Por Paulo Stekel
Um dia, apoiamos a
escravidão... Na Antiguidade, ela era socialmente aceita e os
escravos eram de todas as raças, todos os povos, homens, mulheres e
crianças. A Bíblia é tão conivente com a escravidão que possui
inúmeras regras para o tratamento dos servos. Outros livros
sagrados, como o Corão, seguiram a mesma linha. Quando nos damos
conta de que há menos de 130 anos ainda havia escravos negros no
Brasil, o mal-estar toma conta de nosso espírito...
Um dia, negamos às
mulheres direitos mínimos... Desde a Antiguidade, as mulheres eram
consideradas servas de seus maridos, propriedades deles, não tinham
direito a voz, nem alma... Enfim, não tinham vida nem dignidade.
Mais uma vez, a Bíblia e outros livros sagrados foram coniventes,
perpetrando uma milenar misoginia religiosa que negou às mulheres a
condição de seres humanos completos – algumas seitas indianas
vixnuítas consideram a mulher um “meio ser”... Quando nos damos
conta de que há menos de 100 anos as mulheres sequer podiam votar,
nos envergonhamos...
Um dia, negamos aos
gays, lésbicas, bissexuais e todos os “tipos” considerados
“anormais”, “inadequados”, “pervertidos” ou “estranhos”,
como os travestis e transexuais, qualquer liberdade (como antes, se
negou aos escravos), qualquer dignidade e qualquer plenitude cidadã
(como antes, se negou às mulheres)... Opa! Um dia? Não! Ainda se
lhes nega muito disso, em maior ou menor grau, em todas as absolutas
centenas de nações do mundo!
Os LGBT vivem, por
conta desta negação de plenitude cidadã, em verdadeiros guetos
sociais, à margem da liberdade de expressão, da alegria de viver,
de trabalhar, de amar... Por conta do preconceito que todos SABEM que
sofrerão, a homofobia internalizada se amplia e, cruel e
paradoxalmente, muitos se fazem de algozes de seus iguais,
amedrontados pela ideia de serem descobertos e, então, virarem a
vítima da vez... Afinal, nos dias de hoje, quem não tem sua
heterossexualidade presumida facilmente, é considerado um gay em
potencial e, antes mesmo de qualquer confirmação, pode ver seu
rosto estilhaçado por lâmpadas de neon, porretes e cusparadas
indignadas de hipócritas fiscais do alheio...
Diante deste quadro,
fica a pergunta crucial: Qual é a forma mais segura de sair do
armário e de construir sua própria identidade sexual num mundo
hipócrita que, ainda que não tolere manifestações abertas, vive
uma sexualidade fora da própria norma que dita a todo o momento,
como nós muito bem sabemos?
O grande problema da
sociedade não são os atos, mas a revelação dos atos... Ao sair do
armário, um gay sai do ato para sua revelação, e isso afronta a
hipocrisia da sociedade. A prova disso é quando pastores evangélicos
dizem que não são contra gays terem direitos, desde que façam seu
sexo às escondidas, sem pleitearem visibilidade como um bloco em
separado. Ou seja, pretendem que tudo continue ocorrendo, mas em
segredo, hipocritamente, e sem dignidade... Ao exigir direitos,
afrontamos a hipocrisia, o segredo e a inferioridade cidadã, onde
não queremos nos encaixar, pois nascemos sob o mesmo sol...
“Categorizações” não podem nos definir. Há os gays caricatos,
os não-caricatos, os efeminados, os masculinizados, os assexuados,
não importa. Por mais categorias que inventemos, elas nunca
definirão a totalidade do que é ser LGBT! Mesmo a definição LGBT
(e outras similares) é provisória e pode, um dia, quando
discriminar um ser humano por sua orientação sexual for considerado
abominável, vir a ser abolida. Mas, no momento, ela é útil e
necessária. Mas, eu sei que eu não sou um LGBT(TTTXYZ...)! Eu sou
simplesmente um SER HUMANO!
Também não sou
homossexual, heterossexual ou bissexual, pois um ser humano não pode
ser definido apenas por um aspecto de sua vida, o sexual. Há que
diferenciar-se, por exemplo, as expressões “homossexualidade” e
“homoafetividade”. Da mesma forma, seria adequado pensar-se em
“heteroafetividade” mais que em “heterossexualidade”. Por
que? Porque o que realmente determina a orientação sexual não é o
gênero da outra pessoa com a qual se mantem relações sexuais, mas
sim, existindo ou não o ato sexual, o gênero da outra pessoa pela
qual se desenvolve um afeto mais profundo, o qual pode incluir
aspectos sexuais. Em prisões, por exemplo, relações homossexuais
são comuns, o que não significa que os envolvidos sejam gays. Na
verdade, nestas situações, os envolvidos se dão a atos
homossexuais, mas não estão orientados homoafetivamente. Ao
contrário, um homem casado com uma mulher apenas para conformar-se
às regras heteronormativas, mas que nutre uma afetividade toda
orientada para indivíduos do mesmo sexo, uma homoafetividade que ele
sufoca para que não chegue às vias de fato, é, indubitavelmente,
gay. Uma pessoa que vivencia tal conflito pode facilmente cair na
tendência da heterossexualidade presumida e agir violentamente
contra gays por conta de sua homofobia internalizada.
A grande questão é:
se o preconceito geral da sociedade heteronormativa com o diferente
fosse menor ou inexistente, será que as coisas seriam melhores para
quem padece de angústias e conflitos por causa de sua orientação
sexual?
Ainda que cada caso
seja um caso e nenhum ser humano vivencie sua sexualidade de forma
igual a outro, creio que as coisas seriam melhores, sim. Afinal, se a
aceitação fosse maior, o ambiente social seria mais amistoso aos
gays e isso teria consequências diretas em sua saúde psicológica.
Se gays pudessem se assumir sem constrangimentos; se não perdessem
seus empregos por se assumirem; se pudessem se comportar como casais
em público do mesmo modo que heterossexuais; se pudessem adotar
crianças passando pelos mesmos critérios de habilitação de
heterossexuais; se tivessem direito à união civil (popularmente
chamada “casamento gay”) como qualquer casal não-gay; se
tivessem seus direitos à integridade física, moral e psicológica
garantidos quando são agredidos por serem gays; se pudessem tudo
isso, então todo o sofrimento por serem “diferentes” da norma
diminuiria.
Mas, antes de tudo, a
auto-aceitação... Devemos aceitar ser quem somos, por mais que
tenhamos dificuldade em colocar-nos dentro de uma categoria qualquer,
pois, se não nos aceitarmos, o preconceito começará a partir de
dentro de nós mesmos e contaminará o nosso entorno, voltando como o
preconceito velado ou explícito que vemos todos os dias. Conhecer-se
a si mesmo, aceitar-se como se é e agir sem medo são os
passos-chave para a conquista da dignidade.
Ao manifestar o desejo
de escrever este artigo, ainda no ano passado, pedi que alguns amigos
da comunidade LGBT enviassem depoimentos sobre sua auto-aceitação e
o sair do armário. Escolhi trechos de quatro deles para embasar os
argumentos a seguir, mesclados com o meu próprio depoimento ao longo
dos demais.
Depoimento 1:
Maurilio
“Desde pequenino
eu já sentia uma atração por meninos, quando brincava com meus
primos e amiguinhos da escola. (…) queria ficar perto dos meninos.
Mas, como eu via meus pais falarem mal dos gays e lésbicas, eu
sempre tive medo de ser um também. (…) Até que decidi entrar na
Igreja pra ver se isso era coisa do demônio. (…) Fui durante 3
anos coroinha, e nada adiantou. Continuei sendo gay, mas não me
assumia pra ninguém. Tinha medo de ser expulso de casa. (...) Tinha
uns 9 anos e já era mais ou menos a ovelha negra da família, porque
eu era bem afeminado (…) E, era uma coisa tão normal pra mim! Meus
pais brigavam comigo por eu ser assim, mas eles também acreditavam
que aquilo era coisa de criança e uma fase que iria passar. (…)
Numa cidadezinha do Pernambuco onde nasci não tinha muitos gays ou
pessoas assim. Quando um se assumia era uma coisa bombástica. A
cidade inteira ficava comentando.
(…) Meu pai
decidiu vir morar em São Paulo pra ver se amenizava os comentários
sobre mim, e também pra tentar uma vida melhor. (…) Chegando aqui
em São Paulo meu pai me falou que não era pra mim ficar andando com
viado nem fazer amizade com essa gente, senão os bandidos iriam me
matar. Eu, com muito medo, nem saía de casa. Mas, resolvi me assumir
pros meus pais. (…) Meu pai logo falou: 'Vixe Maria! Vai pro
inferno! Não quero isso aqui na minha casa, não!' Minha mãe, muito
passiva, falou que não poderia fazer nada, pois ele sustentava a
família. (…) Ele não me colocou pra fora de casa ainda, mas parou
de falar comigo e de vez em quando soltava um 'patada', me
esculachava, e isso ia doendo muito. Me sentia tão mal... Mas, tinha
que continuar ali na casa dele, porque era o único lugar que eu
tinha pra ficar.
Passaram-se umas
duas semanas e a família começou a me criticar, a ir na minha casa
só pra falar mal de mim pro meu pais, colocar mais lenha na
fogueira. Desse dia em diante meu pai e meu irmão mais velho de 19
anos começaram a me bater todos os dias. Um olhar pro meu pai ou
irmão já era motivo de briga. (…) Eu apanhava feito um saco de
pancadas. Meu pai me batia com pau, jogava pedra, cinto, chinelo,
fios de energia, enfim, tudo o que via pela frente. Me batia pra ver
se eu virava homem. Mas, não teve jeito, continuei o mesmo. Daí,
ele resolveu me colocar pra fora de casa. Dormi por várias vezes na
rua. (…) Até que minha mãe mandou eu voltar pra casa novamente...
Voltei pra casa.
Em uma balada na
zona leste conheci um cara que me encantou, que me deu carinho,
atenção, amor, sei lá. Foi uma coisa muito boa. Ele me tratou
muito bem, fez as coisas que ninguém nunca tinha feito por mim.
Então, começamos a namorar. Passaram-se uns 2 meses e resolvi
contar pra minha mãe sobre o namoro com esse cara. (…) Mais uma
vez meu pai, ao saber que eu estava namorando um homem, me colocou
pra fora de casa e queimou minhas roupas. Não aguentei e fui morar
com esse cara que estou até hoje, que me fez ver que eu nasci assim,
que me ama do jeito que eu sou, que me disse que homossexualidade não
é coisa do demônio, que eu também sou filho de Deus e sou digno de
amor e carinho.
Desde então, ele
tem me ajudado muito, e minha auto-aceitação começa daqui. Hoje eu
bato no peito e tenho orgulho de dizer 'Eu sou gay'. (…) Hoje eu
sou uma pessoa muito feliz e aliviado, pois sou assumido. Eu amo ser
gay e, se fosse pra escolher, eu nasceria gay de novo!”
Comentário: O
que aconteceu na vida de Maurilio tem acontecido na vida de centenas,
milhares de gays pelo Brasil afora. Aqui no RS, onde moro, conheço
vários casos de jovens postos para fora de casa ao assumirem sua
homossexualidade. Homossexualidade, aliás, já percebida pela
família e, enquanto escondida, tolerada, mas assim que expressada
abertamente, odiada ao extremo. Meu histórico não é violento com o
deste rapaz do Nordeste, mas passei por situações de preconceito
sutil de parte do meu pai na infância e início da adolescência. A
diferença é que comecei a trabalhar cedo, a me sustentar, e aos 17
anos já morava sozinho. A partir de então, pela filosofia de meu
pai, ao sustentar-me, não lhe devia mais qualquer tipo de satisfação
de minha vida, de modo que nunca foi “necessário” assumir-me
para ele. Ele nunca foi um moralista – nem o poderia, com tantas
mulheres que teve além de minha mãe – e disso aproveitei-me para
evitar ali qualquer conflito desnecessário. Construí minha
identidade a partir de minhas próprias experiências, de minha
observação da vida e dos seres humanos, de minha espiritualidade e,
principalmente, dos desejos, sentimentos e sensações mais íntimos,
e isso tudo sem sentimento de culpa, sem hipocrisias, sem
autoflagelação... Mas, sei que com muitos outros é diferente. Gays
que sofrem mais preconceito saem da escola sem completar o estudo
fundamental, possuem baixa auto-estima, vivem em subempregos, são
presas da prostituição, das DSTs e das drogas, e raramente
conseguem vislumbrar um futuro digno. Escapar a este quadro é
realmente uma dádiva...
Depoimento 2: André
“Tenho 35 anos, e
me descobri gay desde criança. Com 04 anos de idade me lembro de
sentir atração por um vizinho da mesma idade. Eu inventava
brincadeiras com ele só pra ficar ao seu lado e tentava beijá-lo.
Até que um dia fui surpreendido pela mãe do garoto que me
recriminou, e fiquei um longo tempo com esse sentimento de que estava
fazendo algo de errado.
Por volta dos 13
anos de idade, esse sentimento homossexual ressurgiu em um momento em
que fui assediado por um conhecido de minha mãe. (…) A partir de
então, percebi que eu não sentia atração pelo sexo feminino e
comecei a ler sobre o assunto e a comprar clandestinamente revistas
de temática gay pra me entender melhor. Também fui identificando
entre meus amigos os que tinham a minha preferência sexual, e foram
muitos.
A minha aceitação
veio naturalmente, mas eu tinha vergonha de me assumir gay perante a
família e alguns amigos. Só com 25 anos, quando conheci meu atual
companheiro, foi que assumi minha sexualidade perante todos. O amor
entre nós é muito forte até hoje, e foi o que me fez tomar coragem
diante do preconceito dos outros. Sofri preconceito velado de minha
mãe e escancarado do meu irmão.
Mas, ainda assim,
persisti na minha condição e enfrentei tudo em nome do meu amor.
Não me arrependi em nenhum momento, e conheci pessoas durante essa
jornada que me encorajaram a tomar essa decisão.”
Comentário:
Este depoimento tem algo em comum com meu histórico, pois também me
assumi para os demais apenas com 25 anos. Mas, a primeira vez que
senti atração inegável por alguém do mesmo sexo, tinha 19 anos.
Digo isso, porque tivera outras experiências na adolescência, por
volta dos 13 ou 14 anos e até antes, mas estavam mais relacionadas a
curiosidades de meninos do que a sentimentos mais profundos ou
orientação sexual. Mesmo porque meus dois irmãos tiveram as mesmas
experiências e nenhum deles é gay. Contudo, aos 19 anos, ao ver um
amigo seminu, a sensação que tive não me deixou mais dúvidas: os
homens me atraíam mais que as mulheres. Mesmo assim, casei-me com
uma mulher aos 26 anos, mas a experiência durou somente um ano e
meio. Ela tivera relações com uma menina mais velha quando era
pré-adolescente, e isso serviu para que tivesse certeza de que lhe
interessavam os homens, e não as mulheres. Mas, era uma pessoa sem
preconceitos, o que facilitou bastante o processo de separação, de
modo que somos amigos até hoje.
Depoimento 3: Daniel
“Meu nome é
Daniel, tenho 21 anos, e moro com meus pais em Canoas – RS. Me
assumi ao completar 18 anos, exatamente no dia do meu aniversário,
com a intenção de que fosse algo que eu jamais esquecesse. Foi mais
ou menos assim: eu e minha mãe terminamos de almoçar, sentei
junto a ela que
estava a ainda na mesa, e disse: 'Mãe, quero lhe dizer uma coisa!'
Ela, sem entender, disse: 'Fala!' Eu, engasgado: '...Eu não sou
hétero...' (usei um termo que me senti aliviado em falar, sabendo
que ela não entendera claramente) 'Eu sou bissexual... Fico com
homem e com mulher.' Nesse momento de extremo nervosismo me senti
largando uma pedra que eu carregava todos os dias. Ela se manteve
calada, depois disse: 'Tu vais continuar sendo meu filho... Eu te
amo...'
Eu pensei que não
tinha sido tão ruim assim, mas foi apenas o começo de um longo
tempo de luta por respeito e direito pelo qual eu luto até hoje.
Pois, no decorrer dos dias, respirar era motivo de briga e discussão,
e isso praticamente durou uns 7 meses ou mais! Neste mês completa 3
anos que me assumi para minha mãe, que ainda diz NÃO ACEITAR, mas
respeita. E, é algo que eu trabalho todos os dias com ela, o
respeito.”
Comentário: Os
jovens gays estão se assumindo para a família cada vez mais cedo.
Em minha época – eu já tenho 42 anos, gente! – os gays se
assumiam lá pelos 25 ou 30 anos. Agora, alguns estão se assumindo
aos 15 ou 16 anos, como já vi diversas vezes. Isso reflete a
precocidade geral da sociedade. Os adolescentes – héteros ou gays
– começam a namorar cada vez mais novos. É natural, portanto, que
venham a se assumir precocemente. E, isso é bom? Creio que sim. Isso
inicia o processo de auto-aceitação mais cedo também. Quanto mais
pessoas de bem com sua sexualidade tivermos, mais “almas”
ganhamos para a aceitação da diversidade sexual, se é que me
entendem. Quando contei para minha mãe, ela disse já saber sobre
minha sexualidade e, num primeiro momento, isso não acarretou
problema algum. Mas, à medida que ela foi se tornando evangélica, o
preconceito começou a minar sua mente, mas ela manteve seus
pensamentos medievais em segredo. Quando um de meus irmãos morreu, a
verdade veio à tona: Malafaia a havia contaminado com seu discurso
fétido e diabólico! Apenas uma “terapia de choque” poderia
corrigir isso. Por sorte, o restante da família materna não padece
de homofobia, de modo que esse pessoal foi o responsável pela
“terapia” da qual ela necessitava para sair da Idade Média e
acordar no Século XXI... No momento, está sob observação...
Depoimento 4: Walter
“Aconteceu quando
tinha oito anos; estava ficando escuro e eu no meio daquelas crianças
na rua. Um menino da minha idade se aproximou e segurou a minha mão.
Foi um gesto de afeto espontâneo e natural entre crianças e foi
também o momento em que eu senti uma onda de calor, aconchego e amor
incomparáveis; aquilo foi mais gostoso que o toque da minha mãe,
mais gostoso que
chocolate e iogurte de morango, mais gostoso que o toque das meninas.
Ele apertou suavemente minha mão na dele; e segurou transmitindo
máscula sensação de proteção.
(…) Não houve,
portanto, um trauma, um abuso ou a ausência de algo e de alguém; eu
tive pai, dois irmãos, mãe, tios, primos, tias, avós, inúmeros
modelos masculinos e possibilidades de integração e identificação
heterossexual.
Entretanto, naquela
época eu não sabia nada sobre homossexualidade; nordestino, criado
em famílias de antigas linhagens patriarcais e católicas, morando
em um município onde a televisão a cores era novidade das casas
mais abastadas, eu só vi homossexuais em programas de humor, e
entendia mais ou
menos que aquele personagem era um tipo de bufão ou palhaço de
circo.
Foi a religião que
me apresentou a primeira definição de homossexualidade;
infelizmente para mim a definição distorcida. Lembro bem que as
palavras da Bíblia 'de fora estarão os afeminados e os homens que
se deitam com homens' me deixou viva e dolorosa impressão
na alma. Eu ia para o inferno e nem sabia exatamente por que.
E lembro-me do
terror de ter de esconder dos meus pais que eu era um criminoso igual
a um assassino; um viado, um proscrito e alguém sem honra e sem
lugar em parte alguma. A sensação de não pertencer a nada sempre
recorrente; eu não era mulher e, portanto, não podia sentir atração
por homens. Por outro lado, eu não era homem, porque não sentia
atração por mulher.
Percorri então a
minha Via Crucis; aos doze anos já tinha sinais de depressão, aos
dezesseis pensava seriamente em me matar. Deixei a escola, parei de
tomar banho, me tranquei dentro de casa. Chorava horas a fio no
quarto ou chorava no quintal, entre as árvores e o jardim. Meus pais
primeiro se zangaram depois se alarmaram depois se acostumaram.
Não tive coragem de
contar sobre minha homossexualidade nem para a psicóloga que eles me
arrumaram; não confiava a ninguém aquele segredo monstruoso. Eu
tinha vergonha de mim, e tinha nojo. E queria ser igual aos outros
garotos.
Foi a psicóloga,
porém, que me ajudou inadvertidamente; às vezes ela me dava algumas
revistas e livros para ler e numa dessas revistas eu vi uma matéria
sobre homossexualidade. O singelo artigo me pareceu extraordinário e
me atingiu de forma impactante e inesquecível; dizia que sentir
atração pelo mesmo sexo não era doença, nem algo negativo, que
homossexuais eram pessoas comuns e que não existia tratamento porque
não havia o que curar.
Fui buscar mais
informações sobre o assunto; nesse período um boato sobre um ídolo
da televisão e dos cinemas, Keanu Reeves, me deixou
boquiaberto. Keanu era homossexual e eu queria ser igual a ele.
Lentamente, pois,
mais de modo constante, outras salvíticas histórias chegaram até
mim viajando através de livros, revistas, seriados e filmes, e no
geral pintando uma imagem simpática dos homossexuais, diferentemente
dos anos anteriores.
Um sopro de
esperança começou a me curar e de dentro da escuridão e desespero
da ausência de identidade, eu nasci de novo; uma gestação demorada
no ventre dos meus sonhos homoeróticos.
Primeiro surgiu a
aspiração cândida do romance com alguém do mesmo sexo; depois o
desejo sexual aflorou sem culpa e eu tive meu primeiro orgasmo
desprovido de arrependimento. Eu suspirei de alívio; eu era normal,
saudável, bonito, estava no lugar certo, eu pertencia a algo.
Decidi então contar
para as pessoas que eu era gay. Foi a coisa mais difícil que já
fiz, mas depois de fazê-la, abri uma porta que nunca mais se fechou;
eu me tornei outro homem, eu pisei firme no
chão, eu ergui os
olhos para encarar as pessoas, eu me tornei senhor de mim mesmo, eu
digo quem eu sou, as cartas são minhas, ganhando ou perdendo.
Estou recuperando
quase tudo que a homofobia cultural, institucional e individual me
roubou na vida; há ocasiões em que parece que várias etapas do
caminho se cruzam e se confundem por causa do tempo perdido. Sou
homem adulto, e também sou menino.
O arrependimento é
inútil para mim agora; só me serve o que tenho e o que eu sou neste
momento. E o que eu tenho é orgulho, e o que sou é um homem gay."
Comentário: Ah,
como este depoimento inspira! Walter Silva – sim, ele não só
permitiu, como fez questão da revelação de seu nome – tem, em
minha opinião, um dos melhores textos sobre orientação sexual no
Brasil. Ele, paraibano, eu, gaúcho, temos em Keanu Reeves um
mesmo referencial – também tenho um referencial no falecido River
Phoenix, colega de Reeves no filme “Garotos de Programa” (My
Own Private Idaho), de 1991. Foi conversando sobre Reeves e
Phoenix, este último encontrado morto em 1993 e apenas dois dias
mais velho que eu (Phoenix nasceu em 23 de agosto de 1970, e eu no
dia 25 de agosto do mesmo ano), que em 1993 iniciou-se meu processo
de sair do armário. O objeto de meu amor naquela época também
estava a descobrir-se, mas, infelizmente, até sua morte trágica em
um acidente de carro, em 2011, não conseguira escancarar o
armário... Mas, ensinou-me muito sobre o que é amar alguém do
mesmo sexo sem sequer dizer uma palavra sobre o assunto e sem
convencionar rótulos... e sem consumar fisicamente este amor... A
ausência de tudo isso não conseguia abafar a realidade que ali se
percebia... e que as almas entendiam em seus próprios termos... Ele,
não conseguia se imaginar assumindo algo que já estava muito claro.
Eu, não conseguia imaginar criar um gueto para algo que queria
compartilhar com o mundo. Venceu, no mundo relativo, a homofobia
paterna. No mundo absoluto, reinou o amor, gritando aos corações
que nem a morte pode abafá-lo... O amor é como o elétron, segundo
a Física Quântica: deixa marcas eternas por onde passa... Hoje,
tais marcas me servem muito bem e as transformei em pilares de
sabedoria, compaixão e sinceridade para comigo mesmo.
Então, agora posso
dizer: Sou gay e não tenho vergonha de assumir isso para ninguém.
E, você, tem coragem de assumir isso também? Ou se mantém num
gueto social, simulando uma heterossexualidade que não convence a
ninguém? Ou prefere ceder à homofobia internalizada, um modo
grosseiro e falho de abafar em si o que vê manifestado em outros? Ou
prefere deixar o armário trancafiado a sete chaves, seguindo pela
vida infeliz, sem dignidade, sem poder expressar-se em plenitude e,
pior de tudo, sem poder amar com toda a sua alma? Desculpe, mas amor
e alma são sinônimos. Se você não consegue expressar um, não
possui o outro. É um “carma” que impõe a si mesmo, mas que
ninguém lhe imputou. Incomoda-lhe a auto-afirmação dos demais?
Seja corajoso como eles, então! Afinal, ao incomodar-se com a
auto-aceitação alheia, algo lhe atingiu indelevelmente. Você é
quem deve decidir se isso será libertador ou uma prisão...
Sair do armário,
assumir-se, deve ser produto de muita elaboração mas,
principalmente, de um estado de sinceridade tal consigo mesmo que
todos os sentimentos, sensações e desejos sejam devidamente
expressados, sem obscurecimentos moralistas, escapistas ou enganosos.
Não se trata de escolher uma sigla para sua sexualidade, ou algum
modelo didático daqueles defendidos por organizações pró-LGBT,
mas antes, de saber o que nos atrai de fato. Não há limitações no
amor. Ele não depende de siglas. O amor não é uma regra moral, nem
mesmo ética. É alma, é vida e mantenedor de vida. Ele deve
melhorar nossa auto-estima, não rebaixá-la. Converse com as pessoas
na base do amor mais profundo, e seu ativismo será extremamente
perigoso para a homofobia reinante, abrindo horizontes, libertando
escravos e permitindo gozos... Abaixo a clandestinidade, viva a
revelação! Quem deve se acostumar com sua essência são os outros;
a você, cabe expressá-la e ser feliz!