“A homossexualidade
deve ser um desafio e não um tabu para a Ciência”, dizia já em
1957 G. A. SILVER(1) e não
obstante tal sugestão, injustificado complô do silêncio continua a
barrar da Academia os estudos
sobre “o amor que não ousa dizer o nome” (Oswald Wilde).
Já em 1927, B.
Malinowski, um dos pais da Antropologia moderna, chamava a atenção
para a importância de se estudar temas da sexualidade humana tirando
“a folha da parreira que cobre o sexo”(2) – não obstante,
neste final do segundo milênio da nossa civilização, o estudo do
amor e erotismo entre pessoas do mesmo gênero ou continua proibido,
ou é , considerado tema de marginal e de menor importância no meio
universitário. Se ponderarmos que os gays(3) e lésbicas representam
6 a 10% da população dos países ocidentais(4), concluiremos que
somente o preconceito e discriminação poderiam explicar o desprezo
pelo conhecimento de tão significativo contingente demográfico. Em
seu recente livro sobre as uniões entre homossexuais na Europa pré
moderna, J. Boswell adverte-nos do quão ilógica e cruel tem sido
nossa cultura, notadamente após o século XIV, ao eleger a
homossexualidade como a maior e mais horroroso de todos os nossos
tabus sexuais. O “pecado nefando isto é , aquele cujo nome não
pode ser mencionado - e muito menos praticado! - foi considerado pela
moral judaico-cristã como mais grave do que os mais hediondos crimes
anti-sociais, como por exemplo, o matricídio, a violência sexual
contra crianças, o canibalismo, o genocídio e até o deicídio -
todos pecados-crimes mencionáveis, enquanto só o abominável pecado
de sodomia foi rotulado e tratado como nefandum”.(5)
É pois com o objetivo
de quebrar o silêncio e tabu que ainda cerca o amor entre pessoas em
nosso continente, que decidi tratar da história e antropologia da
homossexualidade na América Latina. Reunindo informações
bibliográficas de difícil acesso, geralmente inexistentes nos
compêndios tradicionais, minha intenção, além de esboçar um
quadro geral do homoerotismo em diferentes áreas culturais desta
parte do orbe, é estimular outros pesquisadores nativos a aprofundar
as pistas aqui apresentadas, não apenas visando o deleite
intelectual, diletante ou fetichista, mas tendo em vista o
reconhecimento dos direitos de cidadania deste buliçoso segmento
social cujos direitos humanos são negados e vilipendiados na maior
parte de nossos países, inclusive dentro das próprias
universidades.
Para efeito de análise,
dividi este trabalho em três partes, a saber:
I) A Homossexualidade
na América Pré-Colombiana
II) A repressão aos
Sodomitas na América Latina Colonial
III) Gays e lésbicas
latino-americanos hoje
Portanto, antecipando
algumas das conclusões desta pesquisa, gostaria de destacar que o
estudo da Etno-História do Homoerotismo na América Latina
reveste-se de particular interesse para diferentes mentalidades, do
quotidiano e da sexualidade. Os dados aqui coligidos permitem avançar
a discussão sobre a própria teoria da Homossexualidade(6),
ratificando-se de um lado a universalidade temporal e espacial das
práticas homófilas, desmitificando assim a acusação vulgar de que teriam sido os
europeus os introdutores do “vício filosófico” (Voltaire) no
Novo Mundo.
Outra questão sugerida
pelos dados aqui apresentados remete-nos a um dos impasses teóricos
mais cadentes e ainda não
resolvido pelos estudiosos deste tema: até que ponto o conceito de homossexualidade pode
ser usado com propriedade heurística para descrever e interpretar as relações unissexuais
do mundo extra-europeu? Deixarei ao leitor, no final deste trabalho,
retirar suas próprias conclusões quanto a esta polêmica que coloca
de um lado os essencialistas e do outro, os
construtivistas sociais.(7)
I. A homossexualidade
na América Pré- Colombiana
"Ultra Oequinotialem
no peccari."
(Ditado Ibérico do
Século XV)
Para se estudar as
práticas homossexuais no Novo Mundo quando da chegada dos
conquistadores europeus, dispomos basicamente de três fontes:
Esculturas e cerâmicas representando cenas homoeróticas; Mitos
conservados na memória oral dos nativos e registrados nos
manuscritos nos tradicionais; Relatos dos primeiros cronistas que
entraram em contato com os ameríndios(8).
Conforme relata Gonzalo
Fernandez de Ovideo, em sua História General y Natural de las
Indias, (1535), o gosto pelo vício nefando se espalhava não só por
toda a área circum-caribe, mas também ao longo da Tierra Firme,
atual costa da Venezuela e Colômbia, “donde muchos destos indios y
indias eram sodomitas”. Observou escandalizado que “en aquel
diabólico e nefando acto de Sodoma, hechos de oro de relieve. Yo vi
uno destos joyeles del diablo que pesaba veinte pesos de oro, hueco, vaicado
y bien labrado, que se hobo en el Puerto de Santa Marta en la costa
de Tierra Firme, año de
1514... Asi que ved si quien tales joyas se prescia y compone su
persona, si usará tal de maldad en
tierra donde tales arreos traen, o si se debe tener por cosa usada e
ordinaria e común a ellos.”(9)
Também Francisco Lopez
de Gomara (1552) refere-se à presença de ídolos homossexuais entre
os nativos mexicanos de Sant Anton: “Hallaron entre unos arboles un
idolillo de oro y muchos de barro, dos hombres cabalgando uno sobre
otro a fuer de Sodoma”.(10)
Por ocasião da
descoberta da Península de Yucatan, encontraram os espanhóis outra
comprovação escultórica de que os Maias prestavam culto ao amor
unissexual: “Tenian muchos idolos de barro, unos como con caras de
demonios y otros como de mujeres y otros de malas figuras, de manera
que al parecer, estaban haciendo sodomias los unos indios com los
otros.”(11)
Também na América do
Sul, na região dos Andes, foram encontrados provas arqueológicas
confirmando a prática do homoerotismo antes da chegada dos europeus.
Há notícia que os espanhóis teriam igualmente no Peru encontrado e
derretido esculturas em ouro representando cópula anal entre dois
homens.(12) Preservaram-se contudo até nossos dias diversas peças
de cerâmica, reservatórios de água ou moringas, onde exímios
artistas pré-incaicos esculpiram na argila, cenas explícitas de
homossexualismo. Na célebre coleção de cerâmica erótica Mochica
coletada pela Família Larco, com data anterior a 1000 A.D., 3% das
peças retratam realisticamente cenas de penetração per annum.(13)
Além dos ídolos
mexicanos e das cerâmicas peruanas, outra importante fonte
pré-colombiana para se conhecer a prática da homossexualidade no
Novo Mundo é a coleção dos célebres Códices Maias - obras El
Chilan Balam , El Popol Buj ( Livro del Consejo) e as Profecias Maias
- obras pictográfica-hieroglíficas que tratam da história
mitológica e costumes desta civilização. Através destes
manuscritos, notadamente do Códice Vaticano n 3738, constata-se que
no panteão asteca, ocupava lugar proeminente a deusa Xochipilli,
divindade hermafrodita, protetora do amor e da sexualidade não
procriativa, a qual, quando representada como homem, tornava-se o
deus Xochipilli, padroeiro da homossexualidade masculina, controlador
das doenças sexualmente transmissíveis(14). Segundo estes Códices,
os Maias dividiam a história mitológica do mundo em diferentes
períodos, sendo a Quarta Idade, a que precede o período anterior à
chegada dos Europeus, também chamada de Idade Negra ou Idade das
Flores, e tinha como patrona Xochiquetzal, símbolo do sexo e da
sensualidade. “Esta es la edad em que los vícios, la molicie, el
abandono de las costumbres austeras se instalan entre los hombres. Es
la edad en que se olvidam las virtudes viriles de los guerreros y de
los magistrados, y se ensalza la vida blanda, facil y pervertida. Es
sublimación de la Danza de las Flores, de las grinaldas y del
afeminamiento. Es el imperio de los mostradores del dorso, segun el
Codice del Chilan Balam”.(15)
São contudo os relatos
dos primeiros cronistas contemporâneos às conquistas do Novo Mundo,
a fonte principal comprobatória da existência, grande extensão e
variedade das práticas homossexuais na América Latina.
Já Fernan Cortez, na
sua Primeira Carta Relación, enviada ao Imperador Carlos V em 1519,
dizia:
“Hemos informados de
cierto que todos ( los indios) de Vera Cruz son sodomitas y usan
aquel abominale pecado,”(16) acrescentando Lopez de Gomarra que os
nativos do Rio Panuco e adjacências eram “grandisimos putos”(17),
usando o mesmo termo corrente desde a Idade Média em toda Península
Ibérica, injustamente associando os homossexuais às prostitutas.
Tarefa extremamente difícil é avaliar o grau de objetividade ou
subjetividade destas afirmações pois nalguns casos, parece que os
cronistas tendiam a exagerar os hábitos pecaminosos dos selvagens
exatamente com o escopo de justificar a conquista, redução ou
genocídio dos mesmos. Gomarra e outros cronistas associam a sodomia
à impiedade: “Como no conocen el verdadero Dios y Señor, están
en grandisimos pecados de idolatria, sacrifícios de hombres vivos,
comida de carne humana, habla con el diablo, sodomias, etc”(18)
Quanto aos astecas, há
clara contradição entre os primeiros observados, Diaz del Castilho
apontando-os como grandes amantes do homoerotismo, enquanto o
franciscano Frei Benardino de Sahagum exime-os desta
abominação, ambos concordam, no entretanto, quanto à afeminação
e travestismo como
elementos estruturais da prática homossexual masculina: “Eran
todos los démas dellos sométicos, en
especial los que vivian en las costas y tierra caliente, en tanta
manera que andaban vestidos en
hábito de mujeres muchachos a ganar en aquel diabolico y abominable
vicio.”(19) O citado missionário franciscano assim descreve os
costumes dos nativos na sua História General de las cosas de la
Nueva España:
“El somético
paciente es abominable, nefando y detestable, digno de que hagan
burla y se rian las gentes, y el hedor y fealdad de su pecado nefando
no se puede sufrir, por el asco que o em el hablar, por todo se
muestra mujeril o afeminado, en el andar o en el hablar, por todo lo
cual merece ser quemado.”(20) Também Fray Bartomé da las Casas
defende os nativos que missionou de serem muito afeitos às
nefandices, ressaltando os especialistas nas civilizações maias e
astecas a contradição notada entre a mitologia extremamente
dionisíaca, valorativa inclusive da homossexualidade, ao
lado de uma prática moral bastante repressiva, do tipo apolíneo,
prevendo inclusive a pena de
morte para certos casos de homossexualismo.(21)
“Aceptada o
rechazada, honrada o severamente castigada, según la nación que se
ejerció, (la homosexualidad) estava presente del Estrecho de Bering
al de Magallanes...”concluiu com maestria quem primeiro estudou
“las anormalidades sexuales de los aborigenes americanos.”(22)
Inúmeros são os relatos de cronistas, viajantes e missionários
descrevendo a presença de índios homossexuais e travestis entre as
tribos e nações da atual América do Norte, onde famosos berdaches
chegaram a ser retratados em pitorescas gravuras do século XVII.(23)
Praticada pelos maias, astecas e caribes, a homossexualidade também
teve muitos adeptos em diferentes civilizações dos antigos impérios
andinos, da Colômbia ao Chile, incluindo os Chavin, Tiahunaco,
Nazca, Chimu, notadamente os Incas e Chibchas. Em sua Crônica del
Peru, Cieza de Leon observou que “por los tener el demonio más
presos en las cadenas de su perdición, en los oraculos y adoratórios
donde se hallaba el ídolo y daba las respuestas, hacía entender que
convenia para el servicio suyo, que alguns mozos desde su niñez
estuviesen en los templos para que a su tiempo, cuando se hiciesen
los sacrificios y fiestas solenes, los señores y otros principales,
usasen com ellos el maldito pecado de la sodomia. Segun el padre
Domingo de Santo Tomás, generalmente entre los serranos y Yungas, en
cada tiemplo o adoratorio principal, tienen um hombre o dós o más,
segun el ídolo, los cuales andan vestido como mujeres y dias
principales, su ayuntamiento carnal torpe, especialmente los señores
principales. Ellos hacian entender que tal vicio era especie de
santidad y religion”(24).
A associação entre
homossexualismo e xamanismo e outras manifestações religiosas é
tema fartamente documentado em incontáveis culturas, em todos
continentes e ao longo de toda história humana.(25) Também entre os
aborígenes do Brasil e das partes mais meridionais da América do
Sul abundam evidências de que os amores homossexuais faziam parte
das alternativas eróticas socialmente aceitáveis
antes da chegada dos conquistadores portugueses. Entre os Tupinambá,
que ocupavam a maior parte da costa brasileira, os índios gays eram
chamados de tibira, e as lésbicas de çacoaimbeguira. Eis como são
descritos no Tratado Descritivo do Brasil em 1587:
“Não contentes em
andarem tão encarniçados na luxúria naturalmente cometida, são
muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não tem por
afronta. E o que se serve de macho se tem por valente e contam esta
bestialidade por proeza. E nas suas aldeias pelo sertão há alguns
que tem tenda pública a quantos os querem como mulheres
públicas.”(26)
Eis como outro
cronista, Gandavo, já em 1576 descrevia a conduta das
mulheres-machos:
“Algumas índias há
que não conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão ainda que por isso as
matem. Estas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens
e seguem seus ofícios
como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados da mesma
maneira que os machos e vão à
guerra com seus arcos e flechas e à caça, preservando sempre na
companhia dos homens. E cada uma tem mulher que a serve, com quem diz
que é casada. E assim se comunicam e conversam como marido e
mulher.”(27)
Provavelmente foram
estas índias ultra masculinizadas, as çacoaimbeguira que serem
vistas lutando contra os espanhóis no Rio Marañon, foram
confundidas com as legendárias Amazonas, mito que propagou-se por
todo o Continente Americano, muito embora carecendo de qualquer
evidência confiável quanto à sua veracidade.(28)
Entre os nativos
Guaicuru, pertencentes à grande nação Guarani , residentes nas
margens do Rio Paraguai, ainda nos finais do século XVIII, eram
encontrados índios homossexuais que além de travestirem-se, eram
totalmente identificados com o estilo de vida do sexo oposto:
“Entre os Guaicurus e
Xamicos, há alguns homens a que estimam e são estimados, a que se
chamam cudinhos, os quais lhes servem como mulheres, principalmente
em suas longas digressões. Estes cudinhos ou nefandos demônios,
vestem-se e se enfeitam como mulheres, falam como elas, fazem só os
mesmos trabalhos que elas fazem, trazem jalatas, urinam agaxados, têm
marido que zelam muito e tem constantemente nos braços, prezam muito
que os homens os namorem e uma vez cada mês, afetam o ridículo
fingimento de se suporem menstruados, não comendo mulheres naquela
crise, nem peixe nem carne, mas sim de algum fruto e palmito, indo
todos os dias, como elas praticam, ao rio, com uma cuia para se
lavarem.”(29)
À guisa de conclusão
desta primeira parte, baseando-me nos principais estudos sobre a homossexualidade na
América Latina, assim como em monografias antropológicas e
históricas consagradas à
diferentes culturas desta região, enumero a seguir a lista das
etnias índigenas, do passado e do presente,
sobre as quais há evidência arqueológica, histórica, etnográfica
ou linguística, comprobatória da prática do homossexualismo.(30)
- México: Albardaos,
Cipacingo, Itza, Jaguaces, Panuco, Sinaloa, Sonora, Tabasco,
Tahus,Tlasca, Yucatecas, Maias e Astecas.
- Panamá: Dairem,
Panamá
- Colômbia: Bogotá,
Cayos, Chinatos, Chitarero, Guaira, Gauticos, Laches, Lile, Kagaba,
Kogi, Mosca, Matilones, Urabaes, Zamba.
- Peru: Camana,
Cañares, Carauli, Chibchas, Chinchas, Chincamas, Conchuco, Guanuco,
Huayllas, Manta, Peru, Picta, Quellaca, Tarama, Tumebamba e os
nativos de Puerto Viejo, Isla da Plata, Isla da Puna, Sta Helena, San
Miguel, Serranos.
- Venezuela: Acchaguas,
Bobure, Capechos, Carabina, Caribes, Chiricoa, Ciparicote,
Coquibacoa.
- Bolívia:
Chiguano,Wachipaeri
- Chile: Araucanos,
Mapuche, Patatões
- Brasil: Bororó,
Tupinambá, Guatós, Banaré, Wai-Wai, Xavante, Trumai, Tubira,
Guaicuru, kaingaig, Nambiquara, Tenetehara, Yanomani, Mehinaku,
Camaiurá, Cubeo, Guaiaquil.
II. A repressão aos
sodomitas na América Latina colonial
“Raça sobre a qual
pesa uma maldição e deve viver na mentira e no perjúrio, visto que
sabe ser tido punível e vergonhoso, por inconfessável, seu desejo,
o que faz para toda a criatura a maior doçura.”
( M. Proust, 1921)
Apesar da sodomia ser
considerada pela Cristandade como “o mais torpe, sujo e desonesto
pecado”, punida como crime hediondo equivalente ao regicídio e à
traição nacional, merecedores os homossexuais da pena de morte na
fogueira, não obstante tamanho tabu e discriminação, à época das
grandes descobertas, floresceu na Península Ibérica intrépida e
heroíca subcultura gay(31) nalgumas partes mais visível e ousada do
que a existente em países europeus fora da esfera inquisitorial.(32)
Malgrados anátemas dos
missionários e primeiros cronistas contra os índios praticantes do
mau pecado, a despeito da perseguição desencadeada pelos
conquistadores e autoridades contra tal crime - lembremo-nos do cruel
genocídio praticado por Vasco Balboa, em 1513, o qual, no istmo do
Panamá, encontrado numeroso séquito de nativos homossexuais,
prendeu quarenta deles que foram devorados por cães ferozes,
conforme narra Pietro Martire e retrata dramática gravura da
época.(33)
Apesar da violenta
homofobia capitaneada pela Inquisição, o certo é que desde os
primórdios da colonização, sodomitas europeus encontraram no Novo
Mundo espaço privilegiado para a prática do homoerotismo. A
extensão e isolamento dos novos territórios, a nudez e maior
liberdade sexual dos nativos e escravos, a frouxidão moral dos
muitos desclassificados sociais que vieram arriscar a sorte nas
Américas, ou para cá foram degredados, são fatores que facilitaram
a propagação da homossexualidade nas novas conquistas.
Acrescenta-se ainda outro elemento facilitador da homossexualização
notadamente da América Portuguesa: 18% dos sodomitas condenados ao
degredo pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa foram enviados para
o Brasil,(34) a maior parte deles reincidindo no vício italiano.
Salvo erro, o primeiro sodomita público e notório a pisar nas
Américas de que temos notícias foi o jovem português Estevão
Redondo, criado do Governador de Lisboa, D. Manoel Telles, que
arribou em Olinda, no nordeste brasileiro, em fevereiro de 1549,
“degredado para sempre.”(35)
Em 1558 é a vez do
cirurgião Felipe Correia, inveterado fanchono com nítida tendência
cross-gender(36) ser degredado para o Brasil: “tinha fama de
mulherigo por suas falas e jeitos, bufarão e paciente”.(37)
Estabelecida em 1536, a
Inquisição Portuguesa nunca conseguiu instalar um tribunal autônomo
em terras brasílicas, diferentemente do que ocorreu com o Santo
Ofício de Índias, no litoral colombiano. Infelizmente ainda não
foi realizado um inventário de todos os sodomitas latino-americanos
presos e processados por estes tribunais da Santa Inquisição. Temos
notícia que já em 1548 foram registrados sete casos de sodomia na
Guatemala, entre estes, o diácono Juan Altamiro, e seu cúmplice,
Frei José de Barrera, além de um índio, Juan Martin, que ao ser
encaminhado para a fogueira foi salvo devido a um distúrbio
provocado por quatro clérigos e outros civis. Levantamentos parciais
informam sobre a prisão de 19 sométigos no México em 1658: nada consta nas principais
obras sobre a atuação inquisitorial no Peru e Chile no tocante ao
abominável pecado de sodomia.(38)
É para o Brasil que conseguimos localizar o maior número de
registros documentais permitindo
reconstituir com abundância de detalhes, as principais
características da vivência homossexual
dos colonos a partir dos finais do século XVI.
Entre 1591-1620, de um
total de 283 culpas confessadas nas duas Visitações que o Santo
Ofício (da fez a diferentes Capitanias do Nordeste brasileiro, há
registro de 44 casos de sodomia (15,5%), sendo, depois da blasfêmia,
o desvio mais frequentemente praticado pelos colonizadores. Dos
denunciados, 61% eram brancos, 24% mestiços de variegados fenótipos,
9% negros e 6% índios, predominando as relações sodomíticas entre
parceiros de diferentes cores, os quais ocupavam toda a gama de
profissões: de Governador Geral do Brasil, como Diogo Botelho, a
sacerdotes, senhores de engenho, funcionários públicos, militares,
estudantes, feitores, criados, escravos, etc.(39)
Tais relações entre
homossexuais de cores-classes diferentes muitas vezes antagônicas,
nem sempre refletem a mesma lógica da dominação senhorial
heterossexista, pois há vários exemplos de índios e negros que
desempenharam o papel ativo ou quer na iniciativa da sedução, quer
na própria relação copulativa, conforme demonstrei em meu trabalho
“O Sexo Cativo: Alternativas eróticas dos africanos e seus
descendentes no Brasil Escravista.”(40)
Após beneditino
levantamento nos mais de quatro mil denúncias, e 400 processos de
sodomia arquivados na Torre do Lombo de Lisboa, localizamos até o
presente 283 denúncias de brasileiros ou portugueses, residentes no
Brasil, infamados de praticarem o pecado de Sodoma. Destes, 32 foram
processados, sendo 11 condenados a remar nas galés del Rei, alguns
por cinco anos, outros “galés perpétuas”; 6 foram degredados
para áreas remotas da Colônia ou para África. Embora nenhum
sodomita destes presos pelo Santo Ofício tenha sido condenado à
morte na fogueira, há registro da execução dois homossexuais no
Brasil colonial: em 1613, em São Luís do Maranhão, por ordem dos
invasores franceses, instigados pelos missionários capuchinhos, um
índio Tupinambá, publicamente infamado e reconhecido como tibira,
foi amarrado na boca de um canhão sendo seu corpo estraçalhado com
o estourar do morteiro, “para purificar a terra de suas
maldades”(41). Em 1678, um segundo mártir homossexual é executado
na Capitania de Sergipe del Rei: um jovem negro,
escravo, “foi morto de açoites por ter cometido o pecado de
sodomia”.(42)
Quanto às lésbicas,
como em 1646 o Santo Ofício Português deliberou excluir a sodomia
foeminarum da lista dos crimes pertencentes à sua jurisdição, foi
sobretudo nos finais do século XVI que as homossexuais femininas
foram vítimas da sanha inquisitorial, mesmo assim, menos reprimidas que os
homoeróticos masculinos. Das 29 denúncias de lesbianismo
registradas no Nordeste brasileiro,
entre 1591-1593, 5 receberam penas pecuniárias e espirituais, 3
foram degredadas e 2 condenadas a açoites públicos.(43)
Conforme já referimos,
“amor que não ousava dizer o nome” teve seus adeptos em todas
classes, raças e etnias do Brasil Colonial, sendo praticado tanto
nas mansões senhoriais, como nos casebres de escravos e livres
pobres; nas casernas, igrejas e mosteiros masculinos e femininos; na
zona rural e urbana, incluindo tanto interações esporádicas e
fortuitas, com diferentes parceiros, quanto relações estáveis,
algumas por décadas seguidas. Em meu estudo “Desventuras de um
sodomita português no Brasil Seiscentista” reconstruo a vivência
homossexual de um violeiro-mercador de fumo, Luiz Delgado e de seus
numerosos amantes, primeiro em Évora, no Reino, depois degredado
para o Brasil, vivendo ora no Rio de Janeiro, ora na Bahia, onde
concluo que malgrado a existência de legislação draconiana tanto
civil quanto canônica, contra o crime de sodomia, houve espaço na
América Colonial para o surgimento de uma incipiente subcultura gay,
vezes, exibida e frenética,(44) comportando inclusive o
exibicionismo desafiador de travestis. O primeiro homossexual
travesti que temos notícias no Brasil foi um negro natural do Congo,
Francisco Manicongo, escravo de um sapateiro, residente em Salvador,
denunciado na Visitação de 1591: “recusava-se trazer vestido de
homem que lhe dava seu senhor, [conservando] o costume dos negros
gentios de Angola e Congo, onde os negros somitigos que o pecado
nefando servem de mulheres paciente, são chamados de quimbanda, os
quais trazem um pano cingido com as pontas por diante que lhes fica
uma abertura diante...”(45). Também em Cuba há informação de
práticas homófilas entre os escravos nos engenhos de cana de
açúcar.(46) Também índios já batizados, vivendo nos arredores
dos primeiros núcleos coloniais do Brasil, são apontados como
sodomitas, assumindo alguns ofícios e posturas geralmente atribuídas
ao sexo frágil, outras acusados de “viverem como marido e mulher,
como se amancebados fossem”.(47)
Tudo leva a crer que
também nos demais países latino-americanos, durante o período
colonial, existiram não apenas cripto-sodomitas amorfos e isolados,
mas um contingente não desprezível de sométicos que apesar de
rotulados de maricas, eram suficientemente machos para exteriorizar
suas preferências invertidas através de gestos, roupas e adereços
próprios de um sub-cultura sincrética e sui-generis. É para o
México, além do Brasil, que dispomos de documentação comprovante
de tal hipótese: no ano de 1658 foram denunciados 123 sodomitas
vivendo na cidade do México e seus arredores, dos quais 19 foram
presos e 14 queimados. Um destes escapou da fogueira por ser menor de
15 anos, recebendo contudo como castigo, 200 açoites e 6 anos de
trabalhos forçados.(48)
Segundo contava a
Alcaide do Crime da Nova Espanha, D. Sotomayor, “o pecado nefando
tem mui contaminado estas províncias”, diagnóstico correto, pois
dentre as mariquitas presas, constava alguns que por quarenta anos
seguidos praticavam somitigarias, “se regalaban uns a otros”,
chegando a simular prenhez. Entre os denunciados predominavam os
índios, mestiços, espanhóis, mulatos e até mouriscos e
portugueses.(49) Dentre estes destacavam-se os domésticos ou
escravos, seguidos dos estudantes e pequenos comerciantes. Como
ocorria na Península Ibérica, também os sométicos de Nova Espanha
assumiam traços e características do sexo frágil, trazendo
vestidos de mulheres e tratando-se com nomes femininos: entre os
sentenciados havia um mulato apelidado Cotita; os mestiços atendiam
por La Zangarriana, La Estampa, La Conchita; um alfaiate espanhol era
La Luma, outro, Las Rosas; o índio Martin tornou-se La Martina de
los Cielos e um negro atendia por La Morossa.(50) Eis como se
comportava um destes sométicos mexicanos:
“El dicho Juan de la
Vega hera mulato afeminado... le llamaban Cotita (que es lo mesmo que
mariquita) y el dicho mulato se quebrava de cintura y traia atado en
la frente de hordinario un pañito llamado melindre que usan las
mujeres y en las aberturas de las mangas de um jubón blanco que
traia puesto, traya muchas cintas pendientes y se sentava en el
suelonen un estrado como mujer y hacia tortilhas y labada y
guisaba.”(51)
Consta que após este
violento progrom de 1658, novamente em 1673 mais sete mulatos, negros
e mestiços de Mixcoac foram queimados, aí também ficamos em
dúvida, se processados com todas as formalidades próprias do Santo
Ofício, ou por iniciativa das autoridades civis, considerando ser a
sodomia crime de foro misto.(52) Além destes homossexuais mexicanos
executados na segunda metade do século XVII, encontrei nos arquivos
portugueses referência a mais quatro sodomitas vivendo na América
Espanhola, até desconhecidos pela historiografia local. O primeiro
episódio remete-nos ao Vice-Reino do Peru em 1598: Frei João de
Valencuela era natural de Xerex (Sevilha), frade carmelitano, doutor
em Teologia e missionário do Peru, “mestre e grande pregador”.
Ao retornar dos Andes, em Badajoz (Estremadura), foi preso pelos
Familiares do Santo Ofício português, acusado de dormir de portas
trancadas com seu criado, o moço Joanilho,13 anos. No desenrolar da
investigação, foi acusado de “ser tão puto quantos putos havia
na Itália”, terra que no imaginário ibérico da época
representava a própria reencarnação de Sodoma e Gomorra.
Denunciaram mais: que após missionar no Peru e na Nova Espanha, na
caravela em que retornou a Europa, por pouco não foi jogado no mar
pelos marinheiros escandalizados, com medo de que Deus Nosso Senhor
castigasse-os com desgraças e naufrágios, em castigo pela
devassidão do frade somítigo. Apesar de alegar inocência, dos
Carmelitas de Castilha, obrigado ao jejum de pão e água todas as
quartas e sextas feiras.(53)
Para o século XVII -
representa o período de maior homofobia por parte da Inquisição -
dispomos de mais de dois processos. Bartolomeu Martins de Moura, 40
anos, ouvires de ouro, parte de cristão-novo, preso em 1655, foi
julgado não só por professar secretamente a Lei de Moisés, como
por práticas sodomíticas. No Santo Ofício declarou ter vivido dois
anos na cidade do México e em Vera Cruz, sendo na ocasião estudante
talvez, colega de alguns daqueles 7 estudantes sentenciados naquela
província em 1658.(54) Este último caso relativo a um sodomita
hispano-americano preso pela Inquisição de Lisboa é
particularmente interessante, por reunir algumas especifidades. O réu
é natural do México: Pedro Medina, 30 anos, soldado. Ostentava
imagem masculina diferentemente de muitos outros sométicos
afeminados:
“tinha rosto trigueiro, cabelo preto com gadelhas sobre os ombros, barba preta, estatura mediana. Vestia calções amarelos com riscas verdes, gibão riscado de negro, tudo coisa da Índia.”(55)
Seu pai era português,
mudando para o México onde servia de escudeiro a uma fidalga. Em
Nova Espanha Pedro Medina nasceu, foi crismado na Sé do México,
sendo oficiante D. Francisco Manso. Nada informam os documentos sobre
sua vida erótica na terra natal. Feito soldado na armada castelhana,
viajou por longínquos reinos do Oriente: Filipinas, Jacatará na
Índia, China, caindo cativo dos mouros. Sofrendo violentos
espancamentos de seu dono islamita, então na Pérsia, arrenegou
Jesus Cristo, vivendo na Lei de Maomé, até que foi resgatado pelos
calvinistas holandeses, permanecendo preso num navio, na costa do
Ceilão, por meses seguidos. Novamente livre, após tantas
peripécias, ao chegar em Lisboa, é denunciado ao Santo Ofício por
um jovem de 20 anos, Manoel Rois, igualmente ex-prisioneiro dos
batavos. Segundo este moço, nos 6 meses em que sob o jugo dos
calvinistas, mantiveram mais de 120 cópulas sodomíticas, “metendo
seu membro viril e derramado semente no vaso traseiro dele,
confessante, e com consentimento dele, cometeram mais 80 vezes o
nefando pecado de sodomia, sendo Pedro Medina o paciente.”
O reú mexicano, por
sua vez , ao ser preso, acrescentou que quando na Índia, também
cometera o pecado de sodomia com um moço holandês, Cornélio, sendo
agente e paciente, "uma só vez, e com João Bautista, veneziano de
18 anos, prestaram culto à Vênus Prepóstera mais três ocasiões.
Foi condenado à aviltante pena dos açoites pelas públicas de
Lisboa e condenado a 5 anos de gáles" - um local tentador para quem
estava tão acostumado a não resistir às pulsões homoeróticas
embalado pelas ondas do mar...
III. Gays e lésbicas
latino americanos hoje
Com o fim das
Inquisições Portuguesa e Espanhola, também na América Latina são
extintos os Tribunais do Santo Ofício, em 1820 no Peru e México, em
1821 em Cartagena e no Brasil.(56) Extingue-se o Monstrum Horribilem
mas infelizmente, como mentalidades não se mudam por decreto, até
hoje persiste na América Latina o espectro inquisitorial, não
apenas na ideologia moralista e
intolerante, como na própria composição das elites locais, cujas
tradicionais descendem diretamente dos terríveis Familiares e
Comissários do Santo Ofício.(57)
Diversos países
latino-americanos, entre eles o Brasil, com a Independência, por
inspiração modernizante do Código Napoleônico, descriminalizaram
a sodomia, deixando de constar nos novos Códigos Penais, muito
embora persista entre nós, forte preconceito e discriminação
contra os praticantes desta variante amorosa. Sob alegação de
atentado ao pudor ou prática da prostituição, incontável número
de pederastas foram chantageados, encarcerados e torturados pelos
agentes da nova ordem policial. Apesar de muitos médicos e
cientistas trabalharem por retirar os invertidos sexuais das
delegacias e prisões, para tentar sua cura em seus ambulatórios e
clínicas, na qualidade de cães de guarda da moral oficial, estes
doutores, no afã de regenerar tais desvios, adotaram às vezes
modernas formas de violência, torturando as indefesas mariquitas com
terapias doloridíssimas que chegaram a incluir choques elétricos,
doses cavalares de hormônios e perigosos produtos químicos e até o
transplante de testículos de macacos.(58)
Suicídio,
clandestinidade total, baixa estima, marginalidade, assassinatos,
passaram a ser o pão de cada dia de milhares de uranistas
latino-americanos, rechaçados dentro de suas próprias famílias,
humilhados nas ruas, barrados no acesso ao trabalho. Pesquisas
levadas a cabo no Brasil, país considerado um dos menos homofóbicos
da América Latina, revelam que dentre todas as minorias sociais,
gays e lésbicas são os mais odiados, ódio manifesto num continuum
que inclui o insulto verbal, o tratamento depreciativo nos meios de
comunicação, a violência física nas ruas, prisão arbitrária, os
assassinatos(59). No México, até hoje gays são apelidados de
“cuarenta y uno” em alusão aos 41 maricones presos numa só
noite no ano de 1901, os quais foram submetidos a humilhantes
castigos, obrigados a varrer as ruas da capital e lavar as latrinas
públicas.(60)
Também na Argentina,
nos anos 30, as festas reunindo homossexuais “terminaban muchas
veces sob la irrupción imprevista de la policia, sobre todo en la
época en que era mas urgente la limpieza periódica de los vidrios
de la jefatura, menester para el los vigilantes elegian simpre a los
maricas, obligados entonces a entregarsecon trapo, jabón y agua la
feminina pero nada agradable tarea.”(61)
Nos últimos anos, a
imprensa vem noticiando repetidamente o homicídio de centenas de
gays, lésbicas no México, Colômbia, Equador(62) e sobretudo no
Brasil, onde há documentação comprovando que nos
últimos 15 anos, mais de 1200 homossexuais foram violentamente assassinados, vítimas
de crimes homofóbicos, perfazendo uma média de um assassinato de homossexual a cada
cinco dias.(63)
Para reagir contra este
verdadeiro genocídio e contra as não menos cruéis discriminações
de que são vítimas mais de 10% dos latino-americanos homófilos(64),
em sintonia com o reconhecimento internacional de que a
homossexualidade não é doença nem desvio, mas uma orientação
sexual tão legitima, normal e saudável quanto a heterossexualidade
ou bissexualidade,(65) alguns anos após a famosa rebelião gay
ocorrida em Nova York em 1969, considerada o marco inicial e símbolo
do moderno movimento homossexual internacional, também na América
Latina gays e lésbicas vêm se organizando para ter os mesmos
direitos humanos dos demais cidadãos.
Foi na Argentina onde
se organizou o primeiro grupo de defesa dos direitos de gays e
lésbicas: em 1971 é fundada a Frente de Liberación Homosexual(66)
que passou a editar o primeiro boletim homossexual do Continente do
Sul, o Somos. Logo no ano seguinte são fundados no México duas
entidades congêneres: Sex-Pol e Frente de Liberación
Homosexual.(67) Em 1978 é a vez do Brasil entrar na luta pela
cidadania dos homossexuais: nosso primeiro grupo gay chamou-se Somos,
fundado em São Paulo e logo ramificado para outros estados da
federação.
Em 1979 uma facção
deste grupo organiza o LF, Lésbico-Feminista,(68) que passou a
editar o boletim Chanacomchana. Quando da realização do I Encontro
Brasileiro de Homossexuais, em 1980, já existiam mais de vinte
grupos gays e lésbicos de norte a sul do país: hoje ultrapassam
meia centena.
Peru também teve seu
Movimento Homosexual de Lima (MHOL) fundado ainda nos inícios dos
anos 80, possuindo sede no centro da cidade onde presta assistência
psicológica e jurídica aos homossexuais. Como os demais grupos aqui
citados, com o surgimento da epidemia da AIDS, tais entidades
passaram a dedicar-se também à prevenção do HIV, contribuindo com
os governos locais e com outras não-Governamentais (ONGs/AIDS) na
prevenção desta síndrome.(69)
Colômbia possuiu nos
inícios da década de 80 a maior e melhor produzida revista gay da
América do Sul, Ventana Gay, além do boletim De Ambiente, publicado
então pelo Colectivo del Orgullo Gay, sediado em Bogotá. Segundo
Spartacus Gay Guide, a principal publicação internacional do
gênero, existiram nos inícios da década atual mais duas
publicações homossexuais em Bogotá: Lambda Gay e Conotaciones.
Segundo esta mesma fonte, em 1987, mais de 50 homossexuais foram
assassinados neste homícidios atribuídos a esquadrões da
morte.(70)
Venezuela também teve
sua organização homossexual, hoje inativa: Grupo Entendido, o qual,
em 1983, denunciou junto à Anistia Internacional uma série de maus
tratos praticados pelas forças policiais contra os frequentadores
dos espaços gays locais.(71)
México, devido à
vizinhança com os Estados Unidos, onde o movimento homossexual é
extremamente forte e organizado, e graças ao contacto com os
chicanos homófilos, é país hispano-americano onde os gays e
lésbicas estão mais organizados: já chegaram a realizar
manifestações de rua com mais de quatro mil maricones &
tortilleras. Além de dezenas de grupos homossexuais, destacando-se o
Grupo Orgullo Homossexual de Liberación, Y Que!, Collectivo Sol, com
atuação na Capital e em Guadalajara e Tijuana, dispõem os atuais
veneradores da deusa Xochiquetzal de alguns serviços de apoio, como
o Centro Comunitário Gay, Grupo para Alcoótras e Neuróticos
Homossexuais, além de um templo filial da Metropolitan Community
Church, a primeira igreja homossexual do mundo.(72)
Há países
latino-americanos onde ainda persistem leis que penalizam os
homossexuais: Nicarágua, Cuba e Equador(73), inviabilizando o
surgimento de movimento organizado em defesa da cidadania dos gays e
lésbicas. No Uruguai, Bolívia e Paraguai, e nos demais países da
América Central e Caribe, os
homossexuais ainda não se organizaram para defender seus direitos
humanos. O Chile oferece motivo para reflexão: logo após os anos
lúgubres da ditadura militar, surgiram alguns grupos bastante
dinâmicos, como Movimento Homosexual y Lesbico de Chile, o Colectivo
Lesbico-Feminista. Em 1922, realizou-se em Santiago do Chile e 1º
Encontro Sul-Americano de Grupos Gays e Lésbicos. Um detalhe
auspicioso: este encontro contou com o apoio tático da Comunidade
Quaker, um gesto histórico e pioneiro de respeito e solidariedade
humana partindo de uma entidade cristã latino-americano.
À guisa de conclusão
O estudo da
etno-história da homossexualidade na América Latina desde os tempos
pré-colombianos até à atualidade revela-nos de um lado o
preconceito irracional e cruel contra uma minoria social, os
gays, lésbicas e travestis - cuja identidade existencial e expressão
afetivo-sexual foram secularmente
considerados o mais grave pecado e crime mais hediondo, ambos
merecedores da morte.
Ao resgatar esta
micro-história tão marcada pela intolerância e violência, três
foram nossos objetivos: primeiro,
quebrar o silêncio e desmistificar o tabu que ainda hoje persistem
vis-a-vis a homossexualidade,
tornando-a tema sério merecedor de mais estudos e pesquisas pelas
diferentes áreas do conhecimento científico; segundo, ao abordar a
evolução da homossexualidade masculina e feminina neste meio
milênio de história latino-americana, tivemos como espaço
demonstrar a universalidade temporal e espacial desta manifestação
humana, avançando no conhecimento empírico de certas áreas
culturais até então pouco divulgadas nos meios acadêmicos:
terceiro, tivemos como preocupação demonstrar que a homofobia,
assim como o racismo e o machismo, são frutos podres de variegadas
matrizes culturais que se exacerbaram em nosso triste passado
escravista, e como tal, emergem como facetas de uma ideologia
perversa e desumana, que só poderá ser superada através das luzes
da ciência e pelo bom senso dos códigos internacionais de direitos
humanos.
Apesar do quadro ainda
sombrio e das frequentes violações dos direitos de cidadania dos
homossexuais latino-americanos, tudo nos leva a crer que dias
melhores começam a brilhar para tal minoria social: até
os inícios do século passado, quando da extinção do Santo Ofício
da Inquisição, a
homossexualidade era crime condenável à morte em todo Continente
Latino-Americano. Hoje, a América Latina caminha em sentido inverso:
à imitação do que ocorre a décadas nos mais
civilizados países do primeiro mundo, no Brasil, em 73 Municípios e
em três estados da Federação,
as constituições locais proíbem expressamente qualquer
discriminação baseada na orientação
sexual. Ontem, era crime ser homossexual. Hoje o crime é discriminar
o homossexual.
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Notas
(1) SILVER, G.A. “The
Homosexual: Challenge to Science”, The Nation, 1957, 84: 451-454.
(2) MALINOWSKI, B. Sexo
e Repressão na Sociedade Selvagem. Petrópolis: Vozes Editora,1973.
(3) O termo gay, provém
do catalão-provençal gai, sendo usado desde os séculos XIII-XIV
como sinônimo de homossexual. Cf. BOSWELL, J. Christianity Social
Tolerance and Homosexuality. Gay People in Western Europe from the
Beginning of the christian Era to the XIVth Century , Chicago:
Chicago University Press, 1980:43.
(4) KINSLEY, A.et
allii. Sexual Behavior in the HumanMale. Philadelphia:W.B.Saunders,
1948.
(5) BOSWELL, J.
Same-Sex Unions Premordern Europe. New York: Villard Books, 1994:
xxxiii
(6) GREENBERG, David.
The construction of Homosexuality. Chicago, The University Chicago
Press, 1988
(7) BOSWELL, J.
“Revolutions,Universals and Sexual Categories”, in Hidden from
History: Reclaiming the Gay and Lesbians Past, Duberman, M. Et.allii
(eds.) New American Library, 1990. Para efeito desta análise,
restringimos nossa amostra apenas aos territórios hoje conhecidos
como constitutivos da América Latina, tendo como limite setentrional
o México, incluindo todos os países de língua latina da América
Central, Caribe e América do Sul.
(8) Este é o momento
de prestar homenagens ao precursor dos estudos sobre a história da
homossexualidade entre os ameríndios, Antonio Raquena, que já em
1945 publicava seu pioneiro e ainda insuperado “Notícias y
consideraciones sobre las anormalidades sexuales de los aborigenes
americanos: Sodomia”, publicado na Acta Venezolana, Tomo I, nº1,
Jul.Set.1945:3-32 (traduzido para o inglês, “Sodomy among native
american peoples”, Gay Sunshine, 38/39, 1979:37-39). Apesar da
postura abertamente homófobica do autor - até certo ponto
compreensível na época, sete trabalho é o vademecum
para o estudo deste tema, do qual lançamos mão muitas vezes ao
longo destas páginas.
(9) FERNANDEZ Oviedo,
G. Historia General y Natural de las Indias. L. V, Cap.III,1535, apud
Cardin, Alberto. Guerreros, Chamanes y Travestis. INDÍCIOS DE
Homossexalidad entre los exóticos. Barcelona, Tusquets Editores,
1984:150. Depois de Raquena, A.Cardín representa a maior síntese
documental referente a esta temática.
(10) LOPEZ DE GOMARA, F
Conquista de México. História General de Indias. (1551) Apud
Raquena, op.cit. 1945:4
(11) LOPEZ DE GOMARA, F
Conquista de México. História General de Indias. (1551) Apud
Raquena, op.cit. 1945:4.
(12) LARCO HOYLO,R.
Checan: Essay on Erotic Elements in Peruvian Art. Genebra, Nagel
Publ.1965
(13) GUERRA,F. The
Pre-ColumbianMind. London, Seminar Press, 1971:43-44.
(14) BULLOUGH, V.L.
Sexual Variance in Socitety and History. Chicago, The University of
Chicago Press, 1976:42; Thompson, J.E. Maya History and Religion.
Norman, University of Oklahoma Press, 1970.
(15) Requena, op.cit.
1945_5
(16) CORTES,H “Cartas
de Relación de la Conquista de México”, tomo I,p.32, apud
Requena, op. cit.1945:8
(17) LOPEZ DE GOMARA,
op.cit. 1551, tomo I Cap.XLVII. p.163
(18) LOPEZ DE GOMARA,
op.cit. 1551, tomo I Cap.XLVII. p.163
(19) DIAZ DEL CASTIHO,
op.cit. 1605,Cap.CCVIII, apud Cardin, 1984:153
(20) SAHAGUN,B.
História general de las cosas la Nueva España. L.X, Cap.XI, apud
Cardin, op. cit. 1984:153
(21) A intolerância
machista e a homofobia deste franciscano não deixa se ser
surpreendente, pois além da homossexualidade ser conhecida durante
toda a idade Média como “vício dos clérigos”, dentre todas as
Ordens Religiosas, a dos Franciscanos era exatamente a que mais
devotos tinha do “amor que não ousa dizer o nome”. Boswell,
op.cit. 1980; Mott, Luiz. “Pagode Português: A Subcultura gay em
Portugal nos tempos da Inquisição”, Ciência eCultura,
vol.40,fev.1980:120-139
MURRAY, S.O. Male
Homosexuality in Central and South America. New York, Gai Saber
Monograph,n 5, 1987. Esta obra, que reúne 9 artigos de diferentes
especialidades sobre a homossexualidade latino-americana, inclusive
um artigo de minha autoria “Homosexuality Brazil: Bibliography” é
particularmente útil, pois apresente revisão crítica dos trabalhos
históricos e antropológicos clássicos, além de dois léxicos
sobre termos espanhóis e portugueses para referir-se aos homossexuais.
(22) Requena, op.cit.
1945:3.
(23) KATZ,J. Gay
American History. New York, Avon Books, 1976. Cf.reprodução da
gravura de Theodore deBry (1591) onde se vê hermafroditas empregados
no transporte de pessoas (pg.431)
(24) CIEZA DE LEON,P.
La Cronica del Peru. Calpe, Madrid, 1992, apud Requena, op.cit.17-18.
(25) CONNER, R.P.
Blossom of Bone reclaiming the connections between homoeroticism and
the Sacred. Harper San Francisco, 1993.
(26) SOUSA, Gabriel
Soares. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. S.Paulo, Companhia
Editora Nacional, 1971:308 334.
(27) GANDAVO, Pero
Magalhães. História da Província Santa Cruz. Tratado da Terra do
Brasil. (1576) S.Paulo, Editora Obelisco, 1964:56-91.
(28) MOTT, Luiz.
“Amazonas: Um mito e algumas hipóteses”, in América em tempo de
Conquista, Vainfas R. (Org.), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
1992:33-37
(29) Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo13, 1850, p.358;
TomoI, 1839, pg. 32-33
(30) Esta relação de
tribos indígenas sobre as quais há evidências etno-históricas
sobre a prática do homoerotismo baseia-se nas seguintes
bibliografias: Foster, S. W. “A Bibliography on Homosexuality among
Latin-American Indians”, Cabirion, nº 12, Spring/Summer
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(33) “Balboa Indos
nefandum sodomiae scelus committentes canibus obijcit dilaniandos.”
Cf. gravura no texto
(34) MOTT, Luiz.
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(35) Arquivo Nacional
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(37) Arquivo Nacional
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(41) MOTT, Luiz. “A
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S.Paulo, Editora Brasiliense, 1989. Mott, Luiz. O Lesbianismo no
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(44) MOTT, Luiz.
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(45) MOTT,Luiz.
“Escravidão e Homossexualidade”, op.cit.1986: 19-40.
(46) FRAGINALS,M El
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(47) MOTT, Luiz.
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(48) GUIJO, Gregorio.
Diário, 1648-1664. Ed. Manoel Romero deTerreos, México, 1952, 2
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Cenizas del Deseo”, de Serge Gruzinski, México, Enlace, Editorial
Grijalbo, 1985:255-280.
(49) GRUNZINSKI,
S.op.cit.1985:266
(50) Idem, ibidem,
p.272
(51) Idem, ibidem,
p.274
(52) Idem, ibidem,p.278
(53) Arquivo Nacional
da Torre do Tombo, Inquisição de Évora, Processo nº957 e nº10618.
(54) Arquivo Nacional
da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo nº7829, 1655.
(55) Arquivo Nacional
da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo nº3710, 1657.
(56) TESTAS, G.&
Testas, J. A Inquisição. São Paulo, Difusão Européia do Livro,
1968:100, “A Inquisição na América Espanhola”
(57) BENNASSAR, B. “Aux
origenes du caciquisme: Les Familiers de I’Inquisition en
Andalousie au XVIIème siècle”, Cahiers duMonde Hispanique et
Luso-Brasilien, nº727, 1976: 64-71.
(58) RIBEIRO, Leonídio.
Homossexualismo e Endocrinologia. Rio de Janeiro, Livraria Francisco
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(59) Grupo Gay da
Bahia: Violação dos Direitos Humanos de Gays e Lésbicas no Brasil.
(no prelo).
(60) DYNES, W.
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(61) BAO, Daniel.
“Invertidos sexuales, Tortilleras and Maricas Machos: The
Construction of Homosexuality in Buenos Aires, Argentina,
1900-1950”in De Cecco & Elia (orgs.), If your seduce a straight
person can you make then gay? New York, The Harwoth Press, 1993:205.
(62) Bulletin of
Internacional Gay and Lesbian Human Rights Comission, S. Francisco,
1993.
(63) Boletim do Grupo
Gay da Bahia, nº1-28, 1980-1994.
(64) É com base no
citado “Relatório Kinsey”que costuma-se calcular em 6% as
pessoas exclusivamente homossexuais, que ocupam os números 5 e 6 da
“Escala Kinsey”.
(65) Em 1985,o Conselho
Federal de Medicina do Brasil excluiu a homossexualidade da
Classificação Internacional de Saúde ratificou esta decisão,
suprimindo no último CID o parágrafo 302.0 que classificava o
homossexualismo como “desvio e transtorno sexual.”
(66)STUCKELMAN, Joey.
Intercourse, Discourse and Identity: A study of the formation of
Homosexual identitites under authoritarianism in Argentina and
Brazil. Senior Thesis, Latin American Studies, Santa Cruz University,
CA, 1992.
(67) LUMDSEN, Ian. in
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Archives, 1991.
(68) MACAE, Edward. A
construção da Igualdade. Identidade Sexual e Política no Brasil da
Abertura. Campinas, Editora Unicamp, 1990; Trevisan, J.S.
(69) ARBORELA. Manoel.
“Social and sexual varience in Lima”, in S.Murray, op.cit.
1987:101-1117.
(70) ARBORELA. Manoel.
“Social and sexual varience in Lima”, in S.Murray, op.cit.
1987:101-1117
(71) Idem, ibidem,
p.990-993
(72) Idem, ibidem, p
.519.e.ss.601
(73) Idem, ibidem,
p.122, 142, 601.
Sobre o autor
Luiz Mott é
antropólogo, historiador e pesquisador, e um dos mais conhecidos
ativistas brasileiros em favor dos direitos civis dos LGBT. Estudou
em Seminário Dominicano de Juiz de Fora. Formou-se em Ciências
Sociais pela USP. Possui mestrado em Etnologia em Sorbonne e
doutorado em Antropologia, pela Unicamp. Atualmente é professor
titular aposentado do Departamento de Antropologia da Universidade
Federal da Bahia, UFBA e é professor e orientador do programa de pós
graduação em História da Universidade Federal da Bahia, UFBA.
Assumiu sua orientação sexual em 1977. Luiz Mott é fundador do
Grupo Gay da Bahia, uma das principais instituições que laboram em
prol dos direitos humanos dos gays no Brasil. Conheça mais:
http://www.ggb.org.br
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