segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

[Internacional] Para o gay muçulmano, o armário possui sete chaves

Por Miguel Ángel Medina (Traduzido por Espiritualidade Inclusiva do jornal espanhol El País cfe. http://sociedad.elpais.com/sociedad/2012/02/27/actualidad/1330310577_794728.html)

(Um casal homossexual em uma cidade do Marrocos / I. C. )

A homossexualidade continua sendo tabu no mundo islâmico
Muitos se rebelam, em especial na Europa


A homossexualidade é um tema tabu na maioria dos países de tradição islâmica: os vizinhos Argélia ou Marrocos, por exemplo, tipificam como delito os “atos homossexuais” e os cinco Estados que condenam os gays à morte são muçulmanos. Na Espanha, onde a maior parte desta comunidade está formada por imigrantes de primeira ou segunda geração, estes preconceitos continuam existindo e, em muitos casos, levam estas pessoas a negar sua identidade sexual ou ocultá-la de suas famílias. Mas, as vozes que reivindicam a compatibilidade entre o Alcorão e a realidade homossexual também começam a se fazer ouvir.

“Quando sabemos que alguém é gay o rejeitamos e paramos de falar com ele”, admite o marroquino Achraf el Hadri, de 27 anos e residente em Madri. A presidenta da União de Mulheres Muçulmanas da Espanha (UMME), Laure Rodríguez, vai mais além: “Existe uma lesbofobia e uma homofobia generalizada dentro das comunidades muçulmanas em nosso país”. “As escolas de jurisprudência islâmica sempre consideram a sodomia como algo proibido”, confirma Abdennur Prado, presidente da Junta Islâmica Catalã (JIC).

Neste contexto, os muçulmanos que planejam o que popularmente se chama sair do armário muitas vezes enfrentam um processo muito complexo. Como explica Manuel Ródenas, coautor do “Estudo sociológico e jurídico sobre homossexualidade e mundo islâmico” (Cogam, 2007): “A característica fundamental dos homossexuais muçulmanos é que vivem em dois mundos muito diferentes: por um lado, suas famílias, que não sabem de nada, e, por outro, com os amigos. São redes que jamais se tocam nem se misturam”. Lola Martín, coautora do estudo, considera que estas pessoas vivem em um “armário duplo” e destaca que alguns deles, inclusive, tratam de ocultar que procedem de países árabes.

A presidenta da UMME está realizando um estudo entre mulheres muçulmanas que vivem na Espanha, com as quais tem contato através das redes sociais. “O ponto em comum de todas as lésbicas que entrevistei é um processo longo, traumático e doloroso para decidirem-se entre sua religiosidade, sua sexualidade ou tentar viver de forma equilibrada”, conta Rodríguez, que já falou com umas 20 delas.

Esta trabalhadora social de 36 anos critica que em vários casos, quando alguma destas mulheres se atreveu a dar o passo e solicitar informação em qualquer associação LGBT, “a primeira mensagem que recebeu dizia que, para ser liberada, teria que abandonar sua crença”. Desde o Coletivo de Lésbicas, Gays, Transsexuais e Bissexuais de Madri (COGAM), negam que suas organizações ajam assim: “Acreditamos na liberdade do indivíduo”, respondem, “e não fazemos diferenciação por causa de religião”.

Shiraz (nome fictício) ilustra como este ambiente pode afetar uma mulher procedente de um país árabe, seja muçulmana ou não. No seu caso, chegou à Espanha há 17 anos e, naquele momento, não se considerava uma pessoa homossexual. “Desde jovem eu gostava de mulheres, mas ao viver na Tunísia, onde não tinha referências, não sabia o que me acontecia e tinha muitas dúvidas”, confessa. “No meu país gostava muito de uma professora, mas eu atribuía isso à admiração”, continua, “e até que emigrei, na verdade, não comecei a assimilar”.

Esta mulher, na casa dos 50 anos, tem o prazer de ter experimentado o processo de assumir sua lesbianidade na Espanha. “Na Tunísia teria padecido um calvário ou teria escondido”, assinala. Na verdade, ninguém de sua família —que vive naquele país— sabe nada sobre sua condição sexual, apesar de serem “muito abertos” para os padrões daquele lugar. “Ali, muitos homossexuais têm uma vida dupla, e alguns até chegam a contrair um matrimônio tradicional para escondê-la”. A tunisiana comenta que nunca se considerou uma pessoa religiosa. “Mas, a educação que lhe dão desde criança influi, e há coisas que lhe escapam mesmo sem se dar conta”, admite.

Ajudaria a mudar esta situação uma organização LGBT especificamente muçulmana? Na França, onde há imigrantes de terceira e quarta geração, a associação Homossexuais Muçulmanos da França (HM2F) tem lutado desde 2010 pelos direitos deste grupo. “Não temos que deixar de ser muçulmanos por sermos homossexuais”, explica seu fundador, Ludovic L. Mohamed Zahed, de 34 anos. Sua ação é centrada em trabalhar por um islã inclusivo no qual esta comunidade tenha lugar e em demonstrar que excluir da sociedade as mulheres ou os gays “não é islâmico”. Demonstram isso através do Alcorão, o livro sagrado do islã, e dos Hadith, a tradição oral sobre a vida do Profeta.

Para debater sobre estes assuntos, Zahed organizou um congresso europeu, chamado Calem, que celebrou sua segunda edição reunindo 250 pessoas em dezembro passado em Bruxelas (Bélgica), e cujas conclusões tem apresentado em conferências em Paris, Lisboa e Madri. O fundador da HM2F já prepara o terceiro Calem, que pretende levar também à Itália, Suíça e Luxemburgo.

Mas, na Espanha não existe una organização similar, segundo confirma a Federação Estatal de Lésbicas, Gays, Transsexuais e Bissexuais (Felglt). “Há alguns muçulmanos em associações LGBT e outros vinculados às organizações muçulmanas mais abertas”, conforme nota da Federação. O mais parecido é o grupo KifKif (“como iguais”, em árabe), que trabalha pelos direitos dos gays no Marrocos, mas também pelos dos que cruzam o Estreito [de Gibraltar]. “Nosso âmbito de atuação é fundamentalmente o país vizinho, mas tivemos que nos registrar como associação na Espanha porque lá a homossexualidade é considerada como delito”, explica Samir Bargachi.

A história deste marroquino de 24 anos é tão complexa quanto a de outros imigrantes que decidiram sair do armário ao emigrar: confessar sua condição sexual supõe que parte de sua família e muitos de seus amigos tenham deixado de lhe falar.

No entanto, Bargachi, que vive na Espanha há 12 anos, não se conformou que as coisas sejam sempre assim. Por isso, iniciou uma associação para defender os direitos dos homossexuais árabes. “Nosso trabalho na KifKif está focado principalmente na comunidade do magrebe e de outros países árabes, mas não nos consideramos uma associação muçulmana, mas leiga”, afirma Bargachi. “Na Espanha, temos um grupo de apoio da comunidade marroquina formado por umas 10 pessoas, mas nosso trabalho está centrado no Marrocos”.

Em sua opinião, “a comunidade muçulmana na Espanha ainda é homofóbica”, porque está formada, na sua maior parte, por imigrantes de primeira ou segunda geração. “Meus pais, por exemplo, não estão totalmente integrados, apesar de já viverem aqui há muito tempo”, acrescenta. Com seu trabalho, o marroquino pretende sensibilizar este grupo, assim como abrir o debate sobre a homossexualidade no Marrocos. Lá, este jovem criou a revista Mithly, a primeira que fala destes temas naquele país, e em língua árabe. Foram editados quatro números impressos e, atualmente, continuam sendo publicados na Internet.

As vozes contra a homofobia surgem de dentro do próprio islã espanhol. “Não há qualquer base que justifique a perseguição dos homossexuais no Alcorão”, afirma, taxativo, Abdennur Prado, que dedicou a este tema um capítulo de seu livro “O Islã antes do Islã” (Oozebap, 2008). Para Prado, aqueles que afirmam que a homossexualidade está proibida por esta tradição estão equivocados: “O hadith a que se referem fala dos seguidores de Ló, o mesmo episódio que na Bíblia concentra-se em Sodoma e Gomorra. Mas, lendo com atenção, se comprova que não fala de relações homossexuais, mas da violação de estrangeiros e do desrespeito à leis da hospitalidade”, afirma Prado, de 44 anos.

O presidente da Junta Islâmica Catalã, que participou do congresso em Bruxelas, defende que, segundo a tradição oral sobre a vida do profeta, nos tempos de Maomé existiam homossexuais, que se chamavam muhandazun e a quem o enviado de Alá sempre defendeu. Prado destaca, além disso, que, no mundo islâmico, há muitos exemplos de poesia e literatura homoerótica, isto é, erótica e de temática homossexual, uma tradição que decaiu com a chegada do colonialismo europeu aos países árabes.

O desafio, agora, é que o debate seja ampliado. E, parece que os primeiros passos poderiam ser dados em breve. “No futuro, sou favorável a que haja um debate sobre a homossexualidade nas comunidades muçulmanas da Espanha”, comenta Mohamed Hamed Alí, presidente da Federação Espanhola de Entidades Religiosas Islâmicas, que agrupa mais de 100 associações em toda a Espanha. “É uma questão que está aí e ninguém pode negar, ainda que possamos não estar de acordo em algo, mas sempre dentro dos parâmetros da democracia e da Constituição espanhola”, confirma Alí, de 58 anos. Prado ressalta: “O Alcorão diz que Deus está sempre com os perseguidos, e tenho claríssimo que é assim, que os crimes que estão sendo cometidos contra os homossexuais e as lésbicas são aberrantes. É para mim um dever religioso como muçulmano lutar contra essa injustiça”.

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“Parte de minha família deixou de falar comigo ao dizer-lhes que sou gay”

O marroquino Samir Bargachi (Nador, 1987), que vive na Espanha há 12 anos, fundou a associação Kifkif para defender os direitos dos gays no Marrocos.

Pergunta. Como você assumiu que era homossexual?

Resposta. O processo para assumir minha homossexualidade foi muito complicado, porque venho de um espaço cultural, Marrocos, onde a sexualidade não é tratada em público. Quando me dei conta do que sentia estava totalmente desinformado, não sabia o que me acontecia e nem sequer punha um nome ao que me passava. Meu caminho para chegar a esta conclusão se iniciou no meu país natal e continuou depois na Espanha, onde fui morar com minha família em 2000. E, na verdade, não pude contá-lo até que saí de casa. Mais adiante, quando passei a viver fora da casa de meus pais, então pude agir com mais liberdade.

P. Perdeu amigos por dizer que é gay?

R. Confessar minha condição sexual me custou muitas amizades e uma parte de minha família deixou de falar comigo.

P. Qual foi a reação de sua família naquele momento?

R. A princípio, decidi não contar a meus familiares, porque a maioria deles são conservadores e religiosos. Na verdade, temia mesmo que me expulsassem de casa se o confessasse; isto é, tinha alguns medo concretos e reais. Quando minha família soube, minha mãe entendeu, mais ou menos, e continuo tendo uma boa relação com ela e com minhas irmãs. Já meu pai, pelo contrário, foi muito afetado e perdi o contato com ele.

P. Conhece casos similares?

R. Sim, este padrão se repete com outros amigos árabes e muçulmanos, a quem ocorreu o mesmo; isto é, suas mães entendem, seus irmãos homens, menos, e seu pai, nada.

P. A comunidade muçulmana na Espanha é homofóbica?

R. Totalmente. Na Espanha, a imigração muçulmana ainda é uma imigração recente, de primeira ou, quando muito, de segunda geração, e por isso seu código cultural vem destes países. É muito diferente do caso da França ou Reino Unido, onde já vão para uma terceira ou quarta geração e, portanto, há muito mais integração que aqui.

P. Está proibida a homossexualidade no islã?

R. Eu não tenho a mesma opinião que os sábios muçulmanos que dizem isto, e tenho amigos que são religiosos e pensam como eu. No Alcorão unicamente se fala da história de Ló, e está claro que não se refere à homossexualidade, mas a violações, vexações… algo muito diferente.

P. Você se considera muçulmano?

R. Sou uma pessoa muçulmana culturalmente, isto é, que essa é a cultura na qual me eduquei. Entretanto, não me considero religioso.

P. Você já teve uma rede dupla de amigos?

R. Agora, a maioria de meus amigos são espanhóis que conheci no colégio, mas efetivamente, até pouco, tinha dois grupos de amigos: por um lado, os espanhóis, a quem contei de minha homossexualidade e, por outro, os de tradição muçulmana com que se relacionava minha família (amigos de meus irmãos, vizinhos…) que não sabiam de nada. Com eles era muito difícil encaixar todas as facetas de minha vida: imigrante, muçulmano e homossexual.

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