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quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

David e Jônatas: homo-afetividade bíblica?

Por Paulo Stekel
 Há muitos anos me interesso pela história homo-afetiva de David e Jônatas, um, o pai do futuro Rei Salomão, o outro, filho do tirânico Rei Saul. Não são poucos os pesquisadores, linguistas, arqueólogos e até sacerdotes cristãos que imaginam no relato bíblico sobre estas personagens uma relação homo-afetiva velada. É claro que a ala fundamentalista do Cristianismo rechaça a ideia com toda a veemência do seu discurso sempre vazio de argumentos mas cheio de agressividade. Contudo, os indícios existentes no próprio texto bíblico não são pouco nem irrelevantes.

Em meu livro “Elohê Israel – filosofia esotérica na Bíblia” (versão impressa de 2001 e versão digital de 2006 – baixe trechos do livro em http://stekelmusic.blogspot.com/2011/05/livros-de-stekel-e-books-em-pdf.html), uma das obras que uso como material didático em meus cursos de Cabala, Hebraico antigo e Interpretação Bíblica, discorri sobre o tema analisando o que diz o texto original em Hebraico. Reproduzo abaixo os trechos do livros sobre David e Jônatas, com algumas inserções adequadas para o presente artigo:

“A história de David é uma das mais controversas e impressionantes do Antigo Testamento. Muitos dos seus feitos foram exagerados pelos redatores. A vitória sobre o gigante filisteu Golias pode não ter sido sua (cfe. I Sm 17.40-54), pois II Sm 21.19 diz: “Ainda em Gob, noutra guerra contra os filisteus, Elcanã, filho de Jair, de Belém, matou Golias de Gat; a madeira de sua lança era como cilindro de tear.” Se vê que não era consenso em Israel ter sido David o matador do Golias filisteu.

Morto o gigante, Saul passou a invejar David, enquanto o povo admirava o jovem. O próprio filho de Saul, Jônatas, parece ter amado David mais do que seria aceitável na sociedade israelita daquela época, embora fosse aceitável para os povos vizinhos a Israel. Atualmente, alguns teólogos têm aventado a hipótese de uma ligação homossexual entre David e Jônatas. Apesar da ideia causar espanto, na Grécia antiga esta era uma prática perfeitamente aceitável entre os homens, principalmente em períodos de guerra, quando os guerreiros abandonavam suas esposas para lutar. Entre os povos vizinhos a Israel esta parece ter sido uma prática muito comum, e deve ter sido tolerada em Israel por muito tempo, até ser criminalizada pelos sacerdotes deuteronomistas pós-exílicos. David, entretanto, como se sabe, tinha uma queda irresistível pelas práticas “pagãs”!

I Sm 18.1,3 diz: “Aconteceu que, terminando ele [David] de falar com Saul, a alma de Jônatas
apegou-se à alma de David
[orig. Hebraico -
venéfesh yehonathan niqsherah benéfesh davidh]. E Jônatas começou a amá-lo como a si mesmo [orig. Hebraico - vaye'ehavehu yehonathan kenafsho]. (...) Jônatas fez um pacto com David, porque o amava como a si mesmo. Jônatas tirou o manto que vestia e o deu a David, e também lhe deu a sua roupa, a sua espada, o seu arco e o seu cinturão.”

As roupas são parte da personalidade. Então, ao dar suas roupas a David, o apaixonado Jônatas, pego, ao que parece, por um amor à primeira vista, se tornou ligado a David de um modo indissolúvel, como se fossem “almas gêmeas”.

"O termo “nefesh”, que se traduz por “alma” equivale também ao corpo na Cabala. Assim, a tradução incluiria o sentido: “(...) o corpo de Jônatas ligou-se ao corpo de David. E Jônatas começou a amá-lo como a seu próprio corpo.” Não se trataria de uma simples amizade, como nos tentaram fazer entender os redatores do livro de Samuel. Afinal, a lei deuteronomista não aprovava este tipo de relação, abominada por ser considerada prática pagã.

Analisemos mais alguns trechos sobre esta questão: “Ora, Jônatas, filho de Saul, tinha muita afeição [orig. Hebraico -
chafets] por David.” [I Sm 19.1] O termo “chafets” significa “gostar” e “desejar”. Devemos entender que Jônatas tinha “muito desejo por David”?"

Este trecho analisado se refere a um dos vários momentos em que Jônatas defende David dos ataques de seu pai, o Rei Saul:

“Saul comunicou a seu filho Jônatas e a todos os seus oficiais a sua intenção de levar David à morte. Ora, Jônatas, filho de Saul, tinha muita afeição por David, e advertiu a David dizendo: 'Meu pai busca a tua morte. Fica de sobreaviso amanhã de manhã, procura o teu refúgio e esconde-te. Eu sairei e permanecerei ao lado do meu pai no campo em que estiveres, e então falarei com meu pai a teu respeito, saberei o que houver e te informarei.'”

Quanto amor! Quando David precisou fugir em definitivo de Saul, que o queria matar:

“Então David fugiu das celas de Ramá e veio ter com Jônatas, dizendo: 'Que fiz eu? Qual a minha falta? Que crime cometi contra teu pai, para que procure tirar-me a vida?' Ele lhe respondeu: 'Longe de ti tal pensamento! Tu não morrerás. Meu pai não empreende coisa alguma, importante ou não, sem confiá-la a mim. Por que ocultaria tal plano de mim? Impossível!' David fez este juramento: 'Teu pai sabe perfeitamente que me favoreces e, portanto, diz consigo: 'Não saiba Jônatas nada a respeito disso, para que não sofra'. Mas, tão certo como vive Iahweh e como tu vives, existe só um passo entre mim e a morte.' Jônatas disse a David: 'Que queres que eu faça por ti?'” (I Samuel 20)

A cumplicidade entre ambos é evidente neste e em outros trechos. O que incomodava Saul, além da inveja do herói que David era, pode ter sido a ligação homo-afetiva deste com seu filho Jônatas. Ambos eram casados com mulheres mas, à moda grega, isso não seria impedimento naquela época para momentos homo-afetivos.

"I Sm 20.17 diz que Jônatas “o amava com toda a sua alma”. As ambições dos dois talvez fossem
maiores do que essa “amizade grega”, pois no momento em que Saul perseguia David, Jônatas o protegia de cada ataque, e disse, em I Sm 23.17: “Não temas, porque a mão de meu pai Saul não te atingirá. Tu reinarás sobre Israel, e eu serei o teu segundo. Até mesmo meu pai Saul bem sabe disso.” Seria possível que os dois reinassem juntos, caso Jônatas não tivesse sido morto em batalha? Para alívio dos ortodoxos, eivados de preconceitos e hipocrisia, esta é uma pergunta sem resposta.


Após a morte de Saul e Jônatas, David compôs uma lamentação (II Sm 1.19-27), onde, acerca do
amigo, revela: “Jônatas, a tua morte dilacerou-me o coração, tenho o coração apertado por tua causa, meu irmão [orig. Hebraico -
'achí] Jônatas. Tu me eras imensamente querido, a tua amizade [orig. Hebraico - 'ahavathkhá] me era mais cara do que o amor das mulheres [orig. Hebraico - me'ahavath nashim].” Há aqui um flagrante do receio de se traduzir corretamente um trecho pelas implicações que isso pode acarretar. O termo hebraico traduzido por “amizade” é o mesmo traduzido por “amor” das mulheres – é o termo 'ahavah, que significa “o amar, amor, amizade” e deriva do verbo 'ahev - “gostar, amar”. Assim, a tradução correta seria: “(...) o teu amor me era mais caro do que o amor das mulheres”! Fica claro, pela palavra usada, que David se refere ao mesmo tipo de amor, o do companheirismo de um relacionamento! Por isso o chama de 'achí, que, além de “meu irmão”, significa “meu companheiro”."

A lamentação completa de David a Jônatas é cheia de uma saudade amorosa impressionante:

“Pereceu o esplendor de Israel nas tuas alturas?
Como caíram os heróis?

Não o publiqueis em Gat,
não o anuncieis nas ruas de Ascalon,
que não se alegrem as filhas dos filisteus,
que não exultem as filhas dos incircunsisos!

Montanhas de Gelboé,
nem orvalho nem chuva se derramem sobre vós,
campos traiçoeiros,
pois foi desonrado o escudo dos heróis!

O escudo de Saul não foi ungido com óleo,
mas com o sangue dos feridos,
com a gordura dos guerreiros;
o arco de Jônatas jamais hesitou,
nem a espada de Saul foi inútil.

Saul e Jônatas, amados e encantadores,
na vida e na morte não se separaram.
Mais do que as águas eram velozes,
mais do que os leões eram fortes.

Filhas de Israel, chorai sobre Saul,
que vos vestiu de escarlate e de linho puro,
que adornou com ouro
os vossos vestidos.

Como caíram os heróis
no meio do combate?
Jônatas, a tua morte dilacerou-me o coração,
tenho o coração apertado por tua causa, meu irmão Jônatas.

Tu me eras imensamente querido,
o teu amor me era mais caro
do que o amor das mulheres.
Como caíram os heróis
e pereceram as armas de guerra?”


Me lembro, neste momento, da história do Imperador Adriano e de seu amante Antinous, pois aqui só estão faltando as estátuas votivas espalhadas pelo mundo antigo e o endeusamento do mancebo...

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Enfim, existimos!

Por Paulo Stekel (texto publicado originalmente em http://gayexpression.wordpress.com/2011/05/06/enfim-existimos)

Como alguém pode duvidar disso? Como alguém pode dizer que não existimos, que não temos direitos iguais e, contraditoriamente, atacar-nos com uma Bíblia na mão? Sim, existimos, e – com a permissão do velho lobo, Zagallo – vão ter que nos engolir!

Os dias 04 e 05 de maio de 2011 foram os mais importantes para a comunidade LGBT até aqui. Ao analisar duas ações, uma proposta pela Procuradoria-Geral da República e outra pelo governo do estado do Rio de Janeiro, em votação unânime (10X0), o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável homoafetiva, ou seja, entre casais do mesmo sexo como sendo uma entidade familiar.

A “entidade familiar”

Até agora, apenas três tipos de entidade familiar eram reconhecidas em juízo: o casal heterossexual no casamento civil, o casal heterossexual em união estável e a pessoa solteira (qualquer dos pais e seus descendentes). No primeiro caso, bastava o casamento civil entre um homem e uma mulher; no segundo, bastava a união estável (isto é, sem o casamento civil) entre um homem e uma mulher; no terceiro caso, bastava que um homem ou uma mulher fossem pais para pleitear direitos de família mesmo sem estarem casados ou sequer em união estável. O que o STF reconheceu em 05 de maio é que quando duas pessoas do mesmo sexo vivem em união estável, isso também é uma entidade familiar, com os mesmos direitos e deveres incidentes sobre a união estável entre heterossexuais. Isso criou um precedente que aos poucos será seguido pelas demais instâncias judiciais e também pela administração pública.

O número de pessoas que serão beneficiadas com esta conquista de mais cidadania ainda é indefinido, apesar do Censo Demográfico 2010 ter apontado que o Brasil tem mais de 60 mil casais homossexuais vivendo em união estável homoafetiva. Se considerarmos que muitos casais não manifestaram publicamente sua condição por vários motivos, esse número pode ser muito maior, na realidade. Mas, a decisão atual abre caminho para a aprovação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, que é direito garantido a casais em união estável no art. 226 da Constituição Federal: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

União estável não é casamento civil!

Acompanhei pela imprensa toda a votação no STF e a reação da comunidade LGBT pelas redes sociais, em especial o Twitter, por sua resposta rápida. O que percebi foi uma generalizada confusão entre união estável e casamento civil de parte da comunidade LGBT. Mas, consultando a lei, a diferença é clara! A união estável acontece sem quaisquer formalidades, naturalmente, a partir da convivência do casal que forma uma “família espontânea” (no entender do ministro do STF, Luiz Fux), isto é, sem a necessidade de aprovação de um juiz ou um sacerdote. Tanto é assim, que após uma separação, há que se comprovar a união estável para que esta gere direitos e obrigações a ambas as partes (direitos sobre filhos, pensão alimentícia, etc). Já o casamento civil é um contrato jurídico formal estabelecido entre duas pessoas, até o momento, de sexos opostos. Não é isso que o STF reconheceu para pessoas do mesmo sexo, e sim, a união estável, ao contrário da Argentina, que em julho de 2010 se tornou o primeiro país da América Latina a autorizar gays a se casarem e a adotarem filhos.

O que o STF decidiu foi simplesmente o reconhecimento da união estável gay como entidade familiar. Esse reconhecimento para a servir como recomendação em instâncias jurídicas para que casais gays passem a ter os mesmos direitos de heterossexuais em união estável, apesar da ressalva do ministro do Supremo, Ricardo Lewandowski: “Entendo que uniões de pessoas do mesmo sexo, que se projetam no tempo e ostentam a marca da publicidade, devem ser reconhecidas pelo direito, pois dos fatos nasce o direito. Creio que se está diante de outra unidade familiar distinta das que caracterizam uniões estáveis heterossexuais”. Neste caso, teríamos uma quarta entidade familiar: a formada pela união estável homoafetiva. Mas, se for assim, quando o casamento civil for aprovado, teremos uma quinta entidade familiar formada por duas pessoas em casamento civil homoafetivo? São respostas que serão dadas ao longo do tempo e conforme as decisões dos magistrados caso a caso, à medida que a comunidade LGBT for atrás de seus direitos.

Uma dúvida que percebi nas redes sociais é sobre como garantir o reconhecimento da união estável a partir da decisão do STF. Antes mesmo dela os casais homoafetivos já podiam registrar a união em cartório. Mas, até então, tratava-se de um contrato que definia há quanto tempo o casal estava em união estável, como seria a divisão de bens, etc. Ou seja, a relação era considerada um “regime de sociedade”, não uma entidade familiar. Então, não se previa “separação”, mas algo equivalente a uma “quebra de sociedade”. (Eu e meu companheiro assinamos este contrato em dezembro de 2007 e, recentemente, ele foi aceito pela Caixa Econômica Federal num financiamento para casa própria como parte da comprovação de renda conjunta.) Agora, a regulamentação virá com o tempo, mudando o status de “regime de sociedade entre duas pessoas do mesmo sexo” (regido pelo Código Civil) para “união estável homoafetiva” (regida pelo Direito de Família). Mas até que isso ocorra, os casais homoafetivos vão continuar tendo que recorrer à Justiça para obter seus direitos. O bom é que, a partir de agora, as decisões tenderão a ser mais rápidas, favoráveis e homogêneas.

Direitos que passam a ser garantidos

Mas, o maior interesse da comunidade LGBT está em saber quais direitos passam a ser garantidos ou, melhor, pleiteáveis em juízo, em casos de ação de reconhecimento de união estável que devem, a nosso ver, transcorrer de modo semelhante às ações do mesmo tipo entre casais heterossexuais. São centenas de direitos, alguns mais importantes, e que devem ser destacados.

Um deles é a declaração da união em regime de comunhão parcial de bens (o direito incide sobre o que se conquistou em conjunto após o início da união estável). Outro, é o direito a pensão alimentícia em caso de separação judicial, além de pensões do INSS que, aliás, já são concedidas para os companheiros gays de pessoas falecidas – a decisão do STF apenas dá mais respaldo jurídico. Os planos de saúde ou familiares não poderão se negar em aceitar, nem mesmo em juízo, parceiros gays como dependentes, apesar da maioria deles já possibilitar esta prática. A Receita Federal também já aceita que os homoafetivos declarem seus companheiros como dependentes. As políticas públicas deverão incluir os casais homoafetivos, e não de forma modesta, como ocorre.

Um dos direitos que consideramos mais importantes como consequência da decisão do STF é o de sucessão. Já vimos muitos casos de casais gays em que, ao morrer um dos companheiros, o outro ficou sem nada, pois os bens adquiridos em conjunto passaram à tutela da família do falecido. Isso deve mudar, felizmente.

Outro direito importantíssimo, mas que cabe entender bem, é o de adoção. A lei tem permitido a gays a adoção, mas sabemos que sempre se dá preferência a casais heterossexuais (tanto em casamento civil como união estável). Com a decisão do STF, reconhecendo a união estável homoafetiva como unidade familiar, as decisões favoráveis serão facilitadas em grande medida.

Enfim, a existência…

Existir é a primeira condição para ser visto. Sem existência, sem visibilidade. Falamos “existência” no sentido jurídico e social. Se a sociedade nega (moralmente falando) nossa existência, e a lei a acompanha, ficamos num vazio total. Não somos visíveis nem para a sociedade (o costume), nem para a lei, nem para a religião…

Mas, os tempos estão mudando. A sociedade já sabe de nós, nos vê e, em boa medida, nos apoia. A lei começou a ratificar-nos, finalmente. Mas, a religião, especialmente a ala fundamentalista cristã, esta é um jogo-duro… O catolicismo e o neopentecostalismo pregam um discurso confuso, hipócrita e contraditório de “amamos os gays mas não aceitamos suas práticas”. Não são práticas, são vivências! Prática tem menor implicação que vivência, pois esta última advém da essência do ser. E, o ser gay é algo intrinsecamente conectado à vontade natural do ser que assim nasceu. Há uma vida gay (pois se nasceu assim) muito mais que uma prática gay! Práticas homossexuais são comuns em instituições prisionais, mas não constituem, necessariamente, uma vida homossexual, salvo nos casos em que o sentir-se homossexual esteja intrinsecamente ligado à alma do ser. Mesmo porque, no caso das prisões, as práticas homossexuais se inserem muito mais na classificação do estupro (como forma de humilhação) ou da ausência de sexo oposto (diante dos imperativos fisiológicos) do que na orientação homossexual de fato, esta sim, baseada no sentir atração pelo mesmo sexo como algo constante e não transitório.
A lei reconheceu que existimos. Se existimos, somos tutelados pela lei do país em que vivemos e, neste caso, temos direitos e deveres, dos fundamentais aos últimos. E, os queremos todos! Só assim seremos cidadãos plenos e não cidadãos de segunda classe num país laico, como já escrevi em outro artigo. Se a religião não nos quer reconhecer como existindo e tendo direitos de cidadania, abdique de ter-nos como seus fiéis agindo segundo suas normas ultrapassadas e sufocantes do ser. Invocar regras deuteronômicas do Antigo Testamento para validar determinados preconceitos, esquecendo de aplicar outras, por simples conveniência, é de uma hipocrisia, má-intenção e manipulação tal que envergonha qualquer Deus por acaso existente… E, mesmo Deus sabe que existimos, pois, se nos criou como somos, não será Ele a negar-nos… antes, justifica-se através de nós e desvela aos olhos do mundo que seus auto-declarados porta-vozes não passam de vendilhões do Templo!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O beijo proibido do “amor que não ousa dizer o nome”

Por Paulo Stekel (artigo originalmente publicado em http://gayexpression.wordpress.com/2011/03/01/o-beijo-proibido-do-%E2%80%9Camor-que-nao-ousa-dizer-o-nome%E2%80%9D/)

Quem não conhece a famosa frase do polêmico escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) que define o amor entre pessoas do mesmo sexo como “o amor que não ousa dizer o nome”? Em Wilde, quase tudo é audacioso, desde suas comédias, textos para crianças (sim, ele fez isso!) até seu autobiográfico “De Profundis”, publicado em versão completa mais de 70 anos após sua morte. Para muitos, um dos primeiros ícones homossexuais a inspirar os modernos movimentos LGBTs, ainda que tenha travado uma luta muito particular contra o preconceito, não uma luta articulada, como a que travamos hoje. Wilde viveu sua homossexualidade intensamente numa época em que isso era crime, e teve que arcar com as consequências de “amar o igual” em plena era das trevas da Londres de 1895. Ficou preso por dois anos e, por conta disso, teve sua saúde, vida financeira e até produção intelectual prejudicadas.


Wilde vinha de família protestante, o que, com certeza, lhe aumentou a pressão por causa de sua orientação sexual. Os protestantes, em geral, são muito mais radicais que os católicos no que tange ao sexo não-reprodutivo e, em especial, à homossexualidade. Ainda hoje é assim, e, se pudessem, todos nós estaríamos presos como Oscar Wilde, privados de nossos direitos fundamentais. Aliás, é o que intentam na surdina os pastores evangélicos fanáticos e mesmo alguns setores fundamentalistas do catolicismo.

Esses fanáticos querem negar-nos o direito mais consensual do amor entre dois seres: o beijo apaixonado em público. Todos sabemos que na televisão brasileira o beijo gay é um tabu absurdamente hipócrita. Novelas em horário nobre apresentam a um público indiscriminado as maiores baixarias sexuais, extra-conjugais e violência sado-masoquista sem o mínimo murmúrio dos que se auto-intitulam “baluartes da moral e dos bons costumes”, mas sequer apresentam um “selinho gay”, pois isso acabaria com a “demonização” das relações homoafetivas perante a sociedade brasileira, derrubando o cavalo de batalha caquético das “frentes cristãs” abertamente anti-gays. Na verdade, o beijo proibido, o beijo gay, se tornado frequente na televisão, e do modo correto, acabaria com o bicho-de-sete-cabeças na cabeça dos brasileiros, que possuem uma visão equivocada do universo homoafetivo. É um medo inconsciente de sabe-se lá o que a atormentar a mente de quem foi educado dentro de uma norma imposta por um costume que não é de todos. Se não é de todos, há de se dar voz ao diverso.
Recordo a primeira vez que dei o “beijo proibido” em plena rua, em Santa Maria, no interior do RS, lá pelos idos de 1995, ao sair de uma festa. Não esqueço da reação de um popular que passava e ia proferindo impropérios ladeira abaixo. Se fosse na Avenida Paulista, a coisa seria mais séria…

Dez anos depois, em 2005, repeti a cena em um shopping de Brasília, e a reação foi mais amistosa. Mereci até um ok e um sorriso de um atendente de empresa de celulares que assistia a tudo de um quiosque no centro do shopping. (Não, não sei se ele era gay ou apenas “simpatizante”. Rsrs.)

O fato é que, por mais que uma boa parcela da sociedade pareça hoje mais “tolerante” ao beijo gay em público, sempre se encontra aqueles “machões carentes de auto-afirmação” que só conseguem sentir virilidade batendo em quem pensam ser menos viris que eles, o que, me permitam esclarecer, nem sempre é a verdade dos fatos…

A grosso modo, eu divido os homofóbicos masculinos em três classes: os enrustidos (engaiolados em uma orientação sexual que não quer se revelar por conta da pressão do meio social em que vivem, o que os leva a “exorcizar” seus demônios sexuais através da violência contra quem demonstra claramente sua orientação), os fanáticos religiosos (que seguem de modo cego e medieval uma interpretação bíblica não conectada à realidade do mundo moderno, propagada por sacerdotes hipócritas que chegam ao cúmulo de associar homossexualidade com pedofilia) e os misóginos (sim, os misóginos, aqueles homens que, mesmo sendo heterossexuais, tem “nojo” das mulheres, as consideram seres inferiores ao homem e sua propriedade meramente reprodutiva; então, associando a homossexualidade ao feminino, o asco contra gays é duplicado).

Quanto às mulheres, a homofobia é bem menor por conta do preconceito que elas mesmo sofreram por milênios (e, ainda sofrem) sob a tutela de seus “senhores”. Vejo aí a explicação para gays masculinos possuírem muito mais amigas que amigos. As mulheres entendem melhor quem sofre preconceito porque elas mesmas o sofrem em muitas circunstâncias e lugares, por mais que nossa sociedade tenha evoluído no tocante aos direitos femininos. Podemos, então, concluir que gays masculinos não são misóginos, não consideram a mulher como inferior a eles, mas como uma referência de beleza, força, coragem e devoção, ou um misto de tudo isso. Não há qualquer relação de submissão, de superioridade ou de inferioridade, entre um gay masculino e uma amiga mulher, seja ela heterossexual ou lésbica. Tanto que Oscar Wilde escreveu: “As mulheres existem para que as amemos, e não para que as compreendamos.” Amar é a suprema aceitação…, pois, para Wilde, “amar é ultrapassarmo-nos”.

Ao elencar esses tipos masculinos de homofóbicos, pessoas que conseguem em público até sorrir para gays, mas que em circunstâncias outras lhes desferem tapas, socos e pontapés, me recordo das palavras de Oscar Wilde em “De Profundis”: “Por detrás da alegria e do riso, pode haver um temperamento vulgar, duro e insensível. Mas, por detrás do sofrimento, há sempre sofrimento. Ao contrário do prazer, a dor não usa máscara.”
E, não usa mesmo! A dor é evidente, é feroz, se instala e não apresenta opções: ou você a enfrenta, ou a enfrenta. Não cabem máscaras nessa luta. Então, em geral, gays falam o que pensam sem dó nem piedade. A dor lhes ensinou a “encurtar o caminho para a salvação” (desculpem, mas não resisti!): a verdade, o discurso direto sem hipocrisia, o saber “se virar” para sobreviver, a coragem para dar a cara a tapa… Afinal, não dizem que “A Verdade vos libertará”? Se existe um Deus, Ele deve se agradar dessa autenticidade, não da hipocrisia dos religiosos que se consideram salvos e que se utilizam da mentira o tempo todo para impedir que tenhamos direitos reconhecidos.

O que pensar, por exemplo, de um senador (diga-se, Magno Malta – PR/ES, pastor evangélico) que maldosamente tenta vincular a homossexualidade à pedofilia? As estatísticas não mentem: a maior parte dos pedófilos são homens heterossexuais! Nada mais lógico, uma vez que os gays são só cerca de 10% das pessoas. Ao dizer que, se aprovado o Projeto de Lei 122 (PLC/122) que criminaliza a homofobia, um pedófilo poderia alegar que “sua orientação sexual é transar com crianças”, o senador demonstra total desconhecimento do Direito e despreparo ao lidar com direitos civis. Na verdade, o que existe é má intenção pura de natureza religiosa!

E, nós, como podemos fazer frente a noções bizarras e mal-intencionadas como a deste pastor-senador e símiles malafaias que se locupletam em seus templos não taxados pelo Brasil afora? Dentro da lei podemos protestar, e o “beijaço” é uma das formas mais interessantes. Usar o “beijo proibido” para tornar evidente “o amor que não ousa dizer o nome” é uma forma pacífica e eficaz de preencher a lacuna que a mídia insiste em deixar vazia.
Pessoas que confundem o beijo gay com promiscuidade demonstram uma ignorância tal que não merece resposta. A promiscuidade existe nas relações humanas, sejam heterossexuais, homossexuais ou bissexuais. Aliás, a quantidade de maridos heterossexuais com suas amantes, algo que está presente em 100% das novelas e séries brasileiras, é a prova de que a promiscuidade é um evento, por dizer assim, democratizado em nossa sociedade, uma espécie de vício social aceitável, qual o “beber moderadamente” ou “socialmente”.

As relações afetivas gays não duram menos que as heterossexuais, e já há pesquisas demonstrando isso. O problema é que a mídia só mostra dos gays a “banda podre” ou o “circo de micos amestrados”. Me refiro à prostituição, aos excessos e aos gays caricatos em programas de humor. Contudo, a prostituição é uma instituição heterossexual praticamente universal! Não foram os gays que a inventaram! E, nos gays caricatos, há um “realce” do comportamento efeminado e do humor que agrada a uns e desagrada a outros. Sem problemas, há espaço para todas as tribos! Mas, querer definir todo o universo gay por uma parcela, com vistas a denegrir o todo, é uma tática “que não é de Deus” (desculpem, não resisti novamente)!

Está chegando a hora do “amor que não ousa dizer o nome” dizê-lo em voz alta, com todas as letras e exigir seus direitos até a última linha da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Constituição Federal. Não seremos encarcerados como o foi Oscar Wilde, a não ser que moremos em algum país islâmico, onde até assassinados sumariamente podemos ser. Então, saiamos às ruas e vamos exigir nossos direitos sociais todos, sem exceção. Temos que evidenciar todo o nosso descontentamento à sociedade. Lembremos do que escreveu Wilde:

O descontentamento é o primeiro passo na evolução de um homem ou de uma nação.”