quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

David e Jônatas: homo-afetividade bíblica?

Por Paulo Stekel
 Há muitos anos me interesso pela história homo-afetiva de David e Jônatas, um, o pai do futuro Rei Salomão, o outro, filho do tirânico Rei Saul. Não são poucos os pesquisadores, linguistas, arqueólogos e até sacerdotes cristãos que imaginam no relato bíblico sobre estas personagens uma relação homo-afetiva velada. É claro que a ala fundamentalista do Cristianismo rechaça a ideia com toda a veemência do seu discurso sempre vazio de argumentos mas cheio de agressividade. Contudo, os indícios existentes no próprio texto bíblico não são pouco nem irrelevantes.

Em meu livro “Elohê Israel – filosofia esotérica na Bíblia” (versão impressa de 2001 e versão digital de 2006 – baixe trechos do livro em http://stekelmusic.blogspot.com/2011/05/livros-de-stekel-e-books-em-pdf.html), uma das obras que uso como material didático em meus cursos de Cabala, Hebraico antigo e Interpretação Bíblica, discorri sobre o tema analisando o que diz o texto original em Hebraico. Reproduzo abaixo os trechos do livros sobre David e Jônatas, com algumas inserções adequadas para o presente artigo:

“A história de David é uma das mais controversas e impressionantes do Antigo Testamento. Muitos dos seus feitos foram exagerados pelos redatores. A vitória sobre o gigante filisteu Golias pode não ter sido sua (cfe. I Sm 17.40-54), pois II Sm 21.19 diz: “Ainda em Gob, noutra guerra contra os filisteus, Elcanã, filho de Jair, de Belém, matou Golias de Gat; a madeira de sua lança era como cilindro de tear.” Se vê que não era consenso em Israel ter sido David o matador do Golias filisteu.

Morto o gigante, Saul passou a invejar David, enquanto o povo admirava o jovem. O próprio filho de Saul, Jônatas, parece ter amado David mais do que seria aceitável na sociedade israelita daquela época, embora fosse aceitável para os povos vizinhos a Israel. Atualmente, alguns teólogos têm aventado a hipótese de uma ligação homossexual entre David e Jônatas. Apesar da ideia causar espanto, na Grécia antiga esta era uma prática perfeitamente aceitável entre os homens, principalmente em períodos de guerra, quando os guerreiros abandonavam suas esposas para lutar. Entre os povos vizinhos a Israel esta parece ter sido uma prática muito comum, e deve ter sido tolerada em Israel por muito tempo, até ser criminalizada pelos sacerdotes deuteronomistas pós-exílicos. David, entretanto, como se sabe, tinha uma queda irresistível pelas práticas “pagãs”!

I Sm 18.1,3 diz: “Aconteceu que, terminando ele [David] de falar com Saul, a alma de Jônatas
apegou-se à alma de David
[orig. Hebraico -
venéfesh yehonathan niqsherah benéfesh davidh]. E Jônatas começou a amá-lo como a si mesmo [orig. Hebraico - vaye'ehavehu yehonathan kenafsho]. (...) Jônatas fez um pacto com David, porque o amava como a si mesmo. Jônatas tirou o manto que vestia e o deu a David, e também lhe deu a sua roupa, a sua espada, o seu arco e o seu cinturão.”

As roupas são parte da personalidade. Então, ao dar suas roupas a David, o apaixonado Jônatas, pego, ao que parece, por um amor à primeira vista, se tornou ligado a David de um modo indissolúvel, como se fossem “almas gêmeas”.

"O termo “nefesh”, que se traduz por “alma” equivale também ao corpo na Cabala. Assim, a tradução incluiria o sentido: “(...) o corpo de Jônatas ligou-se ao corpo de David. E Jônatas começou a amá-lo como a seu próprio corpo.” Não se trataria de uma simples amizade, como nos tentaram fazer entender os redatores do livro de Samuel. Afinal, a lei deuteronomista não aprovava este tipo de relação, abominada por ser considerada prática pagã.

Analisemos mais alguns trechos sobre esta questão: “Ora, Jônatas, filho de Saul, tinha muita afeição [orig. Hebraico -
chafets] por David.” [I Sm 19.1] O termo “chafets” significa “gostar” e “desejar”. Devemos entender que Jônatas tinha “muito desejo por David”?"

Este trecho analisado se refere a um dos vários momentos em que Jônatas defende David dos ataques de seu pai, o Rei Saul:

“Saul comunicou a seu filho Jônatas e a todos os seus oficiais a sua intenção de levar David à morte. Ora, Jônatas, filho de Saul, tinha muita afeição por David, e advertiu a David dizendo: 'Meu pai busca a tua morte. Fica de sobreaviso amanhã de manhã, procura o teu refúgio e esconde-te. Eu sairei e permanecerei ao lado do meu pai no campo em que estiveres, e então falarei com meu pai a teu respeito, saberei o que houver e te informarei.'”

Quanto amor! Quando David precisou fugir em definitivo de Saul, que o queria matar:

“Então David fugiu das celas de Ramá e veio ter com Jônatas, dizendo: 'Que fiz eu? Qual a minha falta? Que crime cometi contra teu pai, para que procure tirar-me a vida?' Ele lhe respondeu: 'Longe de ti tal pensamento! Tu não morrerás. Meu pai não empreende coisa alguma, importante ou não, sem confiá-la a mim. Por que ocultaria tal plano de mim? Impossível!' David fez este juramento: 'Teu pai sabe perfeitamente que me favoreces e, portanto, diz consigo: 'Não saiba Jônatas nada a respeito disso, para que não sofra'. Mas, tão certo como vive Iahweh e como tu vives, existe só um passo entre mim e a morte.' Jônatas disse a David: 'Que queres que eu faça por ti?'” (I Samuel 20)

A cumplicidade entre ambos é evidente neste e em outros trechos. O que incomodava Saul, além da inveja do herói que David era, pode ter sido a ligação homo-afetiva deste com seu filho Jônatas. Ambos eram casados com mulheres mas, à moda grega, isso não seria impedimento naquela época para momentos homo-afetivos.

"I Sm 20.17 diz que Jônatas “o amava com toda a sua alma”. As ambições dos dois talvez fossem
maiores do que essa “amizade grega”, pois no momento em que Saul perseguia David, Jônatas o protegia de cada ataque, e disse, em I Sm 23.17: “Não temas, porque a mão de meu pai Saul não te atingirá. Tu reinarás sobre Israel, e eu serei o teu segundo. Até mesmo meu pai Saul bem sabe disso.” Seria possível que os dois reinassem juntos, caso Jônatas não tivesse sido morto em batalha? Para alívio dos ortodoxos, eivados de preconceitos e hipocrisia, esta é uma pergunta sem resposta.


Após a morte de Saul e Jônatas, David compôs uma lamentação (II Sm 1.19-27), onde, acerca do
amigo, revela: “Jônatas, a tua morte dilacerou-me o coração, tenho o coração apertado por tua causa, meu irmão [orig. Hebraico -
'achí] Jônatas. Tu me eras imensamente querido, a tua amizade [orig. Hebraico - 'ahavathkhá] me era mais cara do que o amor das mulheres [orig. Hebraico - me'ahavath nashim].” Há aqui um flagrante do receio de se traduzir corretamente um trecho pelas implicações que isso pode acarretar. O termo hebraico traduzido por “amizade” é o mesmo traduzido por “amor” das mulheres – é o termo 'ahavah, que significa “o amar, amor, amizade” e deriva do verbo 'ahev - “gostar, amar”. Assim, a tradução correta seria: “(...) o teu amor me era mais caro do que o amor das mulheres”! Fica claro, pela palavra usada, que David se refere ao mesmo tipo de amor, o do companheirismo de um relacionamento! Por isso o chama de 'achí, que, além de “meu irmão”, significa “meu companheiro”."

A lamentação completa de David a Jônatas é cheia de uma saudade amorosa impressionante:

“Pereceu o esplendor de Israel nas tuas alturas?
Como caíram os heróis?

Não o publiqueis em Gat,
não o anuncieis nas ruas de Ascalon,
que não se alegrem as filhas dos filisteus,
que não exultem as filhas dos incircunsisos!

Montanhas de Gelboé,
nem orvalho nem chuva se derramem sobre vós,
campos traiçoeiros,
pois foi desonrado o escudo dos heróis!

O escudo de Saul não foi ungido com óleo,
mas com o sangue dos feridos,
com a gordura dos guerreiros;
o arco de Jônatas jamais hesitou,
nem a espada de Saul foi inútil.

Saul e Jônatas, amados e encantadores,
na vida e na morte não se separaram.
Mais do que as águas eram velozes,
mais do que os leões eram fortes.

Filhas de Israel, chorai sobre Saul,
que vos vestiu de escarlate e de linho puro,
que adornou com ouro
os vossos vestidos.

Como caíram os heróis
no meio do combate?
Jônatas, a tua morte dilacerou-me o coração,
tenho o coração apertado por tua causa, meu irmão Jônatas.

Tu me eras imensamente querido,
o teu amor me era mais caro
do que o amor das mulheres.
Como caíram os heróis
e pereceram as armas de guerra?”


Me lembro, neste momento, da história do Imperador Adriano e de seu amante Antinous, pois aqui só estão faltando as estátuas votivas espalhadas pelo mundo antigo e o endeusamento do mancebo...

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