Essa questão foi
colocada em debate em um fórum social e suscitou um interessante e
provocativo artigo (ler o primeiro artigo em
http://espiritualidadeinclusiva.blogspot.com.br/2012/06/biblia-e-homofobica.html),
para cujo desenvolvimento do tema estou oferecendo uma contribuição
aqui.
Vou me deter na
exposição e análise de alguns argumentos das igrejas inclusivas
bem como das igrejas cuja perspectiva chamarei de “literalista’’,
e tentar apresentar o meu próprio ponto de vista a cerca do assunto.
A Bíblia sagrada se
mantém como uma dolorosa espada de Dâmocles suspensa sobre a cabeça
de homens gays e mulheres lésbicas, provocando a angustiante
sensação de danação iminente e norteando também as políticas e
atitudes sociais hostis para com pessoas LGBT ao longo dos séculos,
independente de crença ou descrença.
Portanto, diante disso
questionar se a bíblia é homofóbica pode parecer mesmo uma grande
ingenuidade, quando não uma pilhéria grotesca. Apesar de tudo,
proponho ao menos uma mudança ligeira e significativa de posição
no sofá das convenções ideológicas durante as próximas linhas.
Os pressupostos morais
estabelecidos firmemente durante gerações de cristãos no Ocidente
foram desafiados com maior entusiasmo e elegante inteligência pela
primeira vez quando John Richard Boswell, iminente professor de
história da universidade de Yale, publicou no início dos anos
oitenta o surpreendente livro
“Cristianismo, tolerância social e homossexualidade’’.
A obra de Boswell gerou
uma onda de intensa polêmica, ganhou prêmios, foi entusiástica e
afetuosamente acolhida por gays cristãos e recebeu críticas
ferrenhas tanto de ativistas LGBT quanto de
fundamentalistas e grupos antigay.
O meio acadêmico,
igualmente, reagiu de modo variado.
O dogma do
construcionismo social despontava; a tese essencialista apregoada
pelo professor gay de Yale não estava mais na moda (embora o próprio
Foucault tenha elogiado o livro) e muitos ativistas LGBT se sentiram
“traídos’’ por aquilo que eles entenderam como uma tentativa
de “branquear’’ o cristianismo e retirar a culpa dos ombros da
igreja por todos os crimes cometidos contra homossexuais.
Por outro lado, Boswell
foi celebrado ao expor uma interpretação revolucionária,
argumentando que a igreja no início da sua trajetória e ao longo de
uma parte do medievo, conviveu com a homossexualidade de forma pouco
conflituosa, possibilitando inclusive o emergir de uma subcultura
gay, expressando-se através de primorosos poemas e cartas eróticos
de amor e amizade do mesmo sexo, escritos por bispos e clérigos
cristãos.
O professor John
Boswell também se tornou pioneiro ao fazer uma exegese “inclusiva’’
de trechos bíblicos tradicionalmente considerados homofóbicos,
causando uma controvérsia que dura até hoje, fornecendo o lastro
sobre o qual repousa a assim chamada “teologia inclusiva’’.
Afinal, a bíblia é
homofóbica? Não vou entrar no mérito de discutir a semântica
apontada como a razão da condenação explícita a atos
homossexuais, motivo de disputa ferrenha entre os adeptos da
interpretação inclusiva e os adeptos da interpretação
literalista.
Ao contrário, vou
assumir aqui que a Bíblia de fato condena atos homossexuais, uma
alegação com a qual Boswell também concordaria.
Uma assertiva bastante
comum entre os cristãos literalistas homofóbicos é aquela que diz
que “Deus não condena o indivíduo homossexual; Deus condena atos
homossexuais’’.
Suspeito que essa
afirmação contém inadvertidamente uma verdade oculta, fundamental
e divergente da intenção com a qual é propagada, conforme veremos.
De modo contraditório
os literalistas afirmam que Deus não reconheceu a categoria dos
homossexuais (então qual o sentido de dizer que Deus não condena a
pessoa gay?) que Deus criou somente o “macho’’
e a “fêmea’’; indivíduos gays, portanto são machos e fêmeas
que se recusam a cumprir com os desígnios de sua natureza verdadeira
(heterossexual).
Desconsiderando
solenemente a teoria social construtivista (de viés Marxista) e os
equívocos derivados da crença Foucaultiana de que a identidade gay
é uma invenção moderna, é bastante razoável discordar da
idéia de que Deus “limitou-se’’ a “criar’’ duas
distintas classes de pessoas; com efeito, diversas escrituras
jurídicas, literárias, religiosas e de medicina do mundo antigo se
referem explicitamente a uma terceira categoria de pessoas, com
estatus próprio naturalizado e normatizado, para além da nomeação
de “homem’’ ou “mulher’’.
Essa classe específica
de pessoas por vezes foi considerada um terceiro gênero, ou gênero
neutro, ou uma combinação de ambos os gêneros.
A própria Bíblia
confirma a existência de uma terceira classe de pessoas, não aptas
para o casamento procriativo, nascidas exatamente desta forma desde o
“ventre materno’’.
Quem são essas
pessoas?
No Evangelho de Mateus,
no verso que se refere ao divórcio e casamento entre homem e mulher
(19,11-12) Jesus declara:
“Não tendes lido que
o criador os fez, desde o princípio, homem e mulher, e que ordenou:
Por isso deixará pai e mãe e unir-se-á com sua mulher, e será uma
só carne?’’
Responderam-se os
discípulos, opinando sobre a interdição de Cristo ao divórcio:
“Se tal é a condição
do homem relativo à mulher, melhor não casar.’’
Jesus retrucou então:
“Nem todos podem
entender esse ensino. Mas somente aqueles a quem isso foi dado.
Porque há eunucos que
nasceram assim, e há eunucos que pelos homens foram feitos tais; e
há outros que se fizeram eunucos por causa do reino dos céus.
Quem puder aceitar isso
que aceite.’’
Jesus coloca a questão
do repúdio da esposa, consentido pela lei de Moisés, e no final,
excepcionalmente deixa claro que existem pessoas que não são aptas
para se engajar no casamento heteronormativo
prescrito por ordem divina.
Faris Malik, um
pesquisador de concepções antigas de identidade de gênero e
identidade sexual, entre outros defende a tese de que os “eunucos
de nascimento’’ citados no evangelho de Mateus é a denominação
primitiva genérica aplicada por vários povos da antiguidade aos
homossexuais exclusivos.
A primeira objeção ao
argumento é a mais óbvia: Jesus pode simplesmente estar se
referindo a homens que nasceram com disfunções biológicas que
impossibilitam a reprodução.
“Eunuco de
nascimento’’ então se refere a homens estéreis naturalmente, em
oposição aos esterilizados artificialmente e os que escolheram não
procriar (celibatários).
Malik está consciente
do problema e sua pesquisa aborda sem rodeios a busca pelo
significado original do “eunuco de nascença’’; ele observa que
apesar de quase todas as definições atuais de eunucos se
encontrarem atreladas ao conceito de castração ou danos físicos à
capacidade reprodutiva, seja por nascimento ou por algum tipo de
emasculação, para os povos do passado, um eunuco se caracterizava
essencialmente pela ausência de desejo sexual por pessoas do sexo
oposto.
O mito Sumério da
criação do eunuco diz que eles foram criados especificamente para
não sentir desejo por mulheres; Asushunamir, o eunuco que vai para o
reino dos mortos em missão de resgate da deusa Isthar, precisa ser
imune à sedução da rainha do submundo, que mantém a deusa do amor prisioneira.
Clemente de Alexandria,
comentando a respeito das crenças gnósticas dos adeptos de
Basilides (Em Stromata) menciona a versão gnóstica do discurso de
Jesus em Mateus 19: “Alguns homens, desde o nascimento, têm a
natureza que os impele a afastar-se das mulheres, e deste modo fazem
bem em não se casar. São os eunucos de nascença.’’
Em outras palavras, o
eunuco de nascença não era necessariamente um homem estéril
biologicamente; apenas era relativamente estéril, porque incapaz de
sentir desejo por mulher.
Isso tem cabimento?
De acordo com o Sumário
de direito romano, codificado por Justiniano, e reunindo os
principais peritos da legislação romana (Papiniano, Ulpiano, Paulus
e Juliano), a definição geral de eunuco engloba o “eunuco de
nascimento’’ e faz distinção entre os eunucos castrados e os
não castrados.
A lei romana prevê a
possibilidade de um eunuco “não castrado’’ casar-se com uma
mulher e consumar o casamento, restringindo o direito de casar de um
eunuco castrado. O eunuco castrado não pode casar porque
não pode procriar. O eunuco não castrado pode casar porque pode
procriar.
Considerando ainda o
termo “doença’’ uma condição natural física que prejudicava
o uso do corpo para os fins aos quais ele se destinava, Ulpiano
pondera que a situação dos eunucos naturais procriadores não
condizia com a definição de doença, já que alguns eram capazes de
procriar.
O direito romano
reconhece que “eunuco’’ é um termo genérico, aplicado a
diversos tipos de pessoas, inclusive homens que podem procriar,
portanto.
O jurista Paulus
confirma, por outro lado, que se alguém é um eunuco e lhe faltam os
órgãos necessários para procriar, ainda que “internamente’’
então ele é incapacitado, um doente.
Nem todo homem que se
engajava em sexo homossexual foi reconhecido como eunuco; há uma boa
razão para isso.
A bissexualidade era
mais amplamente aceita socialmente; a pederastia caracterizava-se
como relação homofílica passageira e tinha aspecto
transgeracional, e mesmo o “amor pelos meninos’’ foi alvo de
intolerância e hostilidades. O pederasta não perdia o estatus de
homem, a não ser de modo temporário, quando era Catamito e passivo.
Homossexuais
exclusivos, naturalmente, não se encaixavam no estereótipo de
gênero masculino naquela época.
Ser eunuco não era
exatamente uma vantagem, embora não fosse crime; numa sociedade
patriarcalista e misógina, que valorizava o poder do gênero
masculino e a fertilidade, é compreensível o interesse de alguns
eunucos pelo casamento heterossexual. O poderoso senhor do atraente
José do Egito, Potifar, é um exemplo. O desejo licencioso da esposa
de Potifar é sintomático e
revelador, aliás.
Quem nunca ouviu falar
em gays que se casam com mulheres para fugir do estigma social? E de
mulheres de gays que se ressentem da falta de desejo dos maridos?
Dito isto, vamos
examinar o contra argumento literalista que sugere que em todos os
casos, um eunuco é ou um homem castrado, ou um homem estéril de
nascença, ou um celibatário (alguém que escolheu manter-se casto).
Malik destaca o
comentário do sumeriano Manual de Summa Alu (2500 antes de cristo)
de prognósticos místicos: “Se um homem tem relações sexuais com
um assinu (eunuco, prostituto sagrado), ao longo de
um ano todas as suas aflições irão desaparecer’’;
Eliano, Orador grego do
século terceiro, em “Histórias diversas’’ faz referência a
um rei persa apaixonado por um lindo eunuco morto recentemente; Quintius Curtius
informa que Dario tinha 365 concubinas, e Alexandre magno dispunha do
mesmo número, contando ainda com um efetivo de eunucos, que “eram
usados como as mulheres’’ (Curtius fala ainda da paixão de
Alexandre pelo Eunuco Bagoas, que ganhou o respeito do rei
oferecendo-lhe seu corpo para sexo); O historiador judeu
Flávio josefo diz que Herodes teve muitos problemas por causa de um
eunuco por quem ele era muito apaixonado por conta de sua beleza
(Antiguidades judaicas); Suetônio deixa-nos
saber a futrica sobre o imperador Tito, acusando-o de deleitar-se em
excessiva luxúria com seus eunucos; o astrólogo do século
quarto, Firmicus Maternus, descreve a luxúria de eunucos que
desempenham o papel passivo no sexo.
Recapitulando, eunucos
naturais eram fisicamente perfeitos (capazes de procriar), eunucos
transavam com homens, eunucos não tinham interesse em mulheres.
Precisa mais de que
para confrontar-se com a realidade de que “eunuco’’ foi uma
denominação genérica que incluía pessoas homossexuais?
Voltando à questão
inicial do debate, se as pessoas exclusivamente homossexuais eram
consideradas um tipo de “eunuco’’ (existem documentos rabínicos
que mencionam também a “mulher eunuco’’, o protótipo da
lésbica machona), se o eunuco é uma criação de Deus (porque
nasceu eunuco), se o eunuco não está apto para o casamento
heteronormativo (porque é relativamente impotente e desinteressado
do sexo oposto) para quem a Bíblia está dirigindo as suas
reprovações e admoestações antigay em Levítico e outras
escrituras?
De acordo com o
professor John Boswell, para os heterossexuais.
Faz sentido.
O texto sumeriano do
Manual de Summa Alu parece confirmar que o sexo homoerótico era
proibido em alguns contextos e liberado em outras situações. O sexo
entre um “homem’’ e um “eunuco’’ não era punido. Se um
indivíduo considerado “homem’’ (naturalmente inclinado para as
mulheres) relaciona-se com outro “homem’’ (sendo o passivo, por
exemplo) havia o interdito.
O argumento de Boswell
é que a Bíblia repudia a afeminação não natural nos homens
heterossexuais, o sexo homossexual com prostitutos sagrados e a
disposição de alguns heterossexuais para a luxúria ocasional com o
mesmo sexo.
Entretanto, os
apologetas literalistas rebatem questionando sobre qual é o sentido
de se afirmar que Deus proíbe um pecado em uma circunstância e
permite o mesmo pecado noutra?
Ora, Deus também
proíbe a mentira e ainda assim induziu profetas a mentir e enganar o
rei Acabe de Israel (“E disse o SENHOR: Quem induzirá Acabe, para
que suba, e caia em Ramote de Gileade?’’; 1, Reis 22).
A Bíblia afirma,
porém, que diante de Deus os eunucos podem encontrar graça e favor.
“Não fale o
estrangeiro que se houver chegado ao SENHOR, dizendo: O SENHOR, com
efeito, me separará do seu povo; nem tampouco diga o eunuco: Eis que
eu sou uma árvore seca.
Porque assim diz o
SENHOR: Aos eunucos que guardam os meus sábados, escolhem aquilo que
me agrada e abraçam a minha aliança; Darei na minha casa e dentro
dos meus muros, um memorial e um nome melhor do que filhos e filhas;
um nome eterno darei a cada um deles, que nunca se apagará.’’
(Isaías 56)
A promessa de Deus para
os eunucos em Isaías é auspiciosa e sugestiva em termos de
salvação; afinal em Deuteronômio 23 está escrito que alguém com
defeito nos testículos ou fisicamente castrado não entrará na
congregação do senhor. Mais uma vez um indicativo de que a Bíblia
fala diretamente para os “nascidos eunucos sem defeitos físicos
que impedem a procriação’’.
Termino este texto com
uma frase transcrita do Carmina Burana no livro “Cristianismo,
tolerância social e homossexualidade’’ do professor Boswell:
“Love is not a crime;
if it were a crime to love,
God would not have
bound even the divine with love.’’
Sobre o autor
Walter Silva é
ativista LGBT (assim o reconhecemos, dada a qualidade do material
acima) e mora em mora em Belém (Paraíba).
5 comentários:
I Corintios Cap 6 é claro quanto a posição de Deus em relação a homossexualidade. Você não mostrou em nenhuma citação bíblica que Deus aprova relação homoafetiva dos Eunucos.
A Bíblia é clara em condenar atos homossexuais para homens comuns.Não existe nenhuma menção e interditos para eunucos naturais.
De fato não encontrei nenhuma passagem que aprove algo como a relação homoafetiva para eunucos.
Mas jesus disse claramente que eunucos não foram feitos para casar com o sexo oposto.E quando dividiu as categorias de eunucos castrado e eunuco nascido,acrescentou uma categoria à parte de ambas; o eunuco que se faz eunuco por amor à coisas divinas(celibatário).Essa tríplice divisão implicitamente demonstra que ele não esperava castidade do eunuco nascido eunuco.Parafraseando Jesus...quem puder aceitar que aceite.;)
Ótimos argumentos, além de novos. Nunca vi alguém com eles, parabéns.
só sei que sempre existiu homossexuais e sempre existirá, com consentimento ou não de deus, assim como existiu e existe varios pecados cometidos por heteros e homossexuais, essa polêmica não leva a lugar algum, sei de que sou e de que gosto e não me importo com tais preconceitos ou discriminação sou feliz e realizada. sexo é sexo, é prazer seja lá com quem seja.essas pessoas que discriminam homossexuais são um bando de hipócritas, todos. deixa os outros serem felizes que te importa!?
Ninguem gosta que as pessoas deem opiniao da sua vida. Porque o gay tem que aceitar que uma pessoa dee opiniao sobre a vida dele??? Ninguem gosta disso, entao, vc quando ver algo que vc nao curte na vida de outra pessoa, nao dee sua opiniao, apenas respeite. Cada um tem LIVRE ARBITRIO , que o da o direito de fazer o que quer da sua vida, e nos ensinamentos de jesus, ele mesmo nao julgou nem a prostituta e nem a jogou pedras, se ele que é santo nao o fez, porque a sociedade tem que fazer com os gays. Muitos se dizem crentes e que seguem a biblia fervorosamente, mas é pura hipocrisia, a biblia pode ser interpretada de varios modos, e nao existe a verdadeira religiao de deus, porque as unicas coisas que ele pregou e que ate hoje ninguem poe em pratica,:é nao julgar, amar ao proximo, perdoar e respeitar. Hoje em dia as pessoas falam de deus como se pudessem utilizar a biblia e o nome dele como pedras, nas quais vc atira nas pessoas como maneira de julgar. Pessoas fazem guerras usando o nome de deus. Utilizam o nome de deus em vao. A unica coisa que jesus enfatisou e as pessoas fingem nao enxergar: é amar uns ao outros. E as pessoas fazem ao contrario: dao opiniao na vida alheia, julgam, criticam e depois dizem que nao sao obrigados a aceitar a opçao dos outros, ninguem tem que aceitar e nem dar opiniao, simplismente tem que respeitar e cada um faça o que quizer da vida. Aprendam nao usar o nome de deus e nem passagens da biblia como arma pra julgar os outros , isso é pecado, jesus ensinou a nao julgar, ou seja nao dee sua opiniao na vida alheia.
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