(O polêmico e irreverente teólogo dinamarquês Renato Lings)
Nós conversamos com o tradutor e teólogo Renato Lings, autor de "Bíblia e Homossexualidade".
Com seu tom calmo e grande senso de humor, o autor
dinamarquês explica durante sua visita a Madri que, depois de
muitos anos de estudo, "A Bíblia" é para ele uma amiga,
não uma fonte de medo, como muitos querem considerar. Doutor em
teologia, tradutor de hebraico, grego e espanhol, Lings tem feito do
estudo de textos sagrados com relação à homossexualidade uma de
suas principais ocupações. Acaba de publicar “Bíblia e
homossexualidade - erraram os tradutores?”, onde resume que os
problemas da Igreja com os homossexuais são realmente uma questão
de um "Lost in Translation" medieval.
- A partir da disseminação gradual do
Cristianismo pelo Império Romano vem a necessidade de disponibilizar
a totalidade dos escritos bíblicos em latim. Em resposta a essa
demanda aparece a Vulgata em cerca de 400 d. C. É esta a origem dos
males da homossexualidade para a Igreja?
- A Vulgata é importante sob vários pontos de
vista: primeiro, porque a tradução é executada por um personagem
muito importante para a Igreja Romana, Jerônimo, e em segundo lugar
porque é a primeira versão que tem todos os livros da Bíblia em
latim. Em grande parte, revisa as traduções existentes, mas também
traduziu outras partes. Ele pensou que seria fácil traduzir da
Septuaginta, que é a tradução para o grego antigo, mas percebeu
que já naquele tempo teve muitos erros e não podia ser confiável,
motivo pelo qual estudou hebraico e assim traduziu o Antigo
Testamento também. Isso exigiu um grande esforço. Dito isto, convém
notar que, devido à uniformidade que estava adquirindo a Igreja
Romana, esta foi se impondo como a única versão da "Bíblia",
ou seja, até que finalmente se tornou a verdade. Esta versão deu
cor aos capítulos mais controversos.
Conforme avançava a Igreja, esta foi se fechando mais no latim e se perdeu completamente o grego e o hebraico, a ponto de, na Idade Média, o latim ter se tornado a língua de Jesus Cristo. Isso é problemático por várias razões, mas principalmente porque durante a Idade Média entre as correntes teológicas havia muita tendência ao ascetismo, à renúncia de prazeres carnais, estabelecendo-se assim os vícios, incluindo a sodomia.
- Na verdade, você
aponta que a “sodomia” não aparece como termo até o século XI.
- De fato. Antes havia o vício da sodomia, mas
não havia uma definição única do que isso significava. Havia uma
variedade de definições, mas tinha a ver com a vida sexual das
pessoas, já que em ambientes eclesiásticos ao fazer o voto de
castidade não havia espaço para as relações sexuais.
Então rolou como uma bola de neve o perigo que
são as relações homoeróticas, pois as heterossexuais não são
mais um problema ao se entrar no mosteiro. Muitos interpretaram,
então, o desejo homoerótico que sentiam como sendo uma inspiração
demoníaca, pois, não entendiam que depois de entregar corpo e alma
a Deus lhes surgiriam fantasias eróticas e sonhos com parceiros da
comunidade.
- Outra das análises mais abrangentes que você
faz no livro é sobre a famosa frase do Levítico: "Com varão
não te deitarás" que na verdade é "com varão não terás
repousos [lit. “jazer para relações sexuais”] de mulheres."
- Eu tenho minhas dúvidas, por várias razões.
Praticamente toda a literatura que está incluída no que chamamos de
"Antigo Testamento", que eu prefiro chamar de "A
Bíblia hebraica", tem um alto nível de refinamento literário.
Eu não acho que esses textos correspondem a mentes retrógradas em
questões de antropologia. Por isso, é curioso que, no caso de
"Levítico" há tantos séculos haja um debate sobre o que
significa. A proibição de relações homoeróticas com base neste
livro não aparece até o século IV D.C.; antes não há nenhum
registro de que tenha sido interpretado nesse sentido, pelo menos no
Cristianismo, porque no Judaísmo há todavia mais literatura sobre o
assunto.
Como pode um versículo de uma linha e meia gerar
tanto debate? Alguns acreditam que se fala da penetração anal, e
dentro dessa tendência, há divergências, pois existem alguns que
acreditam que o que é proibido é o contato do sêmen com fezes,
outros dizem que se trata de proteger a procriação e evitar
qualquer dispersão de sêmen em outro vaso que não seja a vagina.
Uma terceira teoria diz que o que é censurado é a parte ativa da
relação homoerótica, isto é, não deves penetrar a outro homem
analmente. A quarta, porém, acredita que se refere à parte passiva:
você não deve se comportar como uma mulher na frente de um homem
deixando-se penetrar.
Eu sugiro uma quinta interpretação que não tem
nada a ver com a penetração anal, e que já foi sugerida por David
Stewart: a do incesto. Praticamente todo o capítulo em que isto está
escrito, o 18, fala do incesto entre homem e mulher. Ele acha que
esta proibição também se estende entre dois homens da mesma
família. Mas, como é um texto altamente sofisticado continua a
gerar debate. Eu tive que ir até o capítulo 20 para perceber que
este versículo reaparece junto com outros que proíbem o incesto,
com a pena de morte incluída. Acho interessante este achado porque
também existe na tradição hitita uma proibição incestuosa deste
tipo, expressa sem rodeios. Como existem muitos paralelos entre as
passagens da "Bíblia", com outras tradições antigas do
Oriente Médio, eu duvido que haja um povo tão radicalmente
separados dos outros.
Há outra razão para pensar que o incesto, da
segunda parte ("repousos de mulher") é difícil de
interpretar, porque ele usa um vocabulário elaborado. A primeira
parte diz: "com varão não te deitarás", não "com
um homem" e isso é importante porque não se trata de dois
sinônimos. "Varão" também inclui os jovens que não
chegam a "homens", e os idosos. A segunda é fundamental, e
grande parte da Igreja decidiu que queria dizer "com nenhum".
E eu me pergunto, se todo o capítulo é destinado à família porque
esta parte não? Também sempre se refere a "varões
israelitas", não a todos do mundo. E também especifica
"mulher", não "fêmea". David Stewart, de quem
sigo a pista, define que a palavra "repousos" só aparece
uma vez mais nesta parte da Bíblia hebraica e no segundo caso, está
no livro de "Gênesis", onde Jacó fala para seu filho mais
velho Ruben, que cometeu um ato de incesto com uma das esposas deste.
Ele diz "Foste até os repousos de teu pai", o que reforça
a minha teoria do incesto porque o "repouso" no singular
ocorre com mais freqüência.
- Também “Sodoma”
surge sob outro prisma depois de sua análise.
- Lhe dediquei sete anos, apesar de que só tem um
capítulo e meio. Eu me sinto muito em paz porque eu o trabalhei de
cima para baixo e de fora para dentro. Todos os profetas do Antigo
Testamento, que eram testemunhas oculares que falavam hebraico e
estão imersos na sua cultura, utilizam "Sodoma e Gomorra"
como uma metáfora.
- Se algo fica depois de se ler o livro é a
sensação de que se tem interpretado os textos sagrados a partir da
literalidade absoluta, mesmo quando se fala em metáforas.
- Somos muito mais fundamentalistas que os
antigos; nós tomamos a "Bíblia" ao pé da letra, enquanto
que eles sabiam como interpretar os símbolos. Produziam um discurso
altamente desenvolvido no literário e no teológico. Bem, os
profetas usam o mito de Sodoma e Gomorra em contextos de injustiça
social, se referem à raiva que sentem quando os poderosos maltratam
os pobres, especialmente Isaías e Ezequiel (que critica por meio
disso a idolatria dos israelitas que se lançam a adorar outros
deuses). Não se referem a questões sexuais. Isso me deu a dica de
que algo não sabíamos sobre esse texto, e continuamos prisioneiros
da tradição medieval. É mais convincente a investigação a partir
da perspectiva dos profetas, porque é mais fiel ao contexto
original.
- "Para a pessoa cristã o essencial é
seguir a Cristo e não ser influenciada pelas pressões do ambiente
social" você afirma, baseando-se em São Paulo: "Busco eu
agora persuadir os homens ou a Deus? Se, todavia, tentasse agradar
aos homens já não seria servo de Cristo". Isto tem sido
completamente esquecido, e mais, às vezes a igreja é quem exerce a
pressão social.
- Até mesmo, às vezes, forçando a seguir a
igreja mais do que a Cristo.
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