Por Marcelo Moraes Caetano
"Nós somos o que
fazemos repetidas vezes. Portanto, a excelência não é um ato, mas
um hábito."
(Aristóteles)
Erich Fromm defende, ao
longo de sua obra, que o amor é o elemento que norteia a saúde
mental. Para ele, a sociedade exerce, inclusive legitimamente,
influências sobre o psiquismo (usarei termos que não
necessariamente eram usados pelo estudioso aqui evocado). Assim, num
resumo despretensioso de parte de sua obra, pode-se entrever que o
indivíduo é fruto e efeito, sim, da sociedade em que vive, mas que,
diferentemente das correntes majoritárias daquele tempo (idos da
década de 40 e 50 do século XX), a sociedade não é capaz de, por
si só, determinar os padrões de realização do ser.
Para ele, por fim, a
identificação por meio do amor passa, portanto, pela esfera social,
pela alteridade, isto é, pela presença do outro em minha vida. No
entanto, uma espécie de narcisismo resquicial seria meu verdadeiro
parâmetro para julgar a integralização da felicidade no outro. Em
termos diferentes, seria por meus próprios sentimentos de prazer e
desprazer que eu julgaria, no outro, a realização de prazeres ou
desprazeres.
Decorre daí que o ser
humano, em suma, precisa de alguma potência maior que ele próprio,
o que seria a sua própria transcendência. Essa transcendência pode
ser alcançada, como se viu, no amor ao outro, numa alteridade com a
lente do narcisismo, ou numa entrega a grupos de poder, religiões,
Deus.
Muitos outros
pensadores executaram a meritória labuta de conciliar as ideias de
Freud às ideias sociológicas. Assim foi que Marcuse, por exemplo,
uniu o freudismo ao marxismo, criando, entre outros, seu “Eros e
civilização”. Fromm, por seu turno, preocupou-se muito com as
questões do trabalho e da sociedade, e, assim como Marcuse, via no
amor – em Eros – uma fonte ou um guia da aludida saúde psíquica.
Quero com isso dizer
que o ser humano estará, sempre, inserido numa sociedade. Isso é
premissa maior. As teorias que observam este ser humano sob o pano de
fundo de tal ou qual sociedade são muito variadas – deterministas,
positivistas, psicanalíticas, antropológicas etc.
Porém, de alguma
forma, a maior parte delas, mesmo as mais estritamente relativistas e
ortodoxas, como a de Taine, de Comte ou de Durkheim, preveem, mais ou
menos parcimoniosamente, a possibilidade de o ser humano vencer os
interditos e os tabus eleitos por dado “Tempo” para criarem
“Enunciados” capazes de libertá-los desses interditos e tabus,
que, muitas vezes, tornam-se datados, obsoletos, anacrônicos.
A adesão ou irrupção,
por exemplo, são modos de se ascender ao status quo opressor. A
transcendência, voltando a Fromm, pode ser, por sua vez, atingida,
grosso modo, por criatividade ou por destruição. Deleuze, em seu “O
anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia”, lança a famosa questão:
que sedução é essa, que nos impele a queremos aderir ao mesmo
poder que outrora nos oprimiu?
Pois a sociedade, com
seu construto necessariamente heterônomo, coercitivo, estabelece,
por razões que não cabem neste artigo, vários interditos, vários
tabus, várias proibições que, num ou noutro momento, tacha de
naturais, morais, éticos, legalistas, legítimos e, até, divinos...
Não é à toa que
Weber, por exemplo, cria relações estreitas entre o capitalismo e a
ética da religião protestante. Não é à toa que Jung tenha
querido conhecer as religiões dos povos ditos não-civilizados a fim
de encontrar, neles, uma possível sistematização “arquetípica”,
como ele próprio chamou, aplicáveis, até, nas civilizações
industriais/mercantilistas.
Porque muitos são os
fatores que pretendem legitimar, ao longo dos tempos, as exclusões
de tal ou qual grupo, de tal ou qual indivíduo. É bom deixar claro
que o “normal”, em todas as sociedades, corresponde àquilo que
prvém da norma, ou seja, do que é mais comum ocorrer. No entanto,
nem todas as sociedades desconhecem que o que não é mais comum
seja, só por isso, desagradável, nocivo, deletério ao
funcionamento regular e saudável daquela sociedade.
Para ficarmos no
ocidente, e sem pretendermos ir muito a fundo, podemos dizer que
foram (ou são) interditos de ordem sociocultural a “secundarização”
da mulher (para fazer uma apropriação do título do livro de Simone
de Beauvoir: “O segundo sexo”), o temor ao estrangeiro (sobretudo
com o avanço do neoliberalismo, em que o estrangeiro é uma
potencial ameaça à sobrevivência do nativo), o estranhamento a
etnias, religiões e orientações sexuais diferentes da “normal”
(a mais comum, como vimos) numa dada sociedade ou grupo.
Foi dessa forma que os
avanços obtidos pelas chamadas populações secundárias, nas
palavras de Sartre e Beauvoir, ocorreram gradativamente.
A abolição da
escravatura, no Brasil, por exemplo, ocorreu, como se sabe, por
questões de interesse da Inglaterra, cujo capitalismo florescente
via no contingente de escravos, NÃO-CONSUMIDORES, um entrave a seus
interesses. Os britânicos intervieram, até mesmo, na soberania
nacional brasileira, colocando-se no patamar de juízes de navios que
quisessem traficar negros para o Brasil. Criou-se, por aqui, a
chamada lei “para inglês ver”, que fazia vistas grossas à
proibição do trono do Reino Unido. Mais uma vez, vemos o interesse
social (e, ora, evidentemente econômico) por trás da conquista de
direitos humanos tão básicos.
O caso das mulheres,
ainda para ficarmos nas searas brasileiras, pareceu ser um eco dos
movimentos libertários franceses, estadunidenses e
latino-americanos. Como nossa sociedade era – e é – de cunho
preponderantemente machista, como nos mostra obras da envergadura de
um “Casa Grande e senzala”, de Gilberto Freyre, ou “Raízes do
Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda, fugir desse patriarcado
requereu, da mulher, no caso do Brasil, uma flexibilidade redobrada.
Apesar disso, o movimento de igualdade dos direitos, no caso das
mulheres, parece um dos que mais prosperaram nos últimos tempos,
que, por conseguinte, abriu precedentes importantíssimos para a
conquista de direitos de outras populações secundárias.
Uma das formas de
“permitir” que essas populações secundárias existissem sempre
foram os chamados “guetos”. Já escrevi muitos artigos sobre essa
posição de esmola que se dá às populações secundárias, o que
um Victor Hugo chamaria de um “porão” ou um “sótão” na
mansão da sociedade, quando trata de personagens célebres como
Quasímodo, Esmeralda, Fantinne, Marius Pontmercy, Jean Valjean,
Thénnardier etc.
O homossexual, por
exemplo, tem, até, um certo direito de ir e vir, desde que sua
presença, ou melhor, seu comportamento, não agrida a manutenção
da norma social. Mais uma vez, vasculham-se miríades de supostas
justificativas para a exclusão: diz-se que não é natural, que não
é moral, que não é ético, que não é legítimo, que não é
divino, que não é legalizado.
O único ponto ao qual
quero me deter, por ora, é o último: dizer que a homossexualidade
não pode ser aceita PORQUE não é legalizada.
Ora eu, como filólogo
e gramático que sou, preciso me deter no conectivo PORQUE. Na
verdade, trabalharei no âmbito do discurso, da retórica, porque a
falácia aqui é óbvia: se quisermos dar a este PORQUE o estatuto de
conectivo causal, é óbvio que a sentença precisará ser lida de
trás para frente, para se tornar não apenas verossímil, como,
sobretudo, verdadeira: a homossexualidade não pode ser legalizada
PORQUE não pode ser aceita. E não vice-versa.
Trata-se, voltando ao
início deste artigo, da noção de transcendência do status quo,
por meio da ruptura, até, do pequeno narcisismo que nos limita a
amar o outro DESDE QUE esse outro tenha características com as quais
eu me identifico em maior ou menor grau, dependendo do grau de
narcisismo de quem ama-aceita, que pode, inclusive, chegar a ser
patológico, um “egoísmo”.
Amar alguém que é
totalmente igual a mim é muito fácil. É a regra. É o normal,
porque é o comum.
Mas a sociedade não é
feita só de regras, só de “comuns”. Ela também é feita de
alteridade pura, de individualidades, de aceitação-amor pelo que me
é completamente diferente e, até mesmo, se for o caso, repulsivo.
A legalização do fato
é apenas questão de tempo. Miguel Reale, em sua célebre e
internacionalmente reconhecida teoria tridimensional do Direito,
mostra-nos que há um trinômio composto por fato, valor e norma. Ou
seja, o fato consolidado (expressão que parece ter tirado de Émile
Durkheim) gera um valor no seio da sociedade, e isso se reflete numa
norma (a lei).
O fato já existe.
Homossexuais nunca deixaram de sê-lo, com ou sem lei, na obscuridade
dos guetos ou na claridade dos parques.
O que está em jogo,
pois, é a vertente do VALOR.
A aceitação, dessa
maneira, é que precisa ser revista. Não se trata mais de aceitar-se
a esmola dos “sótão” da mansão social. Trata-se, neste
“Tempo”, neste “Enunciado”, de criar condições de
visibilidade que propiciem manifestações concretas de respeito ao
fato já de há muito consolidado. Disso, decorrerá a norma, a lei.
Portanto, como eu disse acima: a homossexualidade não pode ser
legalizada PORQUE não pode ser aceita; ou seja, assim que for
aceita, a homossexualidade SERÁ legalizada.
Não se trata de o
homossexual querer galgar ao mesmo poder que outrora o oprimiu, tese
defendida (não em relação direta ao homossexual) por Deleuze e
Guattari. Porque as condições de legalidade, numa sociedade justa e
verdadeiramente democrática, são condições indispensáveis para a
obtenção da felicidade. Uma pessoa não pode ser marginal à lei
pelo fato de ser homossexual; o “Tempo” de hoje deixa isso muito
explícito.
Tal ou qual religião
terão, sempre, por seu conjunto de doutrinas, o direito de, por
questões de foro íntimo, dogmático e doutrinário, repugnarem a
certos grupos. É um direito que lhes assiste.
Mas é um direito que
assiste ao homossexual – como ao negro, à mulher, ao estrangeiro,
à criança, ao portador de necessidades físicas especiais etc. –
receber do ordenamento jurídico bases para a sua felicidade e a sua
“desmarginalização”, inclusive se esse ordenamento, por um
princípio de proporcionalidade, precisar aparentemente dar
privilégios legais aos grupos que, pelo simples fato de pertencerem
a esses grupos, sofrerem violências sociais de todo tipo.
Momento chegará em que
esses supostos privilégios se extinguirão, porque não haverá mais
violência contra alguém PORQUE esse alguém é mulher, PORQUE é
negro, PORQUE é estrangeiro, PORQUE é criança, PORQUE é portador
de necessidades físicas especiais, PORQUE é homossexual (reparem
que mais uma vez o PORQUE faz parte do X da questão, linguística,
sociolinguística e antropológica).
Enquanto este momento
não chega, a legalidade precisa cumprir uma tarefa dúplice: igualar
os direitos de todos (indo ao fato social existente) e compensar os
contumazes reacionários que se opõem a essa igualdade (indo ao
valor). Em outros termos, trata-se de tratar os iguais de maneira
igual, e aos desiguais de maneira desigual, na medida em que Se
desigualam: o princípio da proporcionalidade.
Numa conversa que tive
com Élisabeth Roudinesco, ela me disse que, em seu sonho, a
sociedade ideal será aquela que conseguir unir liberdade a
legalidade. Ainda segundo ela, algo com que eu concordo, nem sempre
essa união é possível, pois muitas vezes a legalidade, em vez de
promover a liberdade, cerceia-a. Creio, por meu turno, que seja pelo
que esbocei há pouco: ocorre uma legalidade que cerceia a liberdade
toda vez que um FATO existe sem que o VALOR justo lhe seja inferido.
Eu já disse muitas
vezes, ecoando grandes pensadores, que o maior equívoco do mundo
moderno é crer que a democracia é o regime exclusivamente das
maiorias. As minorias e/ou grupos secundários têm voz e vocalidade
no regime democrático, e seus direitos são tão substanciais quanto
os de qualquer maioria.
O regime que só lida
com maioria, com “norma”, não se chama democracia: chama-se
ditadura, fascismo, nazismo.
Erradicar as minorias e
igualar todo e qualquer grupo num único seja lá o que for –
conceito, ideia, ideologia, religião, cor de pele – sempre tem
sido o sonho dos portentosos ditadores que habitaram a Terra, de
Hitler a Herodes.
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