Por Paulo Stekel (texto publicado originalmente em http://gayexpression.wordpress.com/2011/05/06/enfim-existimos)
Como alguém pode duvidar disso? Como alguém pode dizer que não
existimos, que não temos direitos iguais e, contraditoriamente,
atacar-nos com uma Bíblia na mão? Sim, existimos, e – com a permissão do
velho lobo, Zagallo – vão ter que nos engolir!
Os dias 04 e 05 de maio de 2011 foram os mais importantes para a
comunidade LGBT até aqui. Ao analisar duas ações, uma proposta pela
Procuradoria-Geral da República e outra pelo governo do estado do Rio de
Janeiro, em votação unânime (10X0), o Supremo Tribunal Federal (STF)
reconheceu a união estável homoafetiva, ou seja, entre casais do mesmo
sexo como sendo uma entidade familiar.
A “entidade familiar”
Até agora, apenas três tipos de entidade familiar eram reconhecidas
em juízo: o casal heterossexual no casamento civil, o casal
heterossexual em união estável e a pessoa solteira (qualquer dos pais e
seus descendentes). No primeiro caso, bastava o casamento civil entre um
homem e uma mulher; no segundo, bastava a união estável (isto é, sem o
casamento civil) entre um homem e uma mulher; no terceiro caso, bastava
que um homem ou uma mulher fossem pais para pleitear direitos de família
mesmo sem estarem casados ou sequer em união estável. O que o STF
reconheceu em 05 de maio é que quando duas pessoas do mesmo sexo vivem
em união estável, isso também é uma entidade familiar, com os mesmos
direitos e deveres incidentes sobre a união estável entre
heterossexuais. Isso criou um precedente que aos poucos será seguido
pelas demais instâncias judiciais e também pela administração pública.
O número de pessoas que serão beneficiadas com esta conquista de mais
cidadania ainda é indefinido, apesar do Censo Demográfico 2010 ter
apontado que o Brasil tem mais de 60 mil casais homossexuais vivendo em
união estável homoafetiva. Se considerarmos que muitos casais não
manifestaram publicamente sua condição por vários motivos, esse número
pode ser muito maior, na realidade. Mas, a decisão atual abre caminho
para a aprovação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, que é
direito garantido a casais em união estável no art. 226 da Constituição
Federal: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei
facilitar sua conversão em casamento.”
União estável não é casamento civil!
Acompanhei pela imprensa toda a votação no STF e a reação da comunidade LGBT pelas redes sociais, em especial o Twitter,
por sua resposta rápida. O que percebi foi uma generalizada confusão
entre união estável e casamento civil de parte da comunidade LGBT. Mas,
consultando a lei, a diferença é clara! A união estável acontece sem
quaisquer formalidades, naturalmente, a partir da convivência do casal
que forma uma “família espontânea” (no entender do ministro do
STF, Luiz Fux), isto é, sem a necessidade de aprovação de um juiz ou um
sacerdote. Tanto é assim, que após uma separação, há que se comprovar a
união estável para que esta gere direitos e obrigações a ambas as partes
(direitos sobre filhos, pensão alimentícia, etc). Já o casamento civil é
um contrato jurídico formal estabelecido entre duas pessoas, até o
momento, de sexos opostos. Não é isso que o STF reconheceu para pessoas
do mesmo sexo, e sim, a união estável, ao contrário da Argentina, que em
julho de 2010 se tornou o primeiro país da América Latina a autorizar
gays a se casarem e a adotarem filhos.
O que o STF decidiu foi simplesmente o reconhecimento da união
estável gay como entidade familiar. Esse reconhecimento para a servir
como recomendação em instâncias jurídicas para que casais gays passem a
ter os mesmos direitos de heterossexuais em união estável, apesar da
ressalva do ministro do Supremo, Ricardo Lewandowski: “Entendo que
uniões de pessoas do mesmo sexo, que se projetam no tempo e ostentam a
marca da publicidade, devem ser reconhecidas pelo direito, pois dos
fatos nasce o direito. Creio que se está diante de outra unidade
familiar distinta das que caracterizam uniões estáveis heterossexuais”.
Neste caso, teríamos uma quarta entidade familiar: a formada pela união
estável homoafetiva. Mas, se for assim, quando o casamento civil for
aprovado, teremos uma quinta entidade familiar formada por duas pessoas
em casamento civil homoafetivo? São respostas que serão dadas ao longo
do tempo e conforme as decisões dos magistrados caso a caso, à medida
que a comunidade LGBT for atrás de seus direitos.
Uma dúvida que percebi nas redes sociais é sobre como garantir o
reconhecimento da união estável a partir da decisão do STF. Antes mesmo
dela os casais homoafetivos já podiam registrar a união em cartório.
Mas, até então, tratava-se de um contrato que definia há quanto tempo o
casal estava em união estável, como seria a divisão de bens, etc. Ou
seja, a relação era considerada um “regime de sociedade”, não uma
entidade familiar. Então, não se previa “separação”, mas algo
equivalente a uma “quebra de sociedade”. (Eu e meu companheiro assinamos
este contrato em dezembro de 2007 e, recentemente, ele foi aceito pela
Caixa Econômica Federal num financiamento para casa própria como parte
da comprovação de renda conjunta.) Agora, a regulamentação virá com o
tempo, mudando o status de “regime de sociedade entre duas pessoas do
mesmo sexo” (regido pelo Código Civil) para “união estável homoafetiva”
(regida pelo Direito de Família). Mas até que isso ocorra, os casais
homoafetivos vão continuar tendo que recorrer à Justiça para obter seus
direitos. O bom é que, a partir de agora, as decisões tenderão a ser
mais rápidas, favoráveis e homogêneas.
Direitos que passam a ser garantidos
Mas, o maior interesse da comunidade LGBT está em saber quais
direitos passam a ser garantidos ou, melhor, pleiteáveis em juízo, em
casos de ação de reconhecimento de união estável que devem, a nosso ver,
transcorrer de modo semelhante às ações do mesmo tipo entre casais
heterossexuais. São centenas de direitos, alguns mais importantes, e que
devem ser destacados.
Um deles é a declaração da união em regime de comunhão parcial de
bens (o direito incide sobre o que se conquistou em conjunto após o
início da união estável). Outro, é o direito a pensão alimentícia em
caso de separação judicial, além de pensões do INSS que, aliás, já são
concedidas para os companheiros gays de pessoas falecidas – a decisão do
STF apenas dá mais respaldo jurídico. Os planos de saúde ou familiares
não poderão se negar em aceitar, nem mesmo em juízo, parceiros gays como
dependentes, apesar da maioria deles já possibilitar esta prática. A
Receita Federal também já aceita que os homoafetivos declarem seus
companheiros como dependentes. As políticas públicas deverão incluir os
casais homoafetivos, e não de forma modesta, como ocorre.
Um dos direitos que consideramos mais importantes como consequência
da decisão do STF é o de sucessão. Já vimos muitos casos de casais gays
em que, ao morrer um dos companheiros, o outro ficou sem nada, pois os
bens adquiridos em conjunto passaram à tutela da família do falecido.
Isso deve mudar, felizmente.
Outro direito importantíssimo, mas que cabe entender bem, é o de
adoção. A lei tem permitido a gays a adoção, mas sabemos que sempre se
dá preferência a casais heterossexuais (tanto em casamento civil como
união estável). Com a decisão do STF, reconhecendo a união estável
homoafetiva como unidade familiar, as decisões favoráveis serão
facilitadas em grande medida.
Enfim, a existência…
Existir é a primeira condição para ser visto. Sem existência, sem
visibilidade. Falamos “existência” no sentido jurídico e social. Se a
sociedade nega (moralmente falando) nossa existência, e a lei a
acompanha, ficamos num vazio total. Não somos visíveis nem para a
sociedade (o costume), nem para a lei, nem para a religião…
Mas, os tempos estão mudando. A sociedade já sabe de nós, nos vê e,
em boa medida, nos apoia. A lei começou a ratificar-nos, finalmente.
Mas, a religião, especialmente a ala fundamentalista cristã, esta é um
jogo-duro… O catolicismo e o neopentecostalismo pregam um discurso
confuso, hipócrita e contraditório de “amamos os gays mas não aceitamos
suas práticas”. Não são práticas, são vivências! Prática tem menor
implicação que vivência, pois esta última advém da essência do ser. E, o
ser gay é algo intrinsecamente conectado à vontade natural do ser que
assim nasceu. Há uma vida gay (pois se nasceu assim) muito mais que uma
prática gay! Práticas homossexuais são comuns em instituições
prisionais, mas não constituem, necessariamente, uma vida homossexual,
salvo nos casos em que o sentir-se homossexual esteja intrinsecamente
ligado à alma do ser. Mesmo porque, no caso das prisões, as práticas
homossexuais se inserem muito mais na classificação do estupro (como
forma de humilhação) ou da ausência de sexo oposto (diante dos
imperativos fisiológicos) do que na orientação homossexual de fato, esta
sim, baseada no sentir atração pelo mesmo sexo como algo constante e
não transitório.
A lei reconheceu que existimos. Se existimos, somos tutelados pela
lei do país em que vivemos e, neste caso, temos direitos e deveres, dos
fundamentais aos últimos. E, os queremos todos! Só assim seremos
cidadãos plenos e não cidadãos de segunda classe num país laico, como já
escrevi em outro artigo. Se a religião não nos quer reconhecer como
existindo e tendo direitos de cidadania, abdique de ter-nos como seus
fiéis agindo segundo suas normas ultrapassadas e sufocantes do ser.
Invocar regras deuteronômicas do Antigo Testamento para validar
determinados preconceitos, esquecendo de aplicar outras, por simples
conveniência, é de uma hipocrisia, má-intenção e manipulação tal que
envergonha qualquer Deus por acaso existente… E, mesmo Deus sabe que
existimos, pois, se nos criou como somos, não será Ele a negar-nos…
antes, justifica-se através de nós e desvela aos olhos do mundo que seus
auto-declarados porta-vozes não passam de vendilhões do Templo!
Blogue do Movimento Espiritualidade Inclusiva. Artigos sobre visão inclusiva nas diversas formas de espiritualidade; denúncias de preconceito religioso e fundamentalista contra LGBTs; dicas de blogues, sites, filmes e documentários; tradução de artigos; divulgação de eventos LGBT e os inclusivos; notícias do mundo LGBT; decisões legislativas e debates políticos relativos aos direitos LGBT; temas culturais relevantes. Contato: espiritualidadeinclusiva@gmail.com
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
Enfim, existimos!
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Um comentário:
A maior parte dos relacionamentos homossexuais são relacionamentos estaveis, mas "abertos". Logo não vejo onde há a estabilidade que mereça a denominação certa para o casamento. A própria palavra casamento indica um só, ou seja, o casamento é para duas pessoas só, e não para duas pessoas que têm terceiras, quartas e quintas, mesmo que seja apenas no ambito de sexo sem compromisso.
Sou LGBT e não sou a favor do casamento homossexual, pelo menos enquanto tamanha promiscuidade estiver presente no intimo da larga maioria dos LGBT. Não faz sentido.
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