domingo, 5 de fevereiro de 2012

[Tradução] A Noite Escura da Alma

Por Toby Johnson – acesse o site do autor: http://tobyjohnson.com

A noite escura da alma refere-se a uma espécie de estado afetivo, também chamado de aridez, que se diz preceder a experiência mística direta. Refere-se à noção de que você tem que passar por uma certa quantidade de sofrimento antes que você possa perceber a alegria e o prazer.

A noite escura é caracterizada pela insatisfação e tédio com relação à maneira como as pessoas “normais” vivem suas vidas “normais”. Subjacente a essa insatisfação existe uma "fome espiritual" de algo além do que o mundo oferece. Isso é interpretado como a experiência de união com Deus. Enquanto esta imagem se aplica a todas as pessoas, tem aplicação particularmente apropriada para a experiência de homens gays, especialmente gays espiritualmente conscientes.

Há uma certa sabedoria implícita no ser gay, um sentido de compreender uma dimensão oculta da realidade que a maioria das pessoas não parece perceber onde está. Aprendemos isso no início da vida. No começo, é apenas em referência a si mesmo. Ou seja, sentimos, muitas vezes incipiente, que há algo sobre nós mesmos que temos que manter em segredo, algo que só nós (e Deus) podemos saber. Podemos desenvolver uma visão mágica ou religiosa do mundo a partir deste sentido de secretude ou sacralidade.

Como homens gays mais velhos, podemos vir a compreender que o que tínhamos entendido como a "dimensão secreta" era, de fato, a dimensão homossexual, e que tem havido outros antes de nós que já viveram uma vida em segredo e "escuridão" como companheiros homossexuais. Tornamo-nos fascinados com a inclinação homossexual que nós - e nossos semelhantes - podemos ver ao longo da história e cultura. Queremos saber quem era gay no passado, quais estrelas de cinema, quais políticos e celebridades, quais instrutores espirituais compartilharam nosso segredo (muitas vezes em sua própria "escuridão").

As pessoas homossexuais – talvez de modo demasiado arrogante – que chamam de “corretas” (inglês straight, referindo-se a heterossexuais) as pessoas ditas “normais”, podem não perceber esta dimensão escondida em tudo. Não há, afinal, nenhuma razão para estes virem a desconfiar que  são ensinados por seus pais, professores, padres, etc, que alguns podem chamar de: "as autoridades" - pelo menos, nenhuma razão sentida em sua carne. Claro que, como eles desenvolvem e aprofundam as suas próprias vidas psicológicas e espirituais, são suscetíveis de perceber que há uma dimensão secreta. Isto é, afinal, a descoberta de todos os chamados "místicos". Uma parte importante da contribuição gay pode ser justamente a revelação da dimensão oculta da vida.

A noite escura é um passo comum ao alguém se apresentar como gay. Ou seja, os gays muitas vezes experimentam confusão, depressão e perda de identidade social assim que percebem sua orientação homossexual.

Primeiro, talvez, sintamos que algo está faltando na heterossexualidade; ansiamos por algo mais. Então, quando percebemos o que é que desejamos, podemos nos sentir humilhados ou traídos, ou pelo menos podemos sentir que isso é algo que devemos manter em segredo.

Mais tarde, muitas vezes através de um momento de mudança de vida intensamente emocional, chegamos a compreender o que a homossexualidade realmente é. Então, a culpa e os equívocos são transformados, e sentimos alívio e alegria. Passamos pela noite escura através da forma de purgação, e descobrimos um mundo novo e um novo auto-conceito.

A noite escura é uma imagem de um poema de São João da Cruz, um místico espanhol do século XVI. Para quem vê pelo prisma gay, este poema é um relato de um encontro sexual anônimo que resulta em uma experiência mística.

Ele conta como João foge à noite disfarçado e vai para um lugar ermo, fora dos muros da cidade e lá conhece um homem, faz amor com ele, então, percebe que este é o Cristo fazendo amor com ele e ele acaba por desmaiar. Ele acorda e encontra a si mesmo e seu Amado deitado em um campo de lírios, uma alusão a um dos mais bonitos ditos de Jesus: Olhai para os lírios do campo, eles não labutam nem fiam, mas até mesmo o Rei Salomão, em toda a sua glória, não era adornado como uma deles.

Nós, os gays, passamos por essa escuridão como uma parte necessária de ser quem somos. E, assim, potencialmente vemos a mensagem mística por trás da religião. Nós potencialmente descobrimos do que São João da Cruz estava falando: em cada homem que encontramos, especialmente aqueles com quem fazemos sexo ou por quem nos apaixonamos, podemos ver Cristo. Na verdade, isto é o que "Cristo" significa: a divindade real da vida encarnada humana, aqui e agora. Como Jesus disse: "O que fizerdes ao menor dos meus irmãos, a mim farás." E também: "O Reino de Deus está espalhado por toda a face da Terra, e os homens não o vêem." O segredo é abrirmos nossos olhos.

Esta não é a sabedoria dos valores familiares que está compreensivelmente preocupada com a manutenção do status quo, segurando a certeza, protegendo o ninho para o bem das crianças. Mas, precisamente porque, como gays, não nos encaixamos no status quo, não experimentamos a certeza e a justiça, é que, potencialmente, temos à nossa disposição a visão mística da noite escura. Podemos abrir nossos olhos e ver na escuridão.

A Noite Escura*
Por São João da Cruz (1542-1591)

(1578)

1. Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh, ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.

2. Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh, ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.

3. Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.

4. Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia,
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.

5. Oh, noite que me guiaste!
Oh, noite mais amável que a alvorada!
Oh, noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!

6. Em meu peito florido
Que, inteiro para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna, o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.

7. Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.

8. Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.

* A partir de As Obras Completas de São João da Cruz, trad. Kieran Kavanaugh, OCD, e Otilio Rodriguez, TOC, rev. ed., Washington, DC: ICS Publicações, 1991.


Sobre Toby Johnson

Toby Johnson, PhD, é autor de oito livros: três livros de não-ficção que aplicam a sabedoria de seu professor e "velho sábio", Joseph Campbell aos modernos problemas sociais e religiosos cotidianos, três romances do gênero gay que dramatizam temas espirituais no âmago da identidade gay, e dois livros sobre a espiritualidade de homens gay e a experiência mística da homossexualidade.

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