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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Sou gay... e muçulmano. Como faço?


Por Paulo Stekel


Quando pensamos em gays no mundo muçulmano, imediatamente nosso pensamento se volta para o Oriente. Esquecemos ou sequer nos damos conta de que há muçulmanos no Brasil, brasileiros natos, e muçulmanos.. e, alguns, com certeza, gays.

Esta semana fomos surpreendidos por uma mensagem postada no blogue do Movimento Espiritualidade Inclusiva exatamente por um gay muçulmano brasileiro que resolveu desabafar e compartilhar conosco suas dúvidas, seu sofrimento e suas perspectivas de vida. Prometemos responder-lhe através do presente artigo.

A mensagem deixada por ele, que assinou apenas como “Samir”:

Boa noite. Sou muçulmano e gostei muito do blog. Contudo, vocês são cristãos ou são um grupo ecumênico? Nada contra mas só queria saber mesmo.

Eu passo por alguns problemas; me desculpem se eu usar o blog para desabafar pois não tenho ninguém para conversar.

Sofro como muçulmano e como gay. Minha identidade muçulmana é forte, rezo, leio o sagrado Quran e faço todos os preceitos que pede a religião. Para muitos muslims (muçulmanos) ser gay é tabu ou pecado; apenas uma minoria é cabeça aberta, aceita ou tolera. Minha família é toda religiosa.

Mas também não me identifico com o mundo gay, quer dizer boates, bares e essas coisas. Primeiro, que bebida alcoólica é haraam (pecaminoso) no islam e eu não bebo pois faz mal à saúde também. O meio gay é marcado por caras que querem só sexo, tem uns que se drogam, é muito triste. Quando eu vejo tal situação, penso e reflito: "não quero isso para mim!" Gostaria de conhecer um cara que fosse gente boa e cabeça aberta mas que também gostasse de um companheirismo, mais que sexo e que tivesse valores com os quais acredito (pode ser muçulmano, cristão, judeu, etc). Mas não gosto da promiscuidade dos meios gays.

Desculpa se falei alguma coisa que você não concorde, só tô falando o que sinto e que não posso falar sem ser apedrejado por ambos os lados (muçulmanos e gays).

Ótima semana a vocês! Jazak Allah Khair!”

O tom respeitoso da mensagem mostra realmente que seu autor é um muçulmano praticante, como pode deduzir qualquer pessoa que tenha estudado um pouco desta religião com olhos sem preconceito ou rotulantes. A perspectiva de seu autor é uma perspectiva religiosa, mas também é a perspectiva de alguém cuja orientação é homossexual. O conflito é evidente.

Então, respondamos a nosso amigo (assim o consideramos) Samir:


Prezado Samir.

Não somos um grupo cristão nem mesmo ecumênico, mas um movimento social laico que busca a inclusão dos LGBT no meio religioso e o confrontamento do preconceito homofóbico.

Você não só pode utilizar nosso blogue para desabafar como deve fazê-lo. Nossa função enquanto Movimento é exatamente dar apoio a todos os LGBT em situação de conflito por sua orientação sexual no tocante à dimensão religiosa. E, é o seu caso. Você é gay, e vai continuar a sê-lo; é muçulmano, e deseja continuar sendo. Tudo bem. Apoiamos integralmente sua aspiração. Contudo, você deve ter a noção do quanto poderá ser – e, provavelmente, será – difícil conciliar ambas as coisas numa base sem conflito. O conflito existirá e, à medida que a afirmação de sua identidade sexual for crescendo, crescerá também o risco do preconceito, do isolamento e da homofobia. Sinto não poder dizer palavras diferentes, mas nosso Brasil é homofóbico, sim, e o meio religioso é o que mais tem fomentado este vil preconceito.

Você diz sofrer duas vezes: como muçulmano e como gay. Entendemos. Como muçulmano, você sofre o preconceito a que se chama Islamofobia, aquele que vê em cada membro de sua religião um homem-bomba em potencial. Como gay, você sofre o preconceito da Homofobia, aquele que vê um ser humano como bom ou mau conforme sua orientação sexual. Então, uns o vêem como um “terrorista”, outros o vêem como um “pervertido”. O que isso evidencia? Evidencia o fato de que o ser humano é naturalmente preconceituoso. Sua causa é sempre o medo do diferente, do ameaçador, daquilo que não se pode rotular, nomear, enquadrar, conter... Mas, invariavelmente, o medo nos impede de conhecer verdadeiramente as pessoas, seu íntimo, sua essência. No final das contas, o medo que gera o preconceito nos impede de ver, de descobrir a Verdade, aquela mesma Verdade buscada por todas as religiões. Que paradoxo, não é mesmo? A Verdade liberta porque elimina o medo, é como entendemos este ditado bíblico. Eliminando o medo, ela nos permite a felicidade. E, em algum momento, você vai ter que vencer o medo, confrontar-se com a sua Verdade, e abrir-se para o mundo, pois só na auto-expressão diante do mundo, no compartilhamento de nossa essência com os demais, é que a felicidade plena se apresenta. No isolamento ela se esconde...

Você diz não se identificar com o “mundo gay”. Mas, não há um “mundo gay”! Há gays em todos os lugares, religiões, partidos políticos e profissões. Os gays da boate, dos bares ou das saunas são apenas uma parcela deles. Se isso não lhe agrada, tudo bem, você não precisa se aproximar destes lugares. Você é um ser livre. Ninguém vai arrastá-lo para onde seu coração não queira. Apenas, não confunda alguns lugares onde se encontram gays como sendo os lugares de todos os gays. Não confunda o comportamento de alguns gays com o comportamento de todos os gays. A condição homossexual não é cultural ou meramente comportamental. É visceral. E, sendo assim, há gays em todos os lugares e situações onde se pode encontrar não-gays: há os religiosos, os ateus, os agnósticos, os prostitutos, os tarados, os assexuados, os drogaditos, os boêmios, os abstêmios, os “pra casar”, os sem compromisso, os promíscuos, os monges, os devassos, os corruptos, os hipócritas e os santos... Encaixe-se onde preferir, ou se expresse de um modo peculiar e não-rotulável, se achar melhor. Mas, não se esconda, principalmente de si mesmo. Nenhum clérigo será mais responsável por sua vida e sua felicidade do que você mesmo, que é o único que sabe a real dor que sente. Nós, apenas, a podemos inferir.

Ficamos muito felizes em perceber que, ao manifestar seu desejo de ter um companheiro, o preconceito não tomou conta de sua mente, já que para você, ele poderia ser muçulmano, cristão, judeu, etc. Isso é grandioso! Significa que você não quer impôr nada a ninguém, nem converter, nem flagelar, mas quer apenas se expressar e permitir a expressão. Isso, em nossa opinião, é divino, se é que podemos usar o termo.

Podemos lhe dar uma boa notícia: com certeza, há outros como você, inclusive dentro da comunidade muçulmana brasileira. E, não devem ser poucos. E, estão na mesma situação que você, imaginamos. A única coisa que precisa acontecer é vocês se encontrarem de algum modo, saber da existência uns dos outros. Não há no Brasil (ainda) um movimento organizado de gays muçulmanos. Caberia aos gays da própria comunidade islâmica brasileira fazer com que este movimento viesse a existir. Quem se habilita?

Não tenha medo de ser apedrejado por ambos os lados – gays e muçulmanos –, pois ambos os lados possuem seus equívocos. Há gays que não aceitam a religião e criticam os gays religiosos. Achamos que há espaço para todos, ateus e teístas, religiosos, ateus e agnósticos. Da mesma forma, há religiosos que não aceitam gays e aqueles que são inclusivos ou, no mínimo, tolerante, o que não é a mesma coisa. Tudo depende de que tipo de pessoas nos aproximamos. Mas, mesmo que possamos escolher as pessoas que nos sejam mais favoráveis, ainda resta a família. E, a sua, pelo que nos relatou, é muito religiosa, o que significou nas entrelinhas que ela tem dificuldade em aceitar a orientação homossexual. Aí está a maior barreira a ser ultrapassada e, todos nós, gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros, já passamos ou ainda vamos passar pelo assumir-se em família. É como um rito de passagem, depois do qual nunca mais seremos os mesmos. Você deve preparar-se para isso, mais dia menos dia.

Poderíamos nos alongar mais, mas não achamos necessário. Nosso conselho final é que, se você pretende continuar sendo um muçulmano religioso, devoto e seguidor dos preceitos, ótimo. Mas, faça isso pensando em seus iguais, seus irmãos gays, e aproveite sua fé para entender sua religião e conciliar sua natureza homossexual com sua natureza religiosa, pois só dentro de você isso pode ser feito a contento. É como uma conversa privada com Deus, só você... e Ele. Sua Jihad maior. Se Ele não lhe condenar, não permita que os homens o condenem. Faça da luta contra o preconceito por orientação sexual dentro de sua religião sua própria Jihad menor, seu esforço, seu empenho, em Nome de Deus!

Nossa nobre aspiração é a de que este texto não inspire apenas ao Samir, mas a todos os muçulmanos no Brasil, e a todos os gays religiosos em conflito em todos os cantos de nosso imenso país.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Auto-aceitação - Sobre Guetos, Homofobia Internalizada, Heterossexualidade Presumida e o Sair do Armário


Por Paulo Stekel


Um dia, apoiamos a escravidão... Na Antiguidade, ela era socialmente aceita e os escravos eram de todas as raças, todos os povos, homens, mulheres e crianças. A Bíblia é tão conivente com a escravidão que possui inúmeras regras para o tratamento dos servos. Outros livros sagrados, como o Corão, seguiram a mesma linha. Quando nos damos conta de que há menos de 130 anos ainda havia escravos negros no Brasil, o mal-estar toma conta de nosso espírito...

Um dia, negamos às mulheres direitos mínimos... Desde a Antiguidade, as mulheres eram consideradas servas de seus maridos, propriedades deles, não tinham direito a voz, nem alma... Enfim, não tinham vida nem dignidade. Mais uma vez, a Bíblia e outros livros sagrados foram coniventes, perpetrando uma milenar misoginia religiosa que negou às mulheres a condição de seres humanos completos – algumas seitas indianas vixnuítas consideram a mulher um “meio ser”... Quando nos damos conta de que há menos de 100 anos as mulheres sequer podiam votar, nos envergonhamos...

Um dia, negamos aos gays, lésbicas, bissexuais e todos os “tipos” considerados “anormais”, “inadequados”, “pervertidos” ou “estranhos”, como os travestis e transexuais, qualquer liberdade (como antes, se negou aos escravos), qualquer dignidade e qualquer plenitude cidadã (como antes, se negou às mulheres)... Opa! Um dia? Não! Ainda se lhes nega muito disso, em maior ou menor grau, em todas as absolutas centenas de nações do mundo!

Os LGBT vivem, por conta desta negação de plenitude cidadã, em verdadeiros guetos sociais, à margem da liberdade de expressão, da alegria de viver, de trabalhar, de amar... Por conta do preconceito que todos SABEM que sofrerão, a homofobia internalizada se amplia e, cruel e paradoxalmente, muitos se fazem de algozes de seus iguais, amedrontados pela ideia de serem descobertos e, então, virarem a vítima da vez... Afinal, nos dias de hoje, quem não tem sua heterossexualidade presumida facilmente, é considerado um gay em potencial e, antes mesmo de qualquer confirmação, pode ver seu rosto estilhaçado por lâmpadas de neon, porretes e cusparadas indignadas de hipócritas fiscais do alheio...

Diante deste quadro, fica a pergunta crucial: Qual é a forma mais segura de sair do armário e de construir sua própria identidade sexual num mundo hipócrita que, ainda que não tolere manifestações abertas, vive uma sexualidade fora da própria norma que dita a todo o momento, como nós muito bem sabemos?

O grande problema da sociedade não são os atos, mas a revelação dos atos... Ao sair do armário, um gay sai do ato para sua revelação, e isso afronta a hipocrisia da sociedade. A prova disso é quando pastores evangélicos dizem que não são contra gays terem direitos, desde que façam seu sexo às escondidas, sem pleitearem visibilidade como um bloco em separado. Ou seja, pretendem que tudo continue ocorrendo, mas em segredo, hipocritamente, e sem dignidade... Ao exigir direitos, afrontamos a hipocrisia, o segredo e a inferioridade cidadã, onde não queremos nos encaixar, pois nascemos sob o mesmo sol... “Categorizações” não podem nos definir. Há os gays caricatos, os não-caricatos, os efeminados, os masculinizados, os assexuados, não importa. Por mais categorias que inventemos, elas nunca definirão a totalidade do que é ser LGBT! Mesmo a definição LGBT (e outras similares) é provisória e pode, um dia, quando discriminar um ser humano por sua orientação sexual for considerado abominável, vir a ser abolida. Mas, no momento, ela é útil e necessária. Mas, eu sei que eu não sou um LGBT(TTTXYZ...)! Eu sou simplesmente um SER HUMANO!

Também não sou homossexual, heterossexual ou bissexual, pois um ser humano não pode ser definido apenas por um aspecto de sua vida, o sexual. Há que diferenciar-se, por exemplo, as expressões “homossexualidade” e “homoafetividade”. Da mesma forma, seria adequado pensar-se em “heteroafetividade” mais que em “heterossexualidade”. Por que? Porque o que realmente determina a orientação sexual não é o gênero da outra pessoa com a qual se mantem relações sexuais, mas sim, existindo ou não o ato sexual, o gênero da outra pessoa pela qual se desenvolve um afeto mais profundo, o qual pode incluir aspectos sexuais. Em prisões, por exemplo, relações homossexuais são comuns, o que não significa que os envolvidos sejam gays. Na verdade, nestas situações, os envolvidos se dão a atos homossexuais, mas não estão orientados homoafetivamente. Ao contrário, um homem casado com uma mulher apenas para conformar-se às regras heteronormativas, mas que nutre uma afetividade toda orientada para indivíduos do mesmo sexo, uma homoafetividade que ele sufoca para que não chegue às vias de fato, é, indubitavelmente, gay. Uma pessoa que vivencia tal conflito pode facilmente cair na tendência da heterossexualidade presumida e agir violentamente contra gays por conta de sua homofobia internalizada.

A grande questão é: se o preconceito geral da sociedade heteronormativa com o diferente fosse menor ou inexistente, será que as coisas seriam melhores para quem padece de angústias e conflitos por causa de sua orientação sexual?

Ainda que cada caso seja um caso e nenhum ser humano vivencie sua sexualidade de forma igual a outro, creio que as coisas seriam melhores, sim. Afinal, se a aceitação fosse maior, o ambiente social seria mais amistoso aos gays e isso teria consequências diretas em sua saúde psicológica. Se gays pudessem se assumir sem constrangimentos; se não perdessem seus empregos por se assumirem; se pudessem se comportar como casais em público do mesmo modo que heterossexuais; se pudessem adotar crianças passando pelos mesmos critérios de habilitação de heterossexuais; se tivessem direito à união civil (popularmente chamada “casamento gay”) como qualquer casal não-gay; se tivessem seus direitos à integridade física, moral e psicológica garantidos quando são agredidos por serem gays; se pudessem tudo isso, então todo o sofrimento por serem “diferentes” da norma diminuiria.

Mas, antes de tudo, a auto-aceitação... Devemos aceitar ser quem somos, por mais que tenhamos dificuldade em colocar-nos dentro de uma categoria qualquer, pois, se não nos aceitarmos, o preconceito começará a partir de dentro de nós mesmos e contaminará o nosso entorno, voltando como o preconceito velado ou explícito que vemos todos os dias. Conhecer-se a si mesmo, aceitar-se como se é e agir sem medo são os passos-chave para a conquista da dignidade.

Ao manifestar o desejo de escrever este artigo, ainda no ano passado, pedi que alguns amigos da comunidade LGBT enviassem depoimentos sobre sua auto-aceitação e o sair do armário. Escolhi trechos de quatro deles para embasar os argumentos a seguir, mesclados com o meu próprio depoimento ao longo dos demais.

Depoimento 1: Maurilio

Desde pequenino eu já sentia uma atração por meninos, quando brincava com meus primos e amiguinhos da escola. (…) queria ficar perto dos meninos. Mas, como eu via meus pais falarem mal dos gays e lésbicas, eu sempre tive medo de ser um também. (…) Até que decidi entrar na Igreja pra ver se isso era coisa do demônio. (…) Fui durante 3 anos coroinha, e nada adiantou. Continuei sendo gay, mas não me assumia pra ninguém. Tinha medo de ser expulso de casa. (...) Tinha uns 9 anos e já era mais ou menos a ovelha negra da família, porque eu era bem afeminado (…) E, era uma coisa tão normal pra mim! Meus pais brigavam comigo por eu ser assim, mas eles também acreditavam que aquilo era coisa de criança e uma fase que iria passar. (…) Numa cidadezinha do Pernambuco onde nasci não tinha muitos gays ou pessoas assim. Quando um se assumia era uma coisa bombástica. A cidade inteira ficava comentando.

(…) Meu pai decidiu vir morar em São Paulo pra ver se amenizava os comentários sobre mim, e também pra tentar uma vida melhor. (…) Chegando aqui em São Paulo meu pai me falou que não era pra mim ficar andando com viado nem fazer amizade com essa gente, senão os bandidos iriam me matar. Eu, com muito medo, nem saía de casa. Mas, resolvi me assumir pros meus pais. (…) Meu pai logo falou: 'Vixe Maria! Vai pro inferno! Não quero isso aqui na minha casa, não!' Minha mãe, muito passiva, falou que não poderia fazer nada, pois ele sustentava a família. (…) Ele não me colocou pra fora de casa ainda, mas parou de falar comigo e de vez em quando soltava um 'patada', me esculachava, e isso ia doendo muito. Me sentia tão mal... Mas, tinha que continuar ali na casa dele, porque era o único lugar que eu tinha pra ficar.

Passaram-se umas duas semanas e a família começou a me criticar, a ir na minha casa só pra falar mal de mim pro meu pais, colocar mais lenha na fogueira. Desse dia em diante meu pai e meu irmão mais velho de 19 anos começaram a me bater todos os dias. Um olhar pro meu pai ou irmão já era motivo de briga. (…) Eu apanhava feito um saco de pancadas. Meu pai me batia com pau, jogava pedra, cinto, chinelo, fios de energia, enfim, tudo o que via pela frente. Me batia pra ver se eu virava homem. Mas, não teve jeito, continuei o mesmo. Daí, ele resolveu me colocar pra fora de casa. Dormi por várias vezes na rua. (…) Até que minha mãe mandou eu voltar pra casa novamente... Voltei pra casa.

Em uma balada na zona leste conheci um cara que me encantou, que me deu carinho, atenção, amor, sei lá. Foi uma coisa muito boa. Ele me tratou muito bem, fez as coisas que ninguém nunca tinha feito por mim. Então, começamos a namorar. Passaram-se uns 2 meses e resolvi contar pra minha mãe sobre o namoro com esse cara. (…) Mais uma vez meu pai, ao saber que eu estava namorando um homem, me colocou pra fora de casa e queimou minhas roupas. Não aguentei e fui morar com esse cara que estou até hoje, que me fez ver que eu nasci assim, que me ama do jeito que eu sou, que me disse que homossexualidade não é coisa do demônio, que eu também sou filho de Deus e sou digno de amor e carinho.

Desde então, ele tem me ajudado muito, e minha auto-aceitação começa daqui. Hoje eu bato no peito e tenho orgulho de dizer 'Eu sou gay'. (…) Hoje eu sou uma pessoa muito feliz e aliviado, pois sou assumido. Eu amo ser gay e, se fosse pra escolher, eu nasceria gay de novo!”

Comentário: O que aconteceu na vida de Maurilio tem acontecido na vida de centenas, milhares de gays pelo Brasil afora. Aqui no RS, onde moro, conheço vários casos de jovens postos para fora de casa ao assumirem sua homossexualidade. Homossexualidade, aliás, já percebida pela família e, enquanto escondida, tolerada, mas assim que expressada abertamente, odiada ao extremo. Meu histórico não é violento com o deste rapaz do Nordeste, mas passei por situações de preconceito sutil de parte do meu pai na infância e início da adolescência. A diferença é que comecei a trabalhar cedo, a me sustentar, e aos 17 anos já morava sozinho. A partir de então, pela filosofia de meu pai, ao sustentar-me, não lhe devia mais qualquer tipo de satisfação de minha vida, de modo que nunca foi “necessário” assumir-me para ele. Ele nunca foi um moralista – nem o poderia, com tantas mulheres que teve além de minha mãe – e disso aproveitei-me para evitar ali qualquer conflito desnecessário. Construí minha identidade a partir de minhas próprias experiências, de minha observação da vida e dos seres humanos, de minha espiritualidade e, principalmente, dos desejos, sentimentos e sensações mais íntimos, e isso tudo sem sentimento de culpa, sem hipocrisias, sem autoflagelação... Mas, sei que com muitos outros é diferente. Gays que sofrem mais preconceito saem da escola sem completar o estudo fundamental, possuem baixa auto-estima, vivem em subempregos, são presas da prostituição, das DSTs e das drogas, e raramente conseguem vislumbrar um futuro digno. Escapar a este quadro é realmente uma dádiva...

Depoimento 2: André

Tenho 35 anos, e me descobri gay desde criança. Com 04 anos de idade me lembro de sentir atração por um vizinho da mesma idade. Eu inventava brincadeiras com ele só pra ficar ao seu lado e tentava beijá-lo. Até que um dia fui surpreendido pela mãe do garoto que me recriminou, e fiquei um longo tempo com esse sentimento de que estava fazendo algo de errado.

Por volta dos 13 anos de idade, esse sentimento homossexual ressurgiu em um momento em que fui assediado por um conhecido de minha mãe. (…) A partir de então, percebi que eu não sentia atração pelo sexo feminino e comecei a ler sobre o assunto e a comprar clandestinamente revistas de temática gay pra me entender melhor. Também fui identificando entre meus amigos os que tinham a minha preferência sexual, e foram muitos.

A minha aceitação veio naturalmente, mas eu tinha vergonha de me assumir gay perante a família e alguns amigos. Só com 25 anos, quando conheci meu atual companheiro, foi que assumi minha sexualidade perante todos. O amor entre nós é muito forte até hoje, e foi o que me fez tomar coragem diante do preconceito dos outros. Sofri preconceito velado de minha mãe e escancarado do meu irmão.

Mas, ainda assim, persisti na minha condição e enfrentei tudo em nome do meu amor. Não me arrependi em nenhum momento, e conheci pessoas durante essa jornada que me encorajaram a tomar essa decisão.”

Comentário: Este depoimento tem algo em comum com meu histórico, pois também me assumi para os demais apenas com 25 anos. Mas, a primeira vez que senti atração inegável por alguém do mesmo sexo, tinha 19 anos. Digo isso, porque tivera outras experiências na adolescência, por volta dos 13 ou 14 anos e até antes, mas estavam mais relacionadas a curiosidades de meninos do que a sentimentos mais profundos ou orientação sexual. Mesmo porque meus dois irmãos tiveram as mesmas experiências e nenhum deles é gay. Contudo, aos 19 anos, ao ver um amigo seminu, a sensação que tive não me deixou mais dúvidas: os homens me atraíam mais que as mulheres. Mesmo assim, casei-me com uma mulher aos 26 anos, mas a experiência durou somente um ano e meio. Ela tivera relações com uma menina mais velha quando era pré-adolescente, e isso serviu para que tivesse certeza de que lhe interessavam os homens, e não as mulheres. Mas, era uma pessoa sem preconceitos, o que facilitou bastante o processo de separação, de modo que somos amigos até hoje.

Depoimento 3: Daniel

Meu nome é Daniel, tenho 21 anos, e moro com meus pais em Canoas – RS. Me assumi ao completar 18 anos, exatamente no dia do meu aniversário, com a intenção de que fosse algo que eu jamais esquecesse. Foi mais ou menos assim: eu e minha mãe terminamos de almoçar, sentei
junto a ela que estava a ainda na mesa, e disse: 'Mãe, quero lhe dizer uma coisa!' Ela, sem entender, disse: 'Fala!' Eu, engasgado: '...Eu não sou hétero...' (usei um termo que me senti aliviado em falar, sabendo que ela não entendera claramente) 'Eu sou bissexual... Fico com homem e com mulher.' Nesse momento de extremo nervosismo me senti largando uma pedra que eu carregava todos os dias. Ela se manteve calada, depois disse: 'Tu vais continuar sendo meu filho... Eu te amo...'

Eu pensei que não tinha sido tão ruim assim, mas foi apenas o começo de um longo tempo de luta por respeito e direito pelo qual eu luto até hoje. Pois, no decorrer dos dias, respirar era motivo de briga e discussão, e isso praticamente durou uns 7 meses ou mais! Neste mês completa 3 anos que me assumi para minha mãe, que ainda diz NÃO ACEITAR, mas respeita. E, é algo que eu trabalho todos os dias com ela, o respeito.”

Comentário: Os jovens gays estão se assumindo para a família cada vez mais cedo. Em minha época – eu já tenho 42 anos, gente! – os gays se assumiam lá pelos 25 ou 30 anos. Agora, alguns estão se assumindo aos 15 ou 16 anos, como já vi diversas vezes. Isso reflete a precocidade geral da sociedade. Os adolescentes – héteros ou gays – começam a namorar cada vez mais novos. É natural, portanto, que venham a se assumir precocemente. E, isso é bom? Creio que sim. Isso inicia o processo de auto-aceitação mais cedo também. Quanto mais pessoas de bem com sua sexualidade tivermos, mais “almas” ganhamos para a aceitação da diversidade sexual, se é que me entendem. Quando contei para minha mãe, ela disse já saber sobre minha sexualidade e, num primeiro momento, isso não acarretou problema algum. Mas, à medida que ela foi se tornando evangélica, o preconceito começou a minar sua mente, mas ela manteve seus pensamentos medievais em segredo. Quando um de meus irmãos morreu, a verdade veio à tona: Malafaia a havia contaminado com seu discurso fétido e diabólico! Apenas uma “terapia de choque” poderia corrigir isso. Por sorte, o restante da família materna não padece de homofobia, de modo que esse pessoal foi o responsável pela “terapia” da qual ela necessitava para sair da Idade Média e acordar no Século XXI... No momento, está sob observação...

Depoimento 4: Walter

Aconteceu quando tinha oito anos; estava ficando escuro e eu no meio daquelas crianças na rua. Um menino da minha idade se aproximou e segurou a minha mão. Foi um gesto de afeto espontâneo e natural entre crianças e foi também o momento em que eu senti uma onda de calor, aconchego e amor incomparáveis; aquilo foi mais gostoso que o toque da minha mãe, mais gostoso que chocolate e iogurte de morango, mais gostoso que o toque das meninas. Ele apertou suavemente minha mão na dele; e segurou transmitindo máscula sensação de proteção.

(…) Não houve, portanto, um trauma, um abuso ou a ausência de algo e de alguém; eu tive pai, dois irmãos, mãe, tios, primos, tias, avós, inúmeros modelos masculinos e possibilidades de integração e identificação heterossexual.

Entretanto, naquela época eu não sabia nada sobre homossexualidade; nordestino, criado em famílias de antigas linhagens patriarcais e católicas, morando em um município onde a televisão a cores era novidade das casas mais abastadas, eu só vi homossexuais em programas de humor, e
entendia mais ou menos que aquele personagem era um tipo de bufão ou palhaço de circo.

Foi a religião que me apresentou a primeira definição de homossexualidade; infelizmente para mim a definição distorcida. Lembro bem que as palavras da Bíblia 'de fora estarão os afeminados e os homens que se deitam com homens' me deixou viva e dolorosa impressão na alma. Eu ia para o inferno e nem sabia exatamente por que.

E lembro-me do terror de ter de esconder dos meus pais que eu era um criminoso igual a um assassino; um viado, um proscrito e alguém sem honra e sem lugar em parte alguma. A sensação de não pertencer a nada sempre recorrente; eu não era mulher e, portanto, não podia sentir atração por homens. Por outro lado, eu não era homem, porque não sentia atração por mulher.

Percorri então a minha Via Crucis; aos doze anos já tinha sinais de depressão, aos dezesseis pensava seriamente em me matar. Deixei a escola, parei de tomar banho, me tranquei dentro de casa. Chorava horas a fio no quarto ou chorava no quintal, entre as árvores e o jardim. Meus pais primeiro se zangaram depois se alarmaram depois se acostumaram.

Não tive coragem de contar sobre minha homossexualidade nem para a psicóloga que eles me arrumaram; não confiava a ninguém aquele segredo monstruoso. Eu tinha vergonha de mim, e tinha nojo. E queria ser igual aos outros garotos.

Foi a psicóloga, porém, que me ajudou inadvertidamente; às vezes ela me dava algumas revistas e livros para ler e numa dessas revistas eu vi uma matéria sobre homossexualidade. O singelo artigo me pareceu extraordinário e me atingiu de forma impactante e inesquecível; dizia que sentir atração pelo mesmo sexo não era doença, nem algo negativo, que homossexuais eram pessoas comuns e que não existia tratamento porque não havia o que curar.

Fui buscar mais informações sobre o assunto; nesse período um boato sobre um ídolo da televisão e dos cinemas, Keanu Reeves, me deixou boquiaberto. Keanu era homossexual e eu queria ser igual a ele.

Lentamente, pois, mais de modo constante, outras salvíticas histórias chegaram até mim viajando através de livros, revistas, seriados e filmes, e no geral pintando uma imagem simpática dos homossexuais, diferentemente dos anos anteriores.

Um sopro de esperança começou a me curar e de dentro da escuridão e desespero da ausência de identidade, eu nasci de novo; uma gestação demorada no ventre dos meus sonhos homoeróticos.

Primeiro surgiu a aspiração cândida do romance com alguém do mesmo sexo; depois o desejo sexual aflorou sem culpa e eu tive meu primeiro orgasmo desprovido de arrependimento. Eu suspirei de alívio; eu era normal, saudável, bonito, estava no lugar certo, eu pertencia a algo.

Decidi então contar para as pessoas que eu era gay. Foi a coisa mais difícil que já fiz, mas depois de fazê-la, abri uma porta que nunca mais se fechou; eu me tornei outro homem, eu pisei firme no
chão, eu ergui os olhos para encarar as pessoas, eu me tornei senhor de mim mesmo, eu digo quem eu sou, as cartas são minhas, ganhando ou perdendo.

Estou recuperando quase tudo que a homofobia cultural, institucional e individual me roubou na vida; há ocasiões em que parece que várias etapas do caminho se cruzam e se confundem por causa do tempo perdido. Sou homem adulto, e também sou menino.

O arrependimento é inútil para mim agora; só me serve o que tenho e o que eu sou neste momento. E o que eu tenho é orgulho, e o que sou é um homem gay."

Comentário: Ah, como este depoimento inspira! Walter Silva – sim, ele não só permitiu, como fez questão da revelação de seu nome – tem, em minha opinião, um dos melhores textos sobre orientação sexual no Brasil. Ele, paraibano, eu, gaúcho, temos em Keanu Reeves um mesmo referencial – também tenho um referencial no falecido River Phoenix, colega de Reeves no filme “Garotos de Programa” (My Own Private Idaho), de 1991. Foi conversando sobre Reeves e Phoenix, este último encontrado morto em 1993 e apenas dois dias mais velho que eu (Phoenix nasceu em 23 de agosto de 1970, e eu no dia 25 de agosto do mesmo ano), que em 1993 iniciou-se meu processo de sair do armário. O objeto de meu amor naquela época também estava a descobrir-se, mas, infelizmente, até sua morte trágica em um acidente de carro, em 2011, não conseguira escancarar o armário... Mas, ensinou-me muito sobre o que é amar alguém do mesmo sexo sem sequer dizer uma palavra sobre o assunto e sem convencionar rótulos... e sem consumar fisicamente este amor... A ausência de tudo isso não conseguia abafar a realidade que ali se percebia... e que as almas entendiam em seus próprios termos... Ele, não conseguia se imaginar assumindo algo que já estava muito claro. Eu, não conseguia imaginar criar um gueto para algo que queria compartilhar com o mundo. Venceu, no mundo relativo, a homofobia paterna. No mundo absoluto, reinou o amor, gritando aos corações que nem a morte pode abafá-lo... O amor é como o elétron, segundo a Física Quântica: deixa marcas eternas por onde passa... Hoje, tais marcas me servem muito bem e as transformei em pilares de sabedoria, compaixão e sinceridade para comigo mesmo.

Então, agora posso dizer: Sou gay e não tenho vergonha de assumir isso para ninguém. E, você, tem coragem de assumir isso também? Ou se mantém num gueto social, simulando uma heterossexualidade que não convence a ninguém? Ou prefere ceder à homofobia internalizada, um modo grosseiro e falho de abafar em si o que vê manifestado em outros? Ou prefere deixar o armário trancafiado a sete chaves, seguindo pela vida infeliz, sem dignidade, sem poder expressar-se em plenitude e, pior de tudo, sem poder amar com toda a sua alma? Desculpe, mas amor e alma são sinônimos. Se você não consegue expressar um, não possui o outro. É um “carma” que impõe a si mesmo, mas que ninguém lhe imputou. Incomoda-lhe a auto-afirmação dos demais? Seja corajoso como eles, então! Afinal, ao incomodar-se com a auto-aceitação alheia, algo lhe atingiu indelevelmente. Você é quem deve decidir se isso será libertador ou uma prisão...

Sair do armário, assumir-se, deve ser produto de muita elaboração mas, principalmente, de um estado de sinceridade tal consigo mesmo que todos os sentimentos, sensações e desejos sejam devidamente expressados, sem obscurecimentos moralistas, escapistas ou enganosos. Não se trata de escolher uma sigla para sua sexualidade, ou algum modelo didático daqueles defendidos por organizações pró-LGBT, mas antes, de saber o que nos atrai de fato. Não há limitações no amor. Ele não depende de siglas. O amor não é uma regra moral, nem mesmo ética. É alma, é vida e mantenedor de vida. Ele deve melhorar nossa auto-estima, não rebaixá-la. Converse com as pessoas na base do amor mais profundo, e seu ativismo será extremamente perigoso para a homofobia reinante, abrindo horizontes, libertando escravos e permitindo gozos... Abaixo a clandestinidade, viva a revelação! Quem deve se acostumar com sua essência são os outros; a você, cabe expressá-la e ser feliz!


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

[Internacional] Para o gay muçulmano, o armário possui sete chaves

Por Miguel Ángel Medina (Traduzido por Espiritualidade Inclusiva do jornal espanhol El País cfe. http://sociedad.elpais.com/sociedad/2012/02/27/actualidad/1330310577_794728.html)

(Um casal homossexual em uma cidade do Marrocos / I. C. )

A homossexualidade continua sendo tabu no mundo islâmico
Muitos se rebelam, em especial na Europa


A homossexualidade é um tema tabu na maioria dos países de tradição islâmica: os vizinhos Argélia ou Marrocos, por exemplo, tipificam como delito os “atos homossexuais” e os cinco Estados que condenam os gays à morte são muçulmanos. Na Espanha, onde a maior parte desta comunidade está formada por imigrantes de primeira ou segunda geração, estes preconceitos continuam existindo e, em muitos casos, levam estas pessoas a negar sua identidade sexual ou ocultá-la de suas famílias. Mas, as vozes que reivindicam a compatibilidade entre o Alcorão e a realidade homossexual também começam a se fazer ouvir.

“Quando sabemos que alguém é gay o rejeitamos e paramos de falar com ele”, admite o marroquino Achraf el Hadri, de 27 anos e residente em Madri. A presidenta da União de Mulheres Muçulmanas da Espanha (UMME), Laure Rodríguez, vai mais além: “Existe uma lesbofobia e uma homofobia generalizada dentro das comunidades muçulmanas em nosso país”. “As escolas de jurisprudência islâmica sempre consideram a sodomia como algo proibido”, confirma Abdennur Prado, presidente da Junta Islâmica Catalã (JIC).

Neste contexto, os muçulmanos que planejam o que popularmente se chama sair do armário muitas vezes enfrentam um processo muito complexo. Como explica Manuel Ródenas, coautor do “Estudo sociológico e jurídico sobre homossexualidade e mundo islâmico” (Cogam, 2007): “A característica fundamental dos homossexuais muçulmanos é que vivem em dois mundos muito diferentes: por um lado, suas famílias, que não sabem de nada, e, por outro, com os amigos. São redes que jamais se tocam nem se misturam”. Lola Martín, coautora do estudo, considera que estas pessoas vivem em um “armário duplo” e destaca que alguns deles, inclusive, tratam de ocultar que procedem de países árabes.

A presidenta da UMME está realizando um estudo entre mulheres muçulmanas que vivem na Espanha, com as quais tem contato através das redes sociais. “O ponto em comum de todas as lésbicas que entrevistei é um processo longo, traumático e doloroso para decidirem-se entre sua religiosidade, sua sexualidade ou tentar viver de forma equilibrada”, conta Rodríguez, que já falou com umas 20 delas.

Esta trabalhadora social de 36 anos critica que em vários casos, quando alguma destas mulheres se atreveu a dar o passo e solicitar informação em qualquer associação LGBT, “a primeira mensagem que recebeu dizia que, para ser liberada, teria que abandonar sua crença”. Desde o Coletivo de Lésbicas, Gays, Transsexuais e Bissexuais de Madri (COGAM), negam que suas organizações ajam assim: “Acreditamos na liberdade do indivíduo”, respondem, “e não fazemos diferenciação por causa de religião”.

Shiraz (nome fictício) ilustra como este ambiente pode afetar uma mulher procedente de um país árabe, seja muçulmana ou não. No seu caso, chegou à Espanha há 17 anos e, naquele momento, não se considerava uma pessoa homossexual. “Desde jovem eu gostava de mulheres, mas ao viver na Tunísia, onde não tinha referências, não sabia o que me acontecia e tinha muitas dúvidas”, confessa. “No meu país gostava muito de uma professora, mas eu atribuía isso à admiração”, continua, “e até que emigrei, na verdade, não comecei a assimilar”.

Esta mulher, na casa dos 50 anos, tem o prazer de ter experimentado o processo de assumir sua lesbianidade na Espanha. “Na Tunísia teria padecido um calvário ou teria escondido”, assinala. Na verdade, ninguém de sua família —que vive naquele país— sabe nada sobre sua condição sexual, apesar de serem “muito abertos” para os padrões daquele lugar. “Ali, muitos homossexuais têm uma vida dupla, e alguns até chegam a contrair um matrimônio tradicional para escondê-la”. A tunisiana comenta que nunca se considerou uma pessoa religiosa. “Mas, a educação que lhe dão desde criança influi, e há coisas que lhe escapam mesmo sem se dar conta”, admite.

Ajudaria a mudar esta situação uma organização LGBT especificamente muçulmana? Na França, onde há imigrantes de terceira e quarta geração, a associação Homossexuais Muçulmanos da França (HM2F) tem lutado desde 2010 pelos direitos deste grupo. “Não temos que deixar de ser muçulmanos por sermos homossexuais”, explica seu fundador, Ludovic L. Mohamed Zahed, de 34 anos. Sua ação é centrada em trabalhar por um islã inclusivo no qual esta comunidade tenha lugar e em demonstrar que excluir da sociedade as mulheres ou os gays “não é islâmico”. Demonstram isso através do Alcorão, o livro sagrado do islã, e dos Hadith, a tradição oral sobre a vida do Profeta.

Para debater sobre estes assuntos, Zahed organizou um congresso europeu, chamado Calem, que celebrou sua segunda edição reunindo 250 pessoas em dezembro passado em Bruxelas (Bélgica), e cujas conclusões tem apresentado em conferências em Paris, Lisboa e Madri. O fundador da HM2F já prepara o terceiro Calem, que pretende levar também à Itália, Suíça e Luxemburgo.

Mas, na Espanha não existe una organização similar, segundo confirma a Federação Estatal de Lésbicas, Gays, Transsexuais e Bissexuais (Felglt). “Há alguns muçulmanos em associações LGBT e outros vinculados às organizações muçulmanas mais abertas”, conforme nota da Federação. O mais parecido é o grupo KifKif (“como iguais”, em árabe), que trabalha pelos direitos dos gays no Marrocos, mas também pelos dos que cruzam o Estreito [de Gibraltar]. “Nosso âmbito de atuação é fundamentalmente o país vizinho, mas tivemos que nos registrar como associação na Espanha porque lá a homossexualidade é considerada como delito”, explica Samir Bargachi.

A história deste marroquino de 24 anos é tão complexa quanto a de outros imigrantes que decidiram sair do armário ao emigrar: confessar sua condição sexual supõe que parte de sua família e muitos de seus amigos tenham deixado de lhe falar.

No entanto, Bargachi, que vive na Espanha há 12 anos, não se conformou que as coisas sejam sempre assim. Por isso, iniciou uma associação para defender os direitos dos homossexuais árabes. “Nosso trabalho na KifKif está focado principalmente na comunidade do magrebe e de outros países árabes, mas não nos consideramos uma associação muçulmana, mas leiga”, afirma Bargachi. “Na Espanha, temos um grupo de apoio da comunidade marroquina formado por umas 10 pessoas, mas nosso trabalho está centrado no Marrocos”.

Em sua opinião, “a comunidade muçulmana na Espanha ainda é homofóbica”, porque está formada, na sua maior parte, por imigrantes de primeira ou segunda geração. “Meus pais, por exemplo, não estão totalmente integrados, apesar de já viverem aqui há muito tempo”, acrescenta. Com seu trabalho, o marroquino pretende sensibilizar este grupo, assim como abrir o debate sobre a homossexualidade no Marrocos. Lá, este jovem criou a revista Mithly, a primeira que fala destes temas naquele país, e em língua árabe. Foram editados quatro números impressos e, atualmente, continuam sendo publicados na Internet.

As vozes contra a homofobia surgem de dentro do próprio islã espanhol. “Não há qualquer base que justifique a perseguição dos homossexuais no Alcorão”, afirma, taxativo, Abdennur Prado, que dedicou a este tema um capítulo de seu livro “O Islã antes do Islã” (Oozebap, 2008). Para Prado, aqueles que afirmam que a homossexualidade está proibida por esta tradição estão equivocados: “O hadith a que se referem fala dos seguidores de Ló, o mesmo episódio que na Bíblia concentra-se em Sodoma e Gomorra. Mas, lendo com atenção, se comprova que não fala de relações homossexuais, mas da violação de estrangeiros e do desrespeito à leis da hospitalidade”, afirma Prado, de 44 anos.

O presidente da Junta Islâmica Catalã, que participou do congresso em Bruxelas, defende que, segundo a tradição oral sobre a vida do profeta, nos tempos de Maomé existiam homossexuais, que se chamavam muhandazun e a quem o enviado de Alá sempre defendeu. Prado destaca, além disso, que, no mundo islâmico, há muitos exemplos de poesia e literatura homoerótica, isto é, erótica e de temática homossexual, uma tradição que decaiu com a chegada do colonialismo europeu aos países árabes.

O desafio, agora, é que o debate seja ampliado. E, parece que os primeiros passos poderiam ser dados em breve. “No futuro, sou favorável a que haja um debate sobre a homossexualidade nas comunidades muçulmanas da Espanha”, comenta Mohamed Hamed Alí, presidente da Federação Espanhola de Entidades Religiosas Islâmicas, que agrupa mais de 100 associações em toda a Espanha. “É uma questão que está aí e ninguém pode negar, ainda que possamos não estar de acordo em algo, mas sempre dentro dos parâmetros da democracia e da Constituição espanhola”, confirma Alí, de 58 anos. Prado ressalta: “O Alcorão diz que Deus está sempre com os perseguidos, e tenho claríssimo que é assim, que os crimes que estão sendo cometidos contra os homossexuais e as lésbicas são aberrantes. É para mim um dever religioso como muçulmano lutar contra essa injustiça”.

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“Parte de minha família deixou de falar comigo ao dizer-lhes que sou gay”

O marroquino Samir Bargachi (Nador, 1987), que vive na Espanha há 12 anos, fundou a associação Kifkif para defender os direitos dos gays no Marrocos.

Pergunta. Como você assumiu que era homossexual?

Resposta. O processo para assumir minha homossexualidade foi muito complicado, porque venho de um espaço cultural, Marrocos, onde a sexualidade não é tratada em público. Quando me dei conta do que sentia estava totalmente desinformado, não sabia o que me acontecia e nem sequer punha um nome ao que me passava. Meu caminho para chegar a esta conclusão se iniciou no meu país natal e continuou depois na Espanha, onde fui morar com minha família em 2000. E, na verdade, não pude contá-lo até que saí de casa. Mais adiante, quando passei a viver fora da casa de meus pais, então pude agir com mais liberdade.

P. Perdeu amigos por dizer que é gay?

R. Confessar minha condição sexual me custou muitas amizades e uma parte de minha família deixou de falar comigo.

P. Qual foi a reação de sua família naquele momento?

R. A princípio, decidi não contar a meus familiares, porque a maioria deles são conservadores e religiosos. Na verdade, temia mesmo que me expulsassem de casa se o confessasse; isto é, tinha alguns medo concretos e reais. Quando minha família soube, minha mãe entendeu, mais ou menos, e continuo tendo uma boa relação com ela e com minhas irmãs. Já meu pai, pelo contrário, foi muito afetado e perdi o contato com ele.

P. Conhece casos similares?

R. Sim, este padrão se repete com outros amigos árabes e muçulmanos, a quem ocorreu o mesmo; isto é, suas mães entendem, seus irmãos homens, menos, e seu pai, nada.

P. A comunidade muçulmana na Espanha é homofóbica?

R. Totalmente. Na Espanha, a imigração muçulmana ainda é uma imigração recente, de primeira ou, quando muito, de segunda geração, e por isso seu código cultural vem destes países. É muito diferente do caso da França ou Reino Unido, onde já vão para uma terceira ou quarta geração e, portanto, há muito mais integração que aqui.

P. Está proibida a homossexualidade no islã?

R. Eu não tenho a mesma opinião que os sábios muçulmanos que dizem isto, e tenho amigos que são religiosos e pensam como eu. No Alcorão unicamente se fala da história de Ló, e está claro que não se refere à homossexualidade, mas a violações, vexações… algo muito diferente.

P. Você se considera muçulmano?

R. Sou uma pessoa muçulmana culturalmente, isto é, que essa é a cultura na qual me eduquei. Entretanto, não me considero religioso.

P. Você já teve uma rede dupla de amigos?

R. Agora, a maioria de meus amigos são espanhóis que conheci no colégio, mas efetivamente, até pouco, tinha dois grupos de amigos: por um lado, os espanhóis, a quem contei de minha homossexualidade e, por outro, os de tradição muçulmana com que se relacionava minha família (amigos de meus irmãos, vizinhos…) que não sabiam de nada. Com eles era muito difícil encaixar todas as facetas de minha vida: imigrante, muçulmano e homossexual.