domingo, 12 de agosto de 2012

Espiritualidade e Identidade Gay


Por Paulo Stekel


Vou confessar a vocês! Tive a ideia deste artigo após consultar as estatísticas do blogue Espiritualidade Inclusiva e constatar que alguém pesquisou exatamente sobre isso. Tal indivíduo devia estar buscando alguma relação entre sua identidade gay e a espiritualidade, esperando encontrar algum alento para um conflito interno, talvez. Vamos ajudá-lo!

A primeira coisa a definir é “identidade gay” ou, como poderia ser mais amplamente nomeada, “identidade LGBT”. Depois, precisamos observar se esta identidade é em algo compatível ou incompatível com uma busca espiritual.

Identidade gay tem a ver, obviamente, com padrões de pensamento, formas do gay ver a si mesmo, o tipo de significado que atribui às suas atrações homossexuais e o que isso significa para ele.

A psicóloga Vivienne Cass (Austrália) desenvolveu um modelo de formação de identidade gay, o Model of Homosexuality Identity Formation, que pode ajudar a definir como se processa a formação de tal identidade, ainda que não explique em maiores detalhes como isso acontece.

Segundo esse modelo, a formação da identidade gay passa por seis estágios que, uma vez alcançados, o que não ocorre em todos os gays e nem é uma necessidade imperativa, determinam uma certa prontidão para a instalação de um repertório emocional/comportamental, tanto no nível pessoal como no social.


1. Confusão de identidade: nesse estágio o individuo começa a notar, a reconhecer e a aceitar sua atração sexual por outros homens. Mas não se imagina gay e identifica-se como heterossexual. Nem todos os indivíduos que estão nesse estágio irão passar para o estágio seguinte. Alguns aceitam suas fantasias homoeróticas, mas nem por isso consideram a possibilidade de se tornarem gays.

2. Comparação de identidade: durante esse estágio o indivíduo começa a considerar a possibilidade de que talvez seja homossexual. Ele provavelmente não emprega a palavra gay, uma vez que essa palavra está associada a um estilo de vida muito particular, com o qual ele não se identifica. É possível que aceite seu comportamento sexual, mas recuse a identidade. Ou que aceite a identidade, mas decida reprimir seu comportamento homossexual.

3. Tolerância de identidade: aqui, o individuo já começa a identificar-se como gay, embora ainda tenha dificuldades em se aproximar da cultura gay. Nesse estágio as experiências (positivas ou negativas) são determinantes para a continuidade (ou não) no processo de formação e para que ele se mova (ou não) ao estágio seguinte.

4. Aceitação de identidade: a passagem do estágio de tolerância para o de aceitação se dá a partir de um sentimento de pertencimento e de identificação com a comunidade gay. Nesse estágio o indivíduo tende a rejeitar os segmentos antigays da sociedade e a se aproximar cada vez mais de outros gays, adotando comportamentos, hábitos e linguagem própria do grupo gay com o qual se identifica.

5. Orgulho de identidade: nesse estágio o indivíduo identifica-se totalmente como gay, reforçando, sempre que possível, as diferenças entre gays e heteros. Podem surgir sentimentos de “nós contra eles” e uma necessidade de se assumir completamente. Esse costuma ser o estágio da maior parte dos ativistas.

6. Síntese de identidade: no último estágio prevalece a integração entre gays e heteros, e o indivíduo começa a compreender que nem todos os heterossexuais são antigays. O indivíduo reconhece e luta contra a homofobia e o preconceito, mas de uma forma mais tranqüila e sem sentir-se ameaçado. Consegue integrar sua afetividade e sua sexualidade a todas as áreas da vida.

O fato é que provavelmente conhecemos pessoas LGBT em todos esses estágios.

Alguns gays se consideram heterossexuais a vida toda, pois mesmo tendo “casos” rápidos com pessoas do mesmo sexo, consideram que, sendo casados com alguém do sexo oposto, não se consideram como tendo uma identidade diversa da maioria. Outros gays até se consideram como tais, mas evitam qualquer aproximação com a cultura gya, os assuntos relacionados, ficando a parte de qualquer ativismo pró-direitos LGBT.

No meio religioso, o que impera é o desenvolvimento tardio da identidade gay. Gays cristãos, por exemplo, só começam a desenvolver sua identidade após chegar ao ensino superior, convivendo com outros gays em estágio de desenvolvimento maior. Alguns padres cristãos gays aceitam sua identidade, mas reprimem seu comportamento, considerando-o pecaminoso.

Uma ressalva à expressão “orgulho” usada no quinto estágio da psicóloga autraliana. Ela diz que neste estágio o indivíduo reforça “sempre que possível, as diferenças entre gays e héteros” e que esse “costuma ser o estágio da maior parte dos ativistas”. Na verdade, isso não tem nada a ver com o tão comentado (e polêmico) Orgulho Gay, mote das Paradas Livres pelo mundo afora. O verdadeiro Orgulho Gay tem mais a ver com uma sensação psicológica de “normalidade, afinal!” causada pela percepção de que ser LGBT não é uma aberração, mas está presente na natureza humana e até na animal, do que com uma atitude de superioridade. O que as Paradas Livres procuram enfatizar é essa “normalidade” e naturalidade da diversidade sexual, e não uma divisão do mundo social em LGBTs e Não-LGBTs.

Em A Identidade Gay: Uma Construção Histórica (ver http://www.pucsp.br/clinica/publicacoes/boletins/boletim10_07.htm), Elcio Nogueira afirma:

“A homossexualidade sofreu e ainda sofre, grandes preconceitos e estigmas, o sujeito homoerótico, é bastante estigmatizado, e as religiões sejam elas quais forem, ainda o colocam como o “porta-voz” do demônio, ou a aberração que tem de voltar aos caminhos de Deus. O Lócus social em que o indivíduo homoerótico foi obrigado a construir sua rede de identificações, suas subjetividades, ou o que lhe foi permitido desejar, e mesmo construir como relação possível com o outro, influíram e tiveram preponderância, nas hoje chamadas relações homoeróticas.”

Como hoje em dia alguns grupos do movimento LGBT têm criticado a comercialização de uma identidade gay e os auto-impostos guetos das culturas LGBT, nos referimos a “identidade gay” como uma construção da pessoa LGBT a partir de dentro e não de uma imposição ou pressão social. Tem mais a ver com o próprio auto-conhecimento do indivíduo acerca de sua sexualidade do que com uma construção midiática ou de marketing segundo certas doutrinas ou ideologias.

Exatamente aqui pode entrar o conceito de Espiritualidade, e é este conceito que pode diferenciar umas identidade gay “pura” de uma identidade forjada na mercadologia do momento.

No desenvolvimento da identidade gay nos moldes não mercadológicos que definimos, a busca da espiritualidade pode ser um auxiliar incrível. Mas, para isso, a relação com a espiritualidade deve ser mais profunda e interior que uma relação com alguma religião formal, embora esse segundo aspecto não esteja descartado nem seja contraproducente. Afinal, não há qualquer incompatibilidade entre busca espiritual e orientação sexual. O que é contraproducente é a prática de uma religião naturalmente homofóbica numa postura homofóbica. Então, se for para praticar religiões formais, que se busque os grupos inclusivos dentro delas.

Contudo, se estivermos falando em Nova Espiritualidade, uma tendência crescente no mundo e que se define por uma busca espiritual/religiosa transcendendo a religião formal, então, tudo o que ajude no autoconhecimento pode ser proveitoso.

Os aspectos de culto ao feminismo de algumas espiritualidade pagãs podem ajudar gays e lésbicas numa autocompreensão a partir da dualidade dentro de si mesmos, levando a uma integração de polaridades sem a necessidade de relações sexuais com o sexo oposto, por exemplo.

As práticas espirituais “xamânicas” que enaltecem a integração do ser humano com a natureza também podem ser úteis, pois mostram que a diversidade é a tônica do cosmos. Assim, o LGBT se percebe como parte natural do todo e não como um acidente de percurso.

Os grupos de meditação (Budismo, Hinduísmo, etc.) geralmente são mais amigáveis aos gays, o que pode ser uma boa forma de equilibrar mentes geralmente bagunçadas pela pressão social, familiar, e pelo preconceito homofóbico diário, sem contar um pouco de homofobia internalizada, uma forma de auto-flagelação.

Nos Estados Unidos, há comunidades de gays praticantes da “nova espiritualidade” que trabalham com xamanismo, mediunidade, canalização e que até “incorporam” o gender queer, um tipo de entidade espiritual gay. O Candomblé brasileiro já conhece isso, pois existem Orixás com aspectos masculinos e femininos, como Oxumaré.

A principal função da prática espiritual de um indivíduo gay em processo de desenvolvimento de sua identidade deve ser o equilibrar sua vida, sem culpas ou rancores sobre a homossexualidade.
Deve entender que o ser gay ou LGBT é uma condição espiritual pré-existente no seu ser.

Hoje em dia temos observado que os adolescentes estão saindo mais cedo do armário que trinta anos atrás. Isso se deve muito provavelmente à Internet, que faz com que se sintam menos isolados, pois pesquisando e interagindo em redes sociais estão vendo modelos positivos nos meios de comunicação, bem como nos grupos e comunidades das quais participam, inicialmente com perfis falsos (os “fakes”), depois abertamente declarando-se gays. Entre estes modelos positivos se encontram as Igrejas Inclusivas, os grupos inclusivos em religiões formais mais antigas e as setoriais LGBT de partidos políticos.

De qualquer forma, o conflito pessoal sobre os sentimentos homossexuais cria sempre uma difícil luta interna. Depois de anos tentando encontrar respostas e sem sucesso na tentativa de mudar seus sentimentos, muitos pessoas se convenceram de que seus sentimentos homossexuais são inatos e imutáveis, e agora aceitam uma identidade gay que finalmente termina a luta interna que lhes causou tanta frustração e tanta dor. Aceitar uma identidade gay tem implicações enormes, uma vez que ser gay inclui não apenas sentimentos pessoais, mas também descreve uma identidade social e política. Essa identidade social e política está sempre em construção e sofre adaptações, já que a construção social e política dos povos também muda. A formação da identidade e do orgulho dos povos negros, seja na África ou na Escravatura, passou por fases muito semelhantes às que passam os LGBT na busca por aceitação na sociedade moderna.

Hoje, a formação não apenas de grupos de apoio aos LGBT em processo de desenvolvimento da própria identidade, mas também de grupos envolvendo espiritualidade numa perspectiva LGBT (não para LGBTs) se mostra muito salutar na medida em que se percebe que alguém que saiu do armário tem muita necessidade de ser ouvido, acolhido e orientado.

Antes de sair do armário, a maioria dos gays não sabe quem é, se desconhece por completo, não consegue se ver no espelho sem um olhar de reprovação, mesmo que não consiga especificar o motivo. O moralismo das religiões formais tem muito a ver com isso, e esse moralismo contamina as famílias dos gays, chegando, ao final, a causar a pressão interna que vemos em quem demora a assumir-se. Este seria o momento ideal para a Nova Espiritualidade agir, acolhendo o LGBT em conflito sem fazer qualquer juízo moral, pois esta não é uma função original da religião – sua função original é levar o homem à felicidade, ao autoconhecimento e a uma vida de harmonia com o todo.

Gays saindo ou já completamente saídos do armário aderem ao “tribalismo”, buscando seus iguais, para compartilhar vida social, amizades e encontrar seu lugar num mundo que os exclui. Uma espiritualidade inclusiva, onde achamos que deva se inserir a Nova Espiritualidade, sempre orientará o indivídio LGBT a não afastar-se das pessoas, mas a integrar-se a elas, em todos os ambientes da sociedade, para não reforçar a “guetificação” LGBT. Se, antigamente, essa “guetificação” foi positiva na organização do movimento LGBT, hoje a ideia mais producente deve ser a integração, favorecendo a conquista de direitos igualitários.

A relação óbvia entre a Identidade Gay e a Espiritualidade está no autoconhecer-se. Primeiro, nos autoconhecemos como seres diversos numa variedade de orientações sexuais disponíveis na natureza. Percebemos nossa orientação como algo comum em outros, ainda que manifestando-se de modo muito peculiar – cada um vive sua sexualidade de modo próprio. Depois, nos autoconhecemos como seres humanos iguais ao demais, com os mesmos sofrimentos, anseios, momentos felizes e objetivos. Então, buscamos a transcendência. Isso é espiritualidade! Se uma religião formal – qualquer uma – não conduz o indivíduo (gay ou não) a isso, não tem qualquer proveito. E, o que não existe, deve ser criado, ou antes, percebido como natural e potencialmente existente...

2 comentários:

Atena disse...

No meu modo de ver os gays deveriam buscar a espiritualidade e não as religiões, pois essas só trouxeram divisão entre os seres humanos, sem falar nas mortandades que ocasionaram.
Não sou conhecedora da bíblia, mas me parece que o Novo Testamento não traz nenhuma condenação ao homossexualismo. No Antigo, aquela criatura chamada Jeová (que não é Deus coisa nenhuma)é que disse ser uma abominação. Amor aceita e não julga, Jesus nos aceitou a todos.
Eu fico muito indignada com essa bancada retrógrada evangélica no nosso Congresso, até já postei sobre isso (http://expandiraconsciencia.blogspot.com.br/2012/07/diga-nao-ao-fundamentalismo-e.html)
Seu blog é muito bom, parabéns

Espiritualidade Inclusiva disse...

Ok,

Ficamos gratos por suas reflexões, Atena.

A intenção de Stekel com este artigo foi levantar o questionamento sobre espiritualidade, religião formal e identidade gay.

Achamos que o propósito está sendo alcançado.

Abraços!