Por Paulo Stekel (artigo postado originalmente em http://gayexpression.wordpress.com/2010/10/24/gays-cidadaos-de-segunda-classe-num-estado-laico/)
Vivemos num Estado laico? Então, por que a Constituição da República Federativa do Brasil (1988), em seu Preâmbulo diz “Nós,  representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional  Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar  o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, (…) e a  justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e  sem preconceitos, (…) promulgamos, SOB A PROTEÇÃO DE DEUS, a seguinte  CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”?
Ora, se o Estado é laico, significa que não há uma “religião do  Estado”. Então, qual o motivo de se invocar a proteção de Deus? Por que  não invocar também a proteção de Buda, de Alá, de Krishna ou Oxalá?
O Estado laico ou secular tem como uma de suas principais  características a separação entre Igreja e Estado, mantendo-se este  último completamente neutro no que tange a temas religiosos de qualquer  religião, é bom frisar. Mesmo assim, o Estado laico tende a promover,  através de leis e programas, a convivência pacífica entre os credos,  fomentando atividades em prol da tolerância e combatendo a discriminação  religiosa. Mas deve, também, sob pena de comprometer sua laicidade,  combater ações de grupos religiosos que venham a interferir na vida de  todos cidadãos por conta de suas crenças. Não é o que temos visto neste  período de eleições no Brasil, especialmente no segundo turno das  eleições presidenciais.
Grupos religiosos fundamentalistas, vulgarmente chamados de  “evangélicos”, há muito tentam interferir nas decisões políticas e na  aprovação de leis em nosso país sempre que estas estejam em desacordo  com suas crenças. Não vamos nem entrar no mérito destas crenças, se  estão alinhadas com os tempos ou se são ainda resquícios de um  pensamento medieval e atrasado. Cada um crê no que quiser! O problema  reside no fato de tais crenças serem defendidas a ferro e fogo e  praticamente impostas de forma sutil a todos os cidadãos através de um  “lobby fundamentalista” crescente. Assim, o debate de leis em favor da  liberdade de decisão das mulheres quanto ao aborto e aquelas em favor  dos direitos de minorias como o “povo de santo” (praticantes de  religiões afrobrasileiras) e os homossexuais acabam virando mote para  batalhas apocalípticas na mídia, regadas a sórdidos argumentos de  “ameaça à família”, “permissão de práticas diabólicas”,  “institucionalização da pedofilia” e “conversão à iniqüidade”,  propagados principalmente por pastores pentecostais “podres de ricos”  (não há como definir melhor!) – e não falo em riqueza espiritual –  objetivando unir os evangélicos nesta “cruzada contra o Diabo”, bem como  confundir os brasileiros de outras religiões.
O pior de tudo, misto de lástima, vergonha e constrangimento para  todos os cidadãos brasileiros, é termos que assistir os argumentos  patéticos dos dois candidatos a presidente no segundo turno: nenhum  comprometimento real e explícito com a laicidade do estado, com os  direitos dos homossexuais, com o combate à homofobia que vem  especialmente de DENTRO das Igrejas fundamentalistas e, pelo contrário,  termos que ver às claras todos os tipos de conchavos com pastores  demagogos, visitas a eventos cristãos (incluindo católicos) com uma  “devoção” de cortar o coração (eu prefiro chamar isso de “curtir com a  cara de Deus”) saída sabe-se lá de onde… A vergonha é tanta e tão  explícita que nem as ONGs LGBT, geralmente “cabresteadas” por suas  ligações partidárias (quase) veladas (pois, só não as percebe quem não  quer), tiveram como evitar de se pronunciar em cartas abertas,  condenando o ataque aos direitos LGBT e ao laicismo do Estado.
Alguém que aceite o argumento de que a aprovação da união civil gay e  a aprovação da lei contra a homofobia vá “acabar com a família” e  colocar na cadeia qualquer um que pense diferente da comunidade gay é um  sinal de ignorância ou de má fé. Pior, isso pode acabar mal e incitar  ações violentas em algum grau nos momentos cruciais das aprovações de  ambas as leis, por parte dos dois lados. Se argumentos como “fim da  família” e “onda de prisões perpetradas por uma patrulha gay”  (argumentos patéticos não têm limites neste Brasil) fossem verdadeiros,  isso já teria ocorrido em todos os países que aprovaram a união civil  gay e leis contra a homofobia. Todos sabemos que nada disso ocorreu na  Suécia, na Holanda, nem em nenhum outro. A Argentina, décadas à frente  do Brasil nestas questões, também não corre esse risco.
É interessante ambos os candidatos fecharem “convênios” com líderes  religiosos homofóbicos, quando o artigo 19 da Constituição diz: “É  vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…)  estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,  embaraçar-lhes o funcionamento ou MANTER COM ELES OU SEUS REPRESENTANTES  RELAÇÕES DE DEPENDÊNCIA OU ALIANÇA, ressalvada, na forma da lei, a  colaboração de interesse PÚBLICO.” Interesse público, não eleitoreiro!!! Este artigo constitucional é o que define nosso Estado como laico.
A grande verdade é que os fundamentalistas religiosos em todo o  mundo, sejam no Brasil, EUA ou nas repúblicas islâmicas, cada um com um  grau maior ou menor de violência, consideram os gays como cidadãos de  segunda classe, aberrações da natureza (Deus não os teria criado?) e não  merecedores de quaisquer direitos de expressão. Para eles, os gays não  podem se reunir, se organizar, se casar entre si, ter direito a herança,  adotar crianças, emprego digno em casas e empresas de cristãos e sequer  reclamar quando são xingados por quem não lhes aceite como nasceram. Os  mais radicais querem eliminar os gays “à moda Hitler” (aliás, muitos  gays morreram nos campos de concentração e foram hostilizados por  nazistas e judeus!), enquanto os que se consideram mais “amorosos”  querem “curar” os gays de algo que não é uma doença. Ou seja, querem uma  lavagem cerebral para manter as aparências. Esse é o pensamento (já não  mais velado) de Malafaia, Macedo, Dadeus Grings e muitos outros  fundamentalistas por aí. Estamos nos aproximando de um conflito fora de  época com as forças fundamentalistas e homofóbicas neste país? Será um  “stonewall” atrasado? Esperamos que não se chegue a tanto, mas uma coisa  podemos “profetizar”: a comunidade gay brasileira conquistou muito mais  visibilidade e vários direitos civis nestes últimos vinte anos para  assistir calada a uma eventual política de retrocesso propagada por  religiosos medievos aliados a políticos inescrupulosos e sem apreço pela  vida humana. Contra uma “bancada evangélica” temos já uma nascente  “bancada gay”, que foi muito reforçada nestas recentes eleições pela  aprovação no pleito de vários candidatos homossexuais e muitos outros  que podemos chamar de “simpatizantes”, geralmente deputados ligados aos  direitos humanos.
Os últimos cidadãos considerados de segunda classe que tivemos no  Brasil foram os escravos negros, que conseguiram o reconhecimento legal  de sua igualdade em 1888, cem anos antes de nossa atual Constituição.  Antes disso, a Igreja apoiava o escravagismo e os Jesuítas se calavam  sobre o assunto para não abalar o delicado status político do  Século XIX. Afinal, o própria Bíblia cita os escravos e em nenhum  momento condena o escravagismo. Por que os pastores não revelam isso a  seus fiéis? Se, hoje não existem mais escravos não será porque a  consciência da humanidade se transformou? Os religiosos não se adaptaram  a isso também? Por que com os gays isso será diferente quando o  preconceito acabar? Contudo, reflita-se, com o fim da escravidão acabou o  preconceito contra os negros?…
Não somos cidadãos de segunda classe e não precisamos de uma Isabel  para nossa alforria porque os tempos são outros. Podemos nos organizar e  exigir que a lei seja igual para todos. Podemos exigir respeito e  segurança. Podemos exigir tratamento digno e humano. Podemos, devemos e  vamos exigir todos os direitos facultados aos seres humanos, cidadãos e  contribuintes de uma nação livre, laica e soberana. Guardem estas  palavras todos aqueles que estão acostumados a demonizar os gays para  esconder a sua própria hipocrisia religiosa que não tem escrúpulos na  hora de colocar na boca de Deus todos os impropérios contra a vida  humana e a liberdade. Guardem estas palavras também aqueles acostumados a  usar os gays como massa de manobra eleitoral, prometendo muito mais do  que realmente estão dispostos a fazer por uma comunidade que, ainda que  minoria, é sabidamente culta, politicamente decidida, com boa  escolaridade, tem suas próprias opiniões e não se vende por ninharias ou  “bolsas”, nem por sorrisos marqueteiros no horário eleitoral. Se isso é  ser cidadão de segunda classe… não é à toa que países como Suécia e  Holanda têm tão elevada qualidade de vida…
Blogue do Movimento Espiritualidade Inclusiva. Artigos sobre visão inclusiva nas diversas formas de espiritualidade; denúncias de preconceito religioso e fundamentalista contra LGBTs; dicas de blogues, sites, filmes e documentários; tradução de artigos; divulgação de eventos LGBT e os inclusivos; notícias do mundo LGBT; decisões legislativas e debates políticos relativos aos direitos LGBT; temas culturais relevantes. Contato: espiritualidadeinclusiva@gmail.com
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
Gays: cidadãos de segunda classe num Estado laico?
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