sexta-feira, 15 de junho de 2012

Direito e amor




















Por Marcelo Moraes Caetano
"Nós somos o que fazemos repetidas vezes. Portanto, a excelência não é um ato, mas um hábito."

(Aristóteles)

Erich Fromm defende, ao longo de sua obra, que o amor é o elemento que norteia a saúde mental. Para ele, a sociedade exerce, inclusive legitimamente, influências sobre o psiquismo (usarei termos que não necessariamente eram usados pelo estudioso aqui evocado). Assim, num resumo despretensioso de parte de sua obra, pode-se entrever que o indivíduo é fruto e efeito, sim, da sociedade em que vive, mas que, diferentemente das correntes majoritárias daquele tempo (idos da década de 40 e 50 do século XX), a sociedade não é capaz de, por si só, determinar os padrões de realização do ser.


Para ele, por fim, a identificação por meio do amor passa, portanto, pela esfera social, pela alteridade, isto é, pela presença do outro em minha vida. No entanto, uma espécie de narcisismo resquicial seria meu verdadeiro parâmetro para julgar a integralização da felicidade no outro. Em termos diferentes, seria por meus próprios sentimentos de prazer e desprazer que eu julgaria, no outro, a realização de prazeres ou desprazeres.


Decorre daí que o ser humano, em suma, precisa de alguma potência maior que ele próprio, o que seria a sua própria transcendência. Essa transcendência pode ser alcançada, como se viu, no amor ao outro, numa alteridade com a lente do narcisismo, ou numa entrega a grupos de poder, religiões, Deus.


Muitos outros pensadores executaram a meritória labuta de conciliar as ideias de Freud às ideias sociológicas. Assim foi que Marcuse, por exemplo, uniu o freudismo ao marxismo, criando, entre outros, seu “Eros e civilização”. Fromm, por seu turno, preocupou-se muito com as questões do trabalho e da sociedade, e, assim como Marcuse, via no amor – em Eros – uma fonte ou um guia da aludida saúde psíquica.


Quero com isso dizer que o ser humano estará, sempre, inserido numa sociedade. Isso é premissa maior. As teorias que observam este ser humano sob o pano de fundo de tal ou qual sociedade são muito variadas – deterministas, positivistas, psicanalíticas, antropológicas etc.


Porém, de alguma forma, a maior parte delas, mesmo as mais estritamente relativistas e ortodoxas, como a de Taine, de Comte ou de Durkheim, preveem, mais ou menos parcimoniosamente, a possibilidade de o ser humano vencer os interditos e os tabus eleitos por dado “Tempo” para criarem “Enunciados” capazes de libertá-los desses interditos e tabus, que, muitas vezes, tornam-se datados, obsoletos, anacrônicos.


A adesão ou irrupção, por exemplo, são modos de se ascender ao status quo opressor. A transcendência, voltando a Fromm, pode ser, por sua vez, atingida, grosso modo, por criatividade ou por destruição. Deleuze, em seu “O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia”, lança a famosa questão: que sedução é essa, que nos impele a queremos aderir ao mesmo poder que outrora nos oprimiu?


Pois a sociedade, com seu construto necessariamente heterônomo, coercitivo, estabelece, por razões que não cabem neste artigo, vários interditos, vários tabus, várias proibições que, num ou noutro momento, tacha de naturais, morais, éticos, legalistas, legítimos e, até, divinos...


Não é à toa que Weber, por exemplo, cria relações estreitas entre o capitalismo e a ética da religião protestante. Não é à toa que Jung tenha querido conhecer as religiões dos povos ditos não-civilizados a fim de encontrar, neles, uma possível sistematização “arquetípica”, como ele próprio chamou, aplicáveis, até, nas civilizações industriais/mercantilistas.


Porque muitos são os fatores que pretendem legitimar, ao longo dos tempos, as exclusões de tal ou qual grupo, de tal ou qual indivíduo. É bom deixar claro que o “normal”, em todas as sociedades, corresponde àquilo que prvém da norma, ou seja, do que é mais comum ocorrer. No entanto, nem todas as sociedades desconhecem que o que não é mais comum seja, só por isso, desagradável, nocivo, deletério ao funcionamento regular e saudável daquela sociedade.


Para ficarmos no ocidente, e sem pretendermos ir muito a fundo, podemos dizer que foram (ou são) interditos de ordem sociocultural a “secundarização” da mulher (para fazer uma apropriação do título do livro de Simone de Beauvoir: “O segundo sexo”), o temor ao estrangeiro (sobretudo com o avanço do neoliberalismo, em que o estrangeiro é uma potencial ameaça à sobrevivência do nativo), o estranhamento a etnias, religiões e orientações sexuais diferentes da “normal” (a mais comum, como vimos) numa dada sociedade ou grupo.


Foi dessa forma que os avanços obtidos pelas chamadas populações secundárias, nas palavras de Sartre e Beauvoir, ocorreram gradativamente.


A abolição da escravatura, no Brasil, por exemplo, ocorreu, como se sabe, por questões de interesse da Inglaterra, cujo capitalismo florescente via no contingente de escravos, NÃO-CONSUMIDORES, um entrave a seus interesses. Os britânicos intervieram, até mesmo, na soberania nacional brasileira, colocando-se no patamar de juízes de navios que quisessem traficar negros para o Brasil. Criou-se, por aqui, a chamada lei “para inglês ver”, que fazia vistas grossas à proibição do trono do Reino Unido. Mais uma vez, vemos o interesse social (e, ora, evidentemente econômico) por trás da conquista de direitos humanos tão básicos.


O caso das mulheres, ainda para ficarmos nas searas brasileiras, pareceu ser um eco dos movimentos libertários franceses, estadunidenses e latino-americanos. Como nossa sociedade era – e é – de cunho preponderantemente machista, como nos mostra obras da envergadura de um “Casa Grande e senzala”, de Gilberto Freyre, ou “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda, fugir desse patriarcado requereu, da mulher, no caso do Brasil, uma flexibilidade redobrada. Apesar disso, o movimento de igualdade dos direitos, no caso das mulheres, parece um dos que mais prosperaram nos últimos tempos, que, por conseguinte, abriu precedentes importantíssimos para a conquista de direitos de outras populações secundárias.


Uma das formas de “permitir” que essas populações secundárias existissem sempre foram os chamados “guetos”. Já escrevi muitos artigos sobre essa posição de esmola que se dá às populações secundárias, o que um Victor Hugo chamaria de um “porão” ou um “sótão” na mansão da sociedade, quando trata de personagens célebres como Quasímodo, Esmeralda, Fantinne, Marius Pontmercy, Jean Valjean, Thénnardier etc.


O homossexual, por exemplo, tem, até, um certo direito de ir e vir, desde que sua presença, ou melhor, seu comportamento, não agrida a manutenção da norma social. Mais uma vez, vasculham-se miríades de supostas justificativas para a exclusão: diz-se que não é natural, que não é moral, que não é ético, que não é legítimo, que não é divino, que não é legalizado.


O único ponto ao qual quero me deter, por ora, é o último: dizer que a homossexualidade não pode ser aceita PORQUE não é legalizada.


Ora eu, como filólogo e gramático que sou, preciso me deter no conectivo PORQUE. Na verdade, trabalharei no âmbito do discurso, da retórica, porque a falácia aqui é óbvia: se quisermos dar a este PORQUE o estatuto de conectivo causal, é óbvio que a sentença precisará ser lida de trás para frente, para se tornar não apenas verossímil, como, sobretudo, verdadeira: a homossexualidade não pode ser legalizada PORQUE não pode ser aceita. E não vice-versa.

Trata-se, voltando ao início deste artigo, da noção de transcendência do status quo, por meio da ruptura, até, do pequeno narcisismo que nos limita a amar o outro DESDE QUE esse outro tenha características com as quais eu me identifico em maior ou menor grau, dependendo do grau de narcisismo de quem ama-aceita, que pode, inclusive, chegar a ser patológico, um “egoísmo”.


Amar alguém que é totalmente igual a mim é muito fácil. É a regra. É o normal, porque é o comum.

Mas a sociedade não é feita só de regras, só de “comuns”. Ela também é feita de alteridade pura, de individualidades, de aceitação-amor pelo que me é completamente diferente e, até mesmo, se for o caso, repulsivo.


A legalização do fato é apenas questão de tempo. Miguel Reale, em sua célebre e internacionalmente reconhecida teoria tridimensional do Direito, mostra-nos que há um trinômio composto por fato, valor e norma. Ou seja, o fato consolidado (expressão que parece ter tirado de Émile Durkheim) gera um valor no seio da sociedade, e isso se reflete numa norma (a lei).

O fato já existe. Homossexuais nunca deixaram de sê-lo, com ou sem lei, na obscuridade dos guetos ou na claridade dos parques.


O que está em jogo, pois, é a vertente do VALOR.


A aceitação, dessa maneira, é que precisa ser revista. Não se trata mais de aceitar-se a esmola dos “sótão” da mansão social. Trata-se, neste “Tempo”, neste “Enunciado”, de criar condições de visibilidade que propiciem manifestações concretas de respeito ao fato já de há muito consolidado. Disso, decorrerá a norma, a lei. Portanto, como eu disse acima: a homossexualidade não pode ser legalizada PORQUE não pode ser aceita; ou seja, assim que for aceita, a homossexualidade SERÁ legalizada.


Não se trata de o homossexual querer galgar ao mesmo poder que outrora o oprimiu, tese defendida (não em relação direta ao homossexual) por Deleuze e Guattari. Porque as condições de legalidade, numa sociedade justa e verdadeiramente democrática, são condições indispensáveis para a obtenção da felicidade. Uma pessoa não pode ser marginal à lei pelo fato de ser homossexual; o “Tempo” de hoje deixa isso muito explícito.


Tal ou qual religião terão, sempre, por seu conjunto de doutrinas, o direito de, por questões de foro íntimo, dogmático e doutrinário, repugnarem a certos grupos. É um direito que lhes assiste.


Mas é um direito que assiste ao homossexual – como ao negro, à mulher, ao estrangeiro, à criança, ao portador de necessidades físicas especiais etc. – receber do ordenamento jurídico bases para a sua felicidade e a sua “desmarginalização”, inclusive se esse ordenamento, por um princípio de proporcionalidade, precisar aparentemente dar privilégios legais aos grupos que, pelo simples fato de pertencerem a esses grupos, sofrerem violências sociais de todo tipo.


Momento chegará em que esses supostos privilégios se extinguirão, porque não haverá mais violência contra alguém PORQUE esse alguém é mulher, PORQUE é negro, PORQUE é estrangeiro, PORQUE é criança, PORQUE é portador de necessidades físicas especiais, PORQUE é homossexual (reparem que mais uma vez o PORQUE faz parte do X da questão, linguística, sociolinguística e antropológica).


Enquanto este momento não chega, a legalidade precisa cumprir uma tarefa dúplice: igualar os direitos de todos (indo ao fato social existente) e compensar os contumazes reacionários que se opõem a essa igualdade (indo ao valor). Em outros termos, trata-se de tratar os iguais de maneira igual, e aos desiguais de maneira desigual, na medida em que Se desigualam: o princípio da proporcionalidade.


Numa conversa que tive com Élisabeth Roudinesco, ela me disse que, em seu sonho, a sociedade ideal será aquela que conseguir unir liberdade a legalidade. Ainda segundo ela, algo com que eu concordo, nem sempre essa união é possível, pois muitas vezes a legalidade, em vez de promover a liberdade, cerceia-a. Creio, por meu turno, que seja pelo que esbocei há pouco: ocorre uma legalidade que cerceia a liberdade toda vez que um FATO existe sem que o VALOR justo lhe seja inferido.


Eu já disse muitas vezes, ecoando grandes pensadores, que o maior equívoco do mundo moderno é crer que a democracia é o regime exclusivamente das maiorias. As minorias e/ou grupos secundários têm voz e vocalidade no regime democrático, e seus direitos são tão substanciais quanto os de qualquer maioria.


O regime que só lida com maioria, com “norma”, não se chama democracia: chama-se ditadura, fascismo, nazismo.


Erradicar as minorias e igualar todo e qualquer grupo num único seja lá o que for – conceito, ideia, ideologia, religião, cor de pele – sempre tem sido o sonho dos portentosos ditadores que habitaram a Terra, de Hitler a Herodes.

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