a sociedade não é feita só de regras, só de “comuns”. Ela também é feita de alteridade pura, de individualidades, de aceitação-amor pelo que me é completamente diferente e, até mesmo, se for o caso, repulsivo.


A legalização do fato é apenas questão de tempo. Miguel Reale, em sua célebre e internacionalmente reconhecida teoria tridimensional do Direito, mostra-nos que há um trinômio composto por fato, valor e norma. Ou seja, o fato consolidado (expressão que parece ter tirado de Émile Durkheim) gera um valor no seio da sociedade, e isso se reflete numa norma (a lei).

O fato já existe. Homossexuais nunca deixaram de sê-lo, com ou sem lei, na obscuridade dos guetos ou na claridade dos parques.


O que está em jogo, pois, é a vertente do VALOR.


A aceitação, dessa maneira, é que precisa ser revista. Não se trata mais de aceitar-se a esmola dos “sótão” da mansão social. Trata-se, neste “Tempo”, neste “Enunciado”, de criar condições de visibilidade que propiciem manifestações concretas de respeito ao fato já de há muito consolidado. Disso, decorrerá a norma, a lei. Portanto, como eu disse acima: a homossexualidade não pode ser legalizada PORQUE não pode ser aceita; ou seja, assim que for aceita, a homossexualidade SERÁ legalizada.


Não se trata de o homossexual querer galgar ao mesmo poder que outrora o oprimiu, tese defendida (não em relação direta ao homossexual) por Deleuze e Guattari. Porque as condições de legalidade, numa sociedade justa e verdadeiramente democrática, são condições indispensáveis para a obtenção da felicidade. Uma pessoa não pode ser marginal à lei pelo fato de ser homossexual; o “Tempo” de hoje deixa isso muito explícito.


Tal ou qual religião terão, sempre, por seu conjunto de doutrinas, o direito de, por questões de foro íntimo, dogmático e doutrinário, repugnarem a certos grupos. É um direito que lhes assiste.


Mas é um direito que assiste ao homossexual – como ao negro, à mulher, ao estrangeiro, à criança, ao portador de necessidades físicas especiais etc. – receber do ordenamento jurídico bases para a sua felicidade e a sua “desmarginalização”, inclusive se esse ordenamento, por um princípio de proporcionalidade, precisar aparentemente dar privilégios legais aos grupos que, pelo simples fato de pertencerem a esses grupos, sofrerem violências sociais de todo tipo.


Momento chegará em que esses supostos privilégios se extinguirão, porque não haverá mais violência contra alguém PORQUE esse alguém é mulher, PORQUE é negro, PORQUE é estrangeiro, PORQUE é criança, PORQUE é portador de necessidades físicas especiais, PORQUE é homossexual (reparem que mais uma vez o PORQUE faz parte do X da questão, linguística, sociolinguística e antropológica).


Enquanto este momento não chega, a legalidade precisa cumprir uma tarefa dúplice: igualar os direitos de todos (indo ao fato social existente) e compensar os contumazes reacionários que se opõem a essa igualdade (indo ao valor). Em outros termos, trata-se de tratar os iguais de maneira igual, e aos desiguais de maneira desigual, na medida em que Se desigualam: o princípio da proporcionalidade.


Numa conversa que tive com Élisabeth Roudinesco, ela me disse que, em seu sonho, a sociedade ideal será aquela que conseguir unir liberdade a legalidade. Ainda segundo ela, algo com que eu concordo, nem sempre essa união é possível, pois muitas vezes a legalidade, em vez de promover a liberdade, cerceia-a. Creio, por meu turno, que seja pelo que esbocei há pouco: ocorre uma legalidade que cerceia a liberdade toda vez que um FATO existe sem que o VALOR justo lhe seja inferido.


Eu já disse muitas vezes, ecoando grandes pensadores, que o maior equívoco do mundo moderno é crer que a democracia é o regime exclusivamente das maiorias. As minorias e/ou grupos secundários têm voz e vocalidade no regime democrático, e seus direitos são tão substanciais quanto os de qualquer maioria.


O regime que só lida com maioria, com “norma”, não se chama democracia: chama-se ditadura, fascismo, nazismo.


Erradicar as minorias e igualar todo e qualquer grupo num único seja lá o que for – conceito, ideia, ideologia, religião, cor de pele – sempre tem sido o sonho dos portentosos ditadores que habitaram a Terra, de Hitler a Herodes.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Afeto - uma reflexão de Ari Teperman

Por Ari Teperman


Durante muitos anos me preocupei com os julgamentos e críticas dos outros. Tentando ser aceito, condicionava minhas emoções ou simplesmente as reprimia. Fazia o que os outros queriam e, apesar do meu esforço em ser bem educado, alguém sempre se mostrava insatisfeito... Percebi o quanto era inútil estar desconectado de mim mesmo.

Desse momento em diante, atrevo-me a ser como sou. Busco o amor, o humor, a coerência e a liberdade das minhas emoções.

Fui percebendo que o que eu mais reprimia era na verdade o bem mais valioso para minha vida: o AMOR. Tornei-me convicto da minha busca em ser apenas humano: o tocar, o comunicar, o afetar e o expressar apenas a minha natureza singular. Um ser apaixonado pela vida!

Liberto dessa prisão, deixei de questionar se minhas ações incomodavam aqueles que conviviam com o medo de ser, sentir, viver e amar. Percebi o quanto é comum encontrarmos indivíduos que privilegiam certas emoções e proíbem outras construindo, quer queiram, quer não, normas de comportamento que limitam a criatividade e a espontaneidade das emoções.

Por causa dessas ditas normas de comportamento, nós mascaramos nossas opiniões e sufocamos nossas preferências e aversões.

Não precisamos correr para algum lugar, apenas dar um primeiro passo para que esse caminho afetivo e espontâneo se construa diante de nós.

É possível nos tornarmos água fluindo, terra firme e fértil, fogo vívido e ar manifesto em emoções e pensamentos. É possível transformar a si mesmo ou o outro num simples gesto. Dessa forma, tento descobrir um modo saudável de existir e afetar o mundo humanamente.

Para que haja uma mudança é preciso descobrir um modo saudável de afetar a nós mesmos, ao outro e ao ambiente.

Quando observo a forma como as pessoas se relacionam com as outras, com as coisas, com a natureza, percebo que faltam gentileza, sensibilidade e compreensão das diferenças.

Se começamos a buscar isso em nós mesmos – sensibilizando o corpo e exercitando a espontaneidade na comunicação – vamos sentir que vivenciar emoções e expressá-las, espontânea e positivamente, nos faz humanos, mais conscientes, mais sensíveis e disponíveis. Para nós mesmos, para todos e tudo que nos cerca.

Parece que esta é a tão almejada qualidade de vida, ampliar a percepção e estar disponível. Assim é que se criam vínculos saudáveis tanto nas relações interpessoais quanto com o ambiente que nos cerca.

Um ser inteiro que sabe viver profundamente o aqui agora, de uma forma simples, afetiva e saudável.


Sobre o autor


Ari Teperman, nascido em 1962, em São Paulo, é Analista de Sistemas Junior e Analista de Comunicação Social Sênior. Sua origem é de uma família tradicional judaica. Ari estudou no I. L. Peretz e durante dez anos seguiu a linha ortodoxa. Em 1999 fundou o Grupo de Judeus Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Simpatizantes Brasileiros para debater temas como direitos humanos, cidadania, união civil, judaísmo, sionismo e homossexualidade x religião.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Amor, Bíblia e gays

Por Toni Souza


Fiquei pensando sobre qual assunto abordar nessa estreia, afinal são tantos os temas que nos interessam, e sei que nosso gosto é apurado e, de certa forma, exigente! Pensei... E julguei pertinente, conversaremos sobre o AMOR!

Frustrei?!

Mas vamos seguir. De certo, poderemos encontrar algo que nos faça refletir.

O Amor é cantado por muitas vozes, traduzido em palavras por tantas mãos e sentido por tantos corações. E aqueles sonetos de Vinícius? Eles contam-nos de um amor tão bom.

O Amor que nos exorta e nos convida a oferecer ao próximo, cordialidades em sinal de fraternidade (Rm 12, 10). O Amor que é Phileo, expressão grega que significa “afeição e sentimento profundo”. Mas, que também é Ágapei, vocábulo mais característico do cristianismo e é traduzido por AMOR e aparece em vários contextos nas Escrituras. Ágape fala-nos da essência amorosa de Deus como capaz de amar o mundo a tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3,16).

E o que dizer do Amor do Cântico dos Cânticos? Aquele Amor que é visgo e aproxima duas pessoas sedentas pela sedução da conquista. É o Amor encharcado por paixões inebriantes, exaltando o erótico no Amor como um presente que Deus concede ao ser humano: “como são ternos teus carinhos, minha irmã e minha noiva! Tuas carícias são mais deliciosas que o vinho; teus perfumes, mais aromáticos que todos os bálsamos” (Ct 4,10).

E, ao final, a noiva derrama-se em reconhecimento: “porque é forte o amor como a morte… Águas torrenciais não conseguirão apagar o amor, nem rios poderão afogá-lo. Se alguém quisesse comprar o amor com todos os tesouros da sua casa, receberia somente desprezo” (Ct 8,6s). Pois, um Amor assim, suplanta nossa compreensão (Ef 3,19). Um Amor como esse é eterno (Jr 31,3), livre (Os 14,4) e duradouro (Jo 13,1).

Nessa altura, talvez vocês estejam se perguntando: Qual a relevância dessa conversa para nós os gays?

Bem. Quando eu escrevia um outro artigo de título: Homossexualidade: espiritualidade em encarar as diferenças (http://www.tonisouza.prosaeverso.net/visualizar.php?idt=2235593), eu lancei mão de um comentário simples, porém, extraordinário do Teólogo Leonardo Boff e que eu faço questão de repetir aqui; e ele dizia: “Se a relação for de amor, é algo tão profundo que tem a ver com Deus”. Assim falou Boff, em oposição ao papa João Paulo II, que apregoava sua não aceitação para o casamento homossexual.

Pois bem, é tão comum nos encontrarmos com pessoas que se profissionalizam em jogar com os sentimentos alheios, de brincar com as emoções sem se importar com o que cada pessoa traz dentro de si. Ignorando o aspecto sagrado do sentimento.

E onde está a relação profunda e de Amor?

Encontra-se numa sala de bate-papo qualquer, em que os frequentadores se apresentam com nomes fakes ou se expondo em prateleiras ávidas por sexo, nada além do sexo? Encontra-se o Amor nas esquinas escuras à espera de um carro, de um anônimo pra logo depois se deitar numa cama impessoal só para um sexo banal, rápido e barato?

O que há? Não suportamos a ideia de sermos apontados como promíscuos. Estamos cansados de deparar-nos com o receio nos olhos de nossas famílias, quando revelamos nossa homossexualidade. Pois, no fundo eles temem que nos lancemos a uma vida sem limites, regras e respeito próprio.

O que há entre nós? Será a necessidade de se auto-afirmar, de se sentir importante, desejado, quisto? Qual o sentido em ter músculos torneados, carnes esculturais, formosura.... Pra quê? Se o que impera, muitas vezes, é o vazio na cabeça. Cadê o conteúdo, a honestidade, o papo-sério e construtivo?
Valorizo o bom do amor! Pois, o corpo se desfaz, é efêmero. É tão importante que se transforma em pó, mísero pó!

Não custa respeitar-se mutuamente!

Portanto, independente do rótulo homo ou hétero, temos todos a dignidade de filhos de Deus, somos chamados à comunhão com Ele e com o próximo, somos também destinatários da graça divina. 
E ainda falando do Amor, vale a pena ressaltar o grifo do também Teólogo Frei Betto que nos fala: “Ora, todo amor não decorre de Deus? Não diz a Primeira Carta de João (4,7) que “quem ama conhece a Deus” (observe que João não diz que quem conhece a Deus ama...).

E por aqui eu fico, entendendo que toda forma de amor é licita. Seja na união de um homem com uma mulher; entre duas mulheres ou entre dois homens, pois se existir AMOR, Deus aí estará!

Amemo-nos!


Sobre o autor


Toni Souza é baiano. Professor, Bacharel em Teologia, estudante de Serviço Social e especializando-se em Desenvolvimento Sustentável no Semi-árido. Site: http://www.tonisouza.prosaeverso.net - Contato: tonnysouza@gmail.com

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

David e Jônatas: homo-afetividade bíblica?

Por Paulo Stekel
 Há muitos anos me interesso pela história homo-afetiva de David e Jônatas, um, o pai do futuro Rei Salomão, o outro, filho do tirânico Rei Saul. Não são poucos os pesquisadores, linguistas, arqueólogos e até sacerdotes cristãos que imaginam no relato bíblico sobre estas personagens uma relação homo-afetiva velada. É claro que a ala fundamentalista do Cristianismo rechaça a ideia com toda a veemência do seu discurso sempre vazio de argumentos mas cheio de agressividade. Contudo, os indícios existentes no próprio texto bíblico não são pouco nem irrelevantes.

Em meu livro “Elohê Israel – filosofia esotérica na Bíblia” (versão impressa de 2001 e versão digital de 2006 – baixe trechos do livro em http://stekelmusic.blogspot.com/2011/05/livros-de-stekel-e-books-em-pdf.html), uma das obras que uso como material didático em meus cursos de Cabala, Hebraico antigo e Interpretação Bíblica, discorri sobre o tema analisando o que diz o texto original em Hebraico. Reproduzo abaixo os trechos do livros sobre David e Jônatas, com algumas inserções adequadas para o presente artigo:

“A história de David é uma das mais controversas e impressionantes do Antigo Testamento. Muitos dos seus feitos foram exagerados pelos redatores. A vitória sobre o gigante filisteu Golias pode não ter sido sua (cfe. I Sm 17.40-54), pois II Sm 21.19 diz: “Ainda em Gob, noutra guerra contra os filisteus, Elcanã, filho de Jair, de Belém, matou Golias de Gat; a madeira de sua lança era como cilindro de tear.” Se vê que não era consenso em Israel ter sido David o matador do Golias filisteu.

Morto o gigante, Saul passou a invejar David, enquanto o povo admirava o jovem. O próprio filho de Saul, Jônatas, parece ter amado David mais do que seria aceitável na sociedade israelita daquela época, embora fosse aceitável para os povos vizinhos a Israel. Atualmente, alguns teólogos têm aventado a hipótese de uma ligação homossexual entre David e Jônatas. Apesar da ideia causar espanto, na Grécia antiga esta era uma prática perfeitamente aceitável entre os homens, principalmente em períodos de guerra, quando os guerreiros abandonavam suas esposas para lutar. Entre os povos vizinhos a Israel esta parece ter sido uma prática muito comum, e deve ter sido tolerada em Israel por muito tempo, até ser criminalizada pelos sacerdotes deuteronomistas pós-exílicos. David, entretanto, como se sabe, tinha uma queda irresistível pelas práticas “pagãs”!

I Sm 18.1,3 diz: “Aconteceu que, terminando ele [David] de falar com Saul, a alma de Jônatas
apegou-se à alma de David
[orig. Hebraico -
venéfesh yehonathan niqsherah benéfesh davidh]. E Jônatas começou a amá-lo como a si mesmo [orig. Hebraico - vaye'ehavehu yehonathan kenafsho]. (...) Jônatas fez um pacto com David, porque o amava como a si mesmo. Jônatas tirou o manto que vestia e o deu a David, e também lhe deu a sua roupa, a sua espada, o seu arco e o seu cinturão.”

As roupas são parte da personalidade. Então, ao dar suas roupas a David, o apaixonado Jônatas, pego, ao que parece, por um amor à primeira vista, se tornou ligado a David de um modo indissolúvel, como se fossem “almas gêmeas”.

"O termo “nefesh”, que se traduz por “alma” equivale também ao corpo na Cabala. Assim, a tradução incluiria o sentido: “(...) o corpo de Jônatas ligou-se ao corpo de David. E Jônatas começou a amá-lo como a seu próprio corpo.” Não se trataria de uma simples amizade, como nos tentaram fazer entender os redatores do livro de Samuel. Afinal, a lei deuteronomista não aprovava este tipo de relação, abominada por ser considerada prática pagã.

Analisemos mais alguns trechos sobre esta questão: “Ora, Jônatas, filho de Saul, tinha muita afeição [orig. Hebraico -
chafets] por David.” [I Sm 19.1] O termo “chafets” significa “gostar” e “desejar”. Devemos entender que Jônatas tinha “muito desejo por David”?"

Este trecho analisado se refere a um dos vários momentos em que Jônatas defende David dos ataques de seu pai, o Rei Saul:

“Saul comunicou a seu filho Jônatas e a todos os seus oficiais a sua intenção de levar David à morte. Ora, Jônatas, filho de Saul, tinha muita afeição por David, e advertiu a David dizendo: 'Meu pai busca a tua morte. Fica de sobreaviso amanhã de manhã, procura o teu refúgio e esconde-te. Eu sairei e permanecerei ao lado do meu pai no campo em que estiveres, e então falarei com meu pai a teu respeito, saberei o que houver e te informarei.'”

Quanto amor! Quando David precisou fugir em definitivo de Saul, que o queria matar:

“Então David fugiu das celas de Ramá e veio ter com Jônatas, dizendo: 'Que fiz eu? Qual a minha falta? Que crime cometi contra teu pai, para que procure tirar-me a vida?' Ele lhe respondeu: 'Longe de ti tal pensamento! Tu não morrerás. Meu pai não empreende coisa alguma, importante ou não, sem confiá-la a mim. Por que ocultaria tal plano de mim? Impossível!' David fez este juramento: 'Teu pai sabe perfeitamente que me favoreces e, portanto, diz consigo: 'Não saiba Jônatas nada a respeito disso, para que não sofra'. Mas, tão certo como vive Iahweh e como tu vives, existe só um passo entre mim e a morte.' Jônatas disse a David: 'Que queres que eu faça por ti?'” (I Samuel 20)

A cumplicidade entre ambos é evidente neste e em outros trechos. O que incomodava Saul, além da inveja do herói que David era, pode ter sido a ligação homo-afetiva deste com seu filho Jônatas. Ambos eram casados com mulheres mas, à moda grega, isso não seria impedimento naquela época para momentos homo-afetivos.

"I Sm 20.17 diz que Jônatas “o amava com toda a sua alma”. As ambições dos dois talvez fossem
maiores do que essa “amizade grega”, pois no momento em que Saul perseguia David, Jônatas o protegia de cada ataque, e disse, em I Sm 23.17: “Não temas, porque a mão de meu pai Saul não te atingirá. Tu reinarás sobre Israel, e eu serei o teu segundo. Até mesmo meu pai Saul bem sabe disso.” Seria possível que os dois reinassem juntos, caso Jônatas não tivesse sido morto em batalha? Para alívio dos ortodoxos, eivados de preconceitos e hipocrisia, esta é uma pergunta sem resposta.


Após a morte de Saul e Jônatas, David compôs uma lamentação (II Sm 1.19-27), onde, acerca do
amigo, revela: “Jônatas, a tua morte dilacerou-me o coração, tenho o coração apertado por tua causa, meu irmão [orig. Hebraico -
'achí] Jônatas. Tu me eras imensamente querido, a tua amizade [orig. Hebraico - 'ahavathkhá] me era mais cara do que o amor das mulheres [orig. Hebraico - me'ahavath nashim].” Há aqui um flagrante do receio de se traduzir corretamente um trecho pelas implicações que isso pode acarretar. O termo hebraico traduzido por “amizade” é o mesmo traduzido por “amor” das mulheres – é o termo 'ahavah, que significa “o amar, amor, amizade” e deriva do verbo 'ahev - “gostar, amar”. Assim, a tradução correta seria: “(...) o teu amor me era mais caro do que o amor das mulheres”! Fica claro, pela palavra usada, que David se refere ao mesmo tipo de amor, o do companheirismo de um relacionamento! Por isso o chama de 'achí, que, além de “meu irmão”, significa “meu companheiro”."

A lamentação completa de David a Jônatas é cheia de uma saudade amorosa impressionante:

“Pereceu o esplendor de Israel nas tuas alturas?
Como caíram os heróis?

Não o publiqueis em Gat,
não o anuncieis nas ruas de Ascalon,
que não se alegrem as filhas dos filisteus,
que não exultem as filhas dos incircunsisos!

Montanhas de Gelboé,
nem orvalho nem chuva se derramem sobre vós,
campos traiçoeiros,
pois foi desonrado o escudo dos heróis!

O escudo de Saul não foi ungido com óleo,
mas com o sangue dos feridos,
com a gordura dos guerreiros;
o arco de Jônatas jamais hesitou,
nem a espada de Saul foi inútil.

Saul e Jônatas, amados e encantadores,
na vida e na morte não se separaram.
Mais do que as águas eram velozes,
mais do que os leões eram fortes.

Filhas de Israel, chorai sobre Saul,
que vos vestiu de escarlate e de linho puro,
que adornou com ouro
os vossos vestidos.

Como caíram os heróis
no meio do combate?
Jônatas, a tua morte dilacerou-me o coração,
tenho o coração apertado por tua causa, meu irmão Jônatas.

Tu me eras imensamente querido,
o teu amor me era mais caro
do que o amor das mulheres.
Como caíram os heróis
e pereceram as armas de guerra?”


Me lembro, neste momento, da história do Imperador Adriano e de seu amante Antinous, pois aqui só estão faltando as estátuas votivas espalhadas pelo mundo antigo e o endeusamento do mancebo...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O beijo proibido do “amor que não ousa dizer o nome”

Por Paulo Stekel (artigo originalmente publicado em http://gayexpression.wordpress.com/2011/03/01/o-beijo-proibido-do-%E2%80%9Camor-que-nao-ousa-dizer-o-nome%E2%80%9D/)

Quem não conhece a famosa frase do polêmico escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) que define o amor entre pessoas do mesmo sexo como “o amor que não ousa dizer o nome”? Em Wilde, quase tudo é audacioso, desde suas comédias, textos para crianças (sim, ele fez isso!) até seu autobiográfico “De Profundis”, publicado em versão completa mais de 70 anos após sua morte. Para muitos, um dos primeiros ícones homossexuais a inspirar os modernos movimentos LGBTs, ainda que tenha travado uma luta muito particular contra o preconceito, não uma luta articulada, como a que travamos hoje. Wilde viveu sua homossexualidade intensamente numa época em que isso era crime, e teve que arcar com as consequências de “amar o igual” em plena era das trevas da Londres de 1895. Ficou preso por dois anos e, por conta disso, teve sua saúde, vida financeira e até produção intelectual prejudicadas.


Wilde vinha de família protestante, o que, com certeza, lhe aumentou a pressão por causa de sua orientação sexual. Os protestantes, em geral, são muito mais radicais que os católicos no que tange ao sexo não-reprodutivo e, em especial, à homossexualidade. Ainda hoje é assim, e, se pudessem, todos nós estaríamos presos como Oscar Wilde, privados de nossos direitos fundamentais. Aliás, é o que intentam na surdina os pastores evangélicos fanáticos e mesmo alguns setores fundamentalistas do catolicismo.

Esses fanáticos querem negar-nos o direito mais consensual do amor entre dois seres: o beijo apaixonado em público. Todos sabemos que na televisão brasileira o beijo gay é um tabu absurdamente hipócrita. Novelas em horário nobre apresentam a um público indiscriminado as maiores baixarias sexuais, extra-conjugais e violência sado-masoquista sem o mínimo murmúrio dos que se auto-intitulam “baluartes da moral e dos bons costumes”, mas sequer apresentam um “selinho gay”, pois isso acabaria com a “demonização” das relações homoafetivas perante a sociedade brasileira, derrubando o cavalo de batalha caquético das “frentes cristãs” abertamente anti-gays. Na verdade, o beijo proibido, o beijo gay, se tornado frequente na televisão, e do modo correto, acabaria com o bicho-de-sete-cabeças na cabeça dos brasileiros, que possuem uma visão equivocada do universo homoafetivo. É um medo inconsciente de sabe-se lá o que a atormentar a mente de quem foi educado dentro de uma norma imposta por um costume que não é de todos. Se não é de todos, há de se dar voz ao diverso.
Recordo a primeira vez que dei o “beijo proibido” em plena rua, em Santa Maria, no interior do RS, lá pelos idos de 1995, ao sair de uma festa. Não esqueço da reação de um popular que passava e ia proferindo impropérios ladeira abaixo. Se fosse na Avenida Paulista, a coisa seria mais séria…

Dez anos depois, em 2005, repeti a cena em um shopping de Brasília, e a reação foi mais amistosa. Mereci até um ok e um sorriso de um atendente de empresa de celulares que assistia a tudo de um quiosque no centro do shopping. (Não, não sei se ele era gay ou apenas “simpatizante”. Rsrs.)

O fato é que, por mais que uma boa parcela da sociedade pareça hoje mais “tolerante” ao beijo gay em público, sempre se encontra aqueles “machões carentes de auto-afirmação” que só conseguem sentir virilidade batendo em quem pensam ser menos viris que eles, o que, me permitam esclarecer, nem sempre é a verdade dos fatos…

A grosso modo, eu divido os homofóbicos masculinos em três classes: os enrustidos (engaiolados em uma orientação sexual que não quer se revelar por conta da pressão do meio social em que vivem, o que os leva a “exorcizar” seus demônios sexuais através da violência contra quem demonstra claramente sua orientação), os fanáticos religiosos (que seguem de modo cego e medieval uma interpretação bíblica não conectada à realidade do mundo moderno, propagada por sacerdotes hipócritas que chegam ao cúmulo de associar homossexualidade com pedofilia) e os misóginos (sim, os misóginos, aqueles homens que, mesmo sendo heterossexuais, tem “nojo” das mulheres, as consideram seres inferiores ao homem e sua propriedade meramente reprodutiva; então, associando a homossexualidade ao feminino, o asco contra gays é duplicado).

Quanto às mulheres, a homofobia é bem menor por conta do preconceito que elas mesmo sofreram por milênios (e, ainda sofrem) sob a tutela de seus “senhores”. Vejo aí a explicação para gays masculinos possuírem muito mais amigas que amigos. As mulheres entendem melhor quem sofre preconceito porque elas mesmas o sofrem em muitas circunstâncias e lugares, por mais que nossa sociedade tenha evoluído no tocante aos direitos femininos. Podemos, então, concluir que gays masculinos não são misóginos, não consideram a mulher como inferior a eles, mas como uma referência de beleza, força, coragem e devoção, ou um misto de tudo isso. Não há qualquer relação de submissão, de superioridade ou de inferioridade, entre um gay masculino e uma amiga mulher, seja ela heterossexual ou lésbica. Tanto que Oscar Wilde escreveu: “As mulheres existem para que as amemos, e não para que as compreendamos.” Amar é a suprema aceitação…, pois, para Wilde, “amar é ultrapassarmo-nos”.

Ao elencar esses tipos masculinos de homofóbicos, pessoas que conseguem em público até sorrir para gays, mas que em circunstâncias outras lhes desferem tapas, socos e pontapés, me recordo das palavras de Oscar Wilde em “De Profundis”: “Por detrás da alegria e do riso, pode haver um temperamento vulgar, duro e insensível. Mas, por detrás do sofrimento, há sempre sofrimento. Ao contrário do prazer, a dor não usa máscara.”
E, não usa mesmo! A dor é evidente, é feroz, se instala e não apresenta opções: ou você a enfrenta, ou a enfrenta. Não cabem máscaras nessa luta. Então, em geral, gays falam o que pensam sem dó nem piedade. A dor lhes ensinou a “encurtar o caminho para a salvação” (desculpem, mas não resisti!): a verdade, o discurso direto sem hipocrisia, o saber “se virar” para sobreviver, a coragem para dar a cara a tapa… Afinal, não dizem que “A Verdade vos libertará”? Se existe um Deus, Ele deve se agradar dessa autenticidade, não da hipocrisia dos religiosos que se consideram salvos e que se utilizam da mentira o tempo todo para impedir que tenhamos direitos reconhecidos.

O que pensar, por exemplo, de um senador (diga-se, Magno Malta – PR/ES, pastor evangélico) que maldosamente tenta vincular a homossexualidade à pedofilia? As estatísticas não mentem: a maior parte dos pedófilos são homens heterossexuais! Nada mais lógico, uma vez que os gays são só cerca de 10% das pessoas. Ao dizer que, se aprovado o Projeto de Lei 122 (PLC/122) que criminaliza a homofobia, um pedófilo poderia alegar que “sua orientação sexual é transar com crianças”, o senador demonstra total desconhecimento do Direito e despreparo ao lidar com direitos civis. Na verdade, o que existe é má intenção pura de natureza religiosa!

E, nós, como podemos fazer frente a noções bizarras e mal-intencionadas como a deste pastor-senador e símiles malafaias que se locupletam em seus templos não taxados pelo Brasil afora? Dentro da lei podemos protestar, e o “beijaço” é uma das formas mais interessantes. Usar o “beijo proibido” para tornar evidente “o amor que não ousa dizer o nome” é uma forma pacífica e eficaz de preencher a lacuna que a mídia insiste em deixar vazia.
Pessoas que confundem o beijo gay com promiscuidade demonstram uma ignorância tal que não merece resposta. A promiscuidade existe nas relações humanas, sejam heterossexuais, homossexuais ou bissexuais. Aliás, a quantidade de maridos heterossexuais com suas amantes, algo que está presente em 100% das novelas e séries brasileiras, é a prova de que a promiscuidade é um evento, por dizer assim, democratizado em nossa sociedade, uma espécie de vício social aceitável, qual o “beber moderadamente” ou “socialmente”.

As relações afetivas gays não duram menos que as heterossexuais, e já há pesquisas demonstrando isso. O problema é que a mídia só mostra dos gays a “banda podre” ou o “circo de micos amestrados”. Me refiro à prostituição, aos excessos e aos gays caricatos em programas de humor. Contudo, a prostituição é uma instituição heterossexual praticamente universal! Não foram os gays que a inventaram! E, nos gays caricatos, há um “realce” do comportamento efeminado e do humor que agrada a uns e desagrada a outros. Sem problemas, há espaço para todas as tribos! Mas, querer definir todo o universo gay por uma parcela, com vistas a denegrir o todo, é uma tática “que não é de Deus” (desculpem, não resisti novamente)!

Está chegando a hora do “amor que não ousa dizer o nome” dizê-lo em voz alta, com todas as letras e exigir seus direitos até a última linha da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Constituição Federal. Não seremos encarcerados como o foi Oscar Wilde, a não ser que moremos em algum país islâmico, onde até assassinados sumariamente podemos ser. Então, saiamos às ruas e vamos exigir nossos direitos sociais todos, sem exceção. Temos que evidenciar todo o nosso descontentamento à sociedade. Lembremos do que escreveu Wilde:

O descontentamento é o primeiro passo na evolução de um homem ou de uma nação.”