segunda-feira, 14 de maio de 2012

[Tradução] A Bíblia na verdade diz “com varão de tua família não te deitarás”

Por Ocio Gay (entrevista publicada originalmente em espanhol em http://www.ociogay.com/2012/05/03/la-biblia-en-realidad-dice-con-varon-de-tu-familia-no-te-acostaras e traduzida por Paulo Stekel)

(O polêmico e irreverente teólogo dinamarquês Renato Lings)

Nós conversamos com o tradutor e teólogo Renato Lings, autor de "Bíblia e Homossexualidade".

Com seu tom calmo e grande senso de humor, o autor dinamarquês explica durante sua visita a Madri que, depois de muitos anos de estudo, "A Bíblia" é para ele uma amiga, não uma fonte de medo, como muitos querem considerar. Doutor em teologia, tradutor de hebraico, grego e espanhol, Lings tem feito do estudo de textos sagrados com relação à homossexualidade uma de suas principais ocupações. Acaba de publicar “Bíblia e homossexualidade - erraram os tradutores?”, onde resume que os problemas da Igreja com os homossexuais são realmente uma questão de um "Lost in Translation" medieval.

- A partir da disseminação gradual do Cristianismo pelo Império Romano vem a necessidade de disponibilizar a totalidade dos escritos bíblicos em latim. Em resposta a essa demanda aparece a Vulgata em cerca de 400 d. C. É esta a origem dos males da homossexualidade para a Igreja?

- A Vulgata é importante sob vários pontos de vista: primeiro, porque a tradução é executada por um personagem muito importante para a Igreja Romana, Jerônimo, e em segundo lugar porque é a primeira versão que tem todos os livros da Bíblia em latim. Em grande parte, revisa as traduções existentes, mas também traduziu outras partes. Ele pensou que seria fácil traduzir da Septuaginta, que é a tradução para o grego antigo, mas percebeu que já naquele tempo teve muitos erros e não podia ser confiável, motivo pelo qual estudou hebraico e assim traduziu o Antigo Testamento também. Isso exigiu um grande esforço. Dito isto, convém notar que, devido à uniformidade que estava adquirindo a Igreja Romana, esta foi se impondo como a única versão da "Bíblia", ou seja, até que finalmente se tornou a verdade. Esta versão deu cor aos capítulos mais controversos.

Conforme avançava a Igreja, esta foi se fechando mais no latim e se perdeu completamente o grego e o hebraico, a ponto de, na Idade Média, o latim ter se tornado a língua de Jesus Cristo. Isso é problemático por várias razões, mas principalmente porque durante a Idade Média entre as correntes teológicas havia muita tendência ao ascetismo, à renúncia de prazeres carnais, estabelecendo-se assim os vícios, incluindo a sodomia.

- Na verdade, você aponta que a “sodomia” não aparece como termo até o século XI.

- De fato. Antes havia o vício da sodomia, mas não havia uma definição única do que isso significava. Havia uma variedade de definições, mas tinha a ver com a vida sexual das pessoas, já que em ambientes eclesiásticos ao fazer o voto de castidade não havia espaço para as relações sexuais.

Então rolou como uma bola de neve o perigo que são as relações homoeróticas, pois as heterossexuais não são mais um problema ao se entrar no mosteiro. Muitos interpretaram, então, o desejo homoerótico que sentiam como sendo uma inspiração demoníaca, pois, não entendiam que depois de entregar corpo e alma a Deus lhes surgiriam fantasias eróticas e sonhos com parceiros da comunidade.

- Outra das análises mais abrangentes que você faz no livro é sobre a famosa frase do Levítico: "Com varão não te deitarás" que na verdade é "com varão não terás repousos [lit. “jazer para relações sexuais”] de mulheres."

- Eu tenho minhas dúvidas, por várias razões. Praticamente toda a literatura que está incluída no que chamamos de "Antigo Testamento", que eu prefiro chamar de "A Bíblia hebraica", tem um alto nível de refinamento literário. Eu não acho que esses textos correspondem a mentes retrógradas em questões de antropologia. Por isso, é curioso que, no caso de "Levítico" há tantos séculos haja um debate sobre o que significa. A proibição de relações homoeróticas com base neste livro não aparece até o século IV D.C.; antes não há nenhum registro de que tenha sido interpretado nesse sentido, pelo menos no Cristianismo, porque no Judaísmo há todavia mais literatura sobre o assunto.

Como pode um versículo de uma linha e meia gerar tanto debate? Alguns acreditam que se fala da penetração anal, e dentro dessa tendência, há divergências, pois existem alguns que acreditam que o que é proibido é o contato do sêmen com fezes, outros dizem que se trata de proteger a procriação e evitar qualquer dispersão de sêmen em outro vaso que não seja a vagina. Uma terceira teoria diz que o que é censurado é a parte ativa da relação homoerótica, isto é, não deves penetrar a outro homem analmente. A quarta, porém, acredita que se refere à parte passiva: você não deve se comportar como uma mulher na frente de um homem deixando-se penetrar.

Eu sugiro uma quinta interpretação que não tem nada a ver com a penetração anal, e que já foi sugerida por David Stewart: a do incesto. Praticamente todo o capítulo em que isto está escrito, o 18, fala do incesto entre homem e mulher. Ele acha que esta proibição também se estende entre dois homens da mesma família. Mas, como é um texto altamente sofisticado continua a gerar debate. Eu tive que ir até o capítulo 20 para perceber que este versículo reaparece junto com outros que proíbem o incesto, com a pena de morte incluída. Acho interessante este achado porque também existe na tradição hitita uma proibição incestuosa deste tipo, expressa sem rodeios. Como existem muitos paralelos entre as passagens da "Bíblia", com outras tradições antigas do Oriente Médio, eu duvido que haja um povo tão radicalmente separados dos outros.

Há outra razão para pensar que o incesto, da segunda parte ("repousos de mulher") é difícil de interpretar, porque ele usa um vocabulário elaborado. A primeira parte diz: "com varão não te deitarás", não "com um homem" e isso é importante porque não se trata de dois sinônimos. "Varão" também inclui os jovens que não chegam a "homens", e os idosos. A segunda é fundamental, e grande parte da Igreja decidiu que queria dizer "com nenhum". E eu me pergunto, se todo o capítulo é destinado à família porque esta parte não? Também sempre se refere a "varões israelitas", não a todos do mundo. E também especifica "mulher", não "fêmea". David Stewart, de quem sigo a pista, define que a palavra "repousos" só aparece uma vez mais nesta parte da Bíblia hebraica e no segundo caso, está no livro de "Gênesis", onde Jacó fala para seu filho mais velho Ruben, que cometeu um ato de incesto com uma das esposas deste. Ele diz "Foste até os repousos de teu pai", o que reforça a minha teoria do incesto porque o "repouso" no singular ocorre com mais freqüência.

- Também “Sodoma” surge sob outro prisma depois de sua análise.

- Lhe dediquei sete anos, apesar de que só tem um capítulo e meio. Eu me sinto muito em paz porque eu o trabalhei de cima para baixo e de fora para dentro. Todos os profetas do Antigo Testamento, que eram testemunhas oculares que falavam hebraico e estão imersos na sua cultura, utilizam "Sodoma e Gomorra" como uma metáfora.

- Se algo fica depois de se ler o livro é a sensação de que se tem interpretado os textos sagrados a partir da literalidade absoluta, mesmo quando se fala em metáforas.

- Somos muito mais fundamentalistas que os antigos; nós tomamos a "Bíblia" ao pé da letra, enquanto que eles sabiam como interpretar os símbolos. Produziam um discurso altamente desenvolvido no literário e no teológico. Bem, os profetas usam o mito de Sodoma e Gomorra em contextos de injustiça social, se referem à raiva que sentem quando os poderosos maltratam os pobres, especialmente Isaías e Ezequiel (que critica por meio disso a idolatria dos israelitas que se lançam a adorar outros deuses). Não se referem a questões sexuais. Isso me deu a dica de que algo não sabíamos sobre esse texto, e continuamos prisioneiros da tradição medieval. É mais convincente a investigação a partir da perspectiva dos profetas, porque é mais fiel ao contexto original.

- "Para a pessoa cristã o essencial é seguir a Cristo e não ser influenciada pelas pressões do ambiente social" você afirma, baseando-se em São Paulo: "Busco eu agora persuadir os homens ou a Deus? Se, todavia, tentasse agradar aos homens já não seria servo de Cristo". Isto tem sido completamente esquecido, e mais, às vezes a igreja é quem exerce a pressão social.
- Até mesmo, às vezes, forçando a seguir a igreja mais do que a Cristo.

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