terça-feira, 6 de março de 2012

Etno-história da Homossexualidade na América Latina

Por Luiz Mott (Esta comunicação foi apresentada no “Seminário-Taller de História de las Mentalidades y los Imaginarios”, realizado na Pontifícia Universidad Javerina de Bogotá, Colômbia, Departamento de História e Geografia, 22-26/8/1994. Aproveito a ocasião para agradecer ao Coordenador do evento, Dr. Jaime Humberto Borja Gomez, o convite e oportunidade de participar deste seminário.*)

* Para baixar o texto em PDF: http://ich.ufpel.edu.br/ndh/downloads/Luiz_Mott_Volume_04.pdf


“A homossexualidade deve ser um desafio e não um tabu para a Ciência”, dizia já em 1957 G. A. SILVER(1) e não obstante tal sugestão, injustificado complô do silêncio continua a barrar da Academia os estudos sobre “o amor que não ousa dizer o nome” (Oswald Wilde).


Já em 1927, B. Malinowski, um dos pais da Antropologia moderna, chamava a atenção para a importância de se estudar temas da sexualidade humana tirando “a folha da parreira que cobre o sexo”(2) – não obstante, neste final do segundo milênio da nossa civilização, o estudo do amor e erotismo entre pessoas do mesmo gênero ou continua proibido, ou é , considerado tema de marginal e de menor importância no meio universitário. Se ponderarmos que os gays(3) e lésbicas representam 6 a 10% da população dos países ocidentais(4), concluiremos que somente o preconceito e discriminação poderiam explicar o desprezo pelo conhecimento de tão significativo contingente demográfico. Em seu recente livro sobre as uniões entre homossexuais na Europa pré moderna, J. Boswell adverte-nos do quão ilógica e cruel tem sido nossa cultura, notadamente após o século XIV, ao eleger a homossexualidade como a maior e mais horroroso de todos os nossos tabus sexuais. O “pecado nefando isto é , aquele cujo nome não pode ser mencionado - e muito menos praticado! - foi considerado pela moral judaico-cristã como mais grave do que os mais hediondos crimes anti-sociais, como por exemplo, o matricídio, a violência sexual contra crianças, o canibalismo, o genocídio e até o deicídio - todos pecados-crimes mencionáveis, enquanto só o abominável pecado de sodomia foi rotulado e tratado como nefandum”.(5)

É pois com o objetivo de quebrar o silêncio e tabu que ainda cerca o amor entre pessoas em nosso continente, que decidi tratar da história e antropologia da homossexualidade na América Latina. Reunindo informações bibliográficas de difícil acesso, geralmente inexistentes nos compêndios tradicionais, minha intenção, além de esboçar um quadro geral do homoerotismo em diferentes áreas culturais desta parte do orbe, é estimular outros pesquisadores nativos a aprofundar as pistas aqui apresentadas, não apenas visando o deleite intelectual, diletante ou fetichista, mas tendo em vista o reconhecimento dos direitos de cidadania deste buliçoso segmento social cujos direitos humanos são negados e vilipendiados na maior parte de nossos países, inclusive dentro das próprias universidades.

Para efeito de análise, dividi este trabalho em três partes, a saber:

I) A Homossexualidade na América Pré-Colombiana

II) A repressão aos Sodomitas na América Latina Colonial

III) Gays e lésbicas latino-americanos hoje

Portanto, antecipando algumas das conclusões desta pesquisa, gostaria de destacar que o estudo da Etno-História do Homoerotismo na América Latina reveste-se de particular interesse para diferentes mentalidades, do quotidiano e da sexualidade. Os dados aqui coligidos permitem avançar a discussão sobre a própria teoria da Homossexualidade(6), ratificando-se de um lado a universalidade temporal e espacial das práticas homófilas, desmitificando assim a acusação vulgar de que teriam sido os europeus os introdutores do “vício filosófico” (Voltaire) no Novo Mundo.

Outra questão sugerida pelos dados aqui apresentados remete-nos a um dos impasses teóricos mais cadentes e ainda não resolvido pelos estudiosos deste tema: até que ponto o conceito de homossexualidade pode ser usado com propriedade heurística para descrever e interpretar as relações unissexuais do mundo extra-europeu? Deixarei ao leitor, no final deste trabalho, retirar suas próprias conclusões quanto a esta polêmica que coloca de um lado os essencialistas e do outro, os construtivistas sociais.(7)

I. A homossexualidade na América Pré- Colombiana


"Ultra Oequinotialem no peccari."
(Ditado Ibérico do Século XV)

Para se estudar as práticas homossexuais no Novo Mundo quando da chegada dos conquistadores europeus, dispomos basicamente de três fontes: Esculturas e cerâmicas representando cenas homoeróticas; Mitos conservados na memória oral dos nativos e registrados nos manuscritos nos tradicionais; Relatos dos primeiros cronistas que entraram em contato com os ameríndios(8).

Conforme relata Gonzalo Fernandez de Ovideo, em sua História General y Natural de las Indias, (1535), o gosto pelo vício nefando se espalhava não só por toda a área circum-caribe, mas também ao longo da Tierra Firme, atual costa da Venezuela e Colômbia, “donde muchos destos indios y indias eram sodomitas”. Observou escandalizado que “en aquel diabólico e nefando acto de Sodoma, hechos de oro de relieve. Yo vi uno destos joyeles del diablo que pesaba veinte pesos de oro, hueco, vaicado y bien labrado, que se hobo en el Puerto de Santa Marta en la costa de Tierra Firme, año de 1514... Asi que ved si quien tales joyas se prescia y compone su persona, si usará tal de maldad en tierra donde tales arreos traen, o si se debe tener por cosa usada e ordinaria e común a ellos.”(9)

Também Francisco Lopez de Gomara (1552) refere-se à presença de ídolos homossexuais entre os nativos mexicanos de Sant Anton: “Hallaron entre unos arboles un idolillo de oro y muchos de barro, dos hombres cabalgando uno sobre otro a fuer de Sodoma”.(10)

Por ocasião da descoberta da Península de Yucatan, encontraram os espanhóis outra comprovação escultórica de que os Maias prestavam culto ao amor unissexual: “Tenian muchos idolos de barro, unos como con caras de demonios y otros como de mujeres y otros de malas figuras, de manera que al parecer, estaban haciendo sodomias los unos indios com los otros.”(11)

Também na América do Sul, na região dos Andes, foram encontrados provas arqueológicas confirmando a prática do homoerotismo antes da chegada dos europeus. Há notícia que os espanhóis teriam igualmente no Peru encontrado e derretido esculturas em ouro representando cópula anal entre dois homens.(12) Preservaram-se contudo até nossos dias diversas peças de cerâmica, reservatórios de água ou moringas, onde exímios artistas pré-incaicos esculpiram na argila, cenas explícitas de homossexualismo. Na célebre coleção de cerâmica erótica Mochica coletada pela Família Larco, com data anterior a 1000 A.D., 3% das peças retratam realisticamente cenas de penetração per annum.(13)

Além dos ídolos mexicanos e das cerâmicas peruanas, outra importante fonte pré-colombiana para se conhecer a prática da homossexualidade no Novo Mundo é a coleção dos célebres Códices Maias - obras El Chilan Balam , El Popol Buj ( Livro del Consejo) e as Profecias Maias - obras pictográfica-hieroglíficas que tratam da história mitológica e costumes desta civilização. Através destes manuscritos, notadamente do Códice Vaticano n 3738, constata-se que no panteão asteca, ocupava lugar proeminente a deusa Xochipilli, divindade hermafrodita, protetora do amor e da sexualidade não procriativa, a qual, quando representada como homem, tornava-se o deus Xochipilli, padroeiro da homossexualidade masculina, controlador das doenças sexualmente transmissíveis(14). Segundo estes Códices, os Maias dividiam a história mitológica do mundo em diferentes períodos, sendo a Quarta Idade, a que precede o período anterior à chegada dos Europeus, também chamada de Idade Negra ou Idade das Flores, e tinha como patrona Xochiquetzal, símbolo do sexo e da sensualidade. “Esta es la edad em que los vícios, la molicie, el abandono de las costumbres austeras se instalan entre los hombres. Es la edad en que se olvidam las virtudes viriles de los guerreros y de los magistrados, y se ensalza la vida blanda, facil y pervertida. Es sublimación de la Danza de las Flores, de las grinaldas y del afeminamiento. Es el imperio de los mostradores del dorso, segun el Codice del Chilan Balam”.(15)

São contudo os relatos dos primeiros cronistas contemporâneos às conquistas do Novo Mundo, a fonte principal comprobatória da existência, grande extensão e variedade das práticas homossexuais na América Latina.

Já Fernan Cortez, na sua Primeira Carta Relación, enviada ao Imperador Carlos V em 1519, dizia:

“Hemos informados de cierto que todos ( los indios) de Vera Cruz son sodomitas y usan aquel abominale pecado,”(16) acrescentando Lopez de Gomarra que os nativos do Rio Panuco e adjacências eram “grandisimos putos”(17), usando o mesmo termo corrente desde a Idade Média em toda Península Ibérica, injustamente associando os homossexuais às prostitutas. Tarefa extremamente difícil é avaliar o grau de objetividade ou subjetividade destas afirmações pois nalguns casos, parece que os cronistas tendiam a exagerar os hábitos pecaminosos dos selvagens exatamente com o escopo de justificar a conquista, redução ou genocídio dos mesmos. Gomarra e outros cronistas associam a sodomia à impiedade: “Como no conocen el verdadero Dios y Señor, están en grandisimos pecados de idolatria, sacrifícios de hombres vivos, comida de carne humana, habla con el diablo, sodomias, etc”(18)

Quanto aos astecas, há clara contradição entre os primeiros observados, Diaz del Castilho apontando-os como grandes amantes do homoerotismo, enquanto o franciscano Frei Benardino de Sahagum exime-os desta abominação, ambos concordam, no entretanto, quanto à afeminação e travestismo como elementos estruturais da prática homossexual masculina: “Eran todos los démas dellos sométicos, en especial los que vivian en las costas y tierra caliente, en tanta manera que andaban vestidos en hábito de mujeres muchachos a ganar en aquel diabolico y abominable vicio.”(19) O citado missionário franciscano assim descreve os costumes dos nativos na sua História General de las cosas de la Nueva España:

“El somético paciente es abominable, nefando y detestable, digno de que hagan burla y se rian las gentes, y el hedor y fealdad de su pecado nefando no se puede sufrir, por el asco que o em el hablar, por todo se muestra mujeril o afeminado, en el andar o en el hablar, por todo lo cual merece ser quemado.”(20) Também Fray Bartomé da las Casas defende os nativos que missionou de serem muito afeitos às nefandices, ressaltando os especialistas nas civilizações maias e astecas a contradição notada entre a mitologia extremamente dionisíaca, valorativa inclusive da homossexualidade, ao lado de uma prática moral bastante repressiva, do tipo apolíneo, prevendo inclusive a pena de morte para certos casos de homossexualismo.(21)

“Aceptada o rechazada, honrada o severamente castigada, según la nación que se ejerció, (la homosexualidad) estava presente del Estrecho de Bering al de Magallanes...”concluiu com maestria quem primeiro estudou “las anormalidades sexuales de los aborigenes americanos.”(22) Inúmeros são os relatos de cronistas, viajantes e missionários descrevendo a presença de índios homossexuais e travestis entre as tribos e nações da atual América do Norte, onde famosos berdaches chegaram a ser retratados em pitorescas gravuras do século XVII.(23) Praticada pelos maias, astecas e caribes, a homossexualidade também teve muitos adeptos em diferentes civilizações dos antigos impérios andinos, da Colômbia ao Chile, incluindo os Chavin, Tiahunaco, Nazca, Chimu, notadamente os Incas e Chibchas. Em sua Crônica del Peru, Cieza de Leon observou que “por los tener el demonio más presos en las cadenas de su perdición, en los oraculos y adoratórios donde se hallaba el ídolo y daba las respuestas, hacía entender que convenia para el servicio suyo, que alguns mozos desde su niñez estuviesen en los templos para que a su tiempo, cuando se hiciesen los sacrificios y fiestas solenes, los señores y otros principales, usasen com ellos el maldito pecado de la sodomia. Segun el padre Domingo de Santo Tomás, generalmente entre los serranos y Yungas, en cada tiemplo o adoratorio principal, tienen um hombre o dós o más, segun el ídolo, los cuales andan vestido como mujeres y dias principales, su ayuntamiento carnal torpe, especialmente los señores principales. Ellos hacian entender que tal vicio era especie de santidad y religion”(24).

A associação entre homossexualismo e xamanismo e outras manifestações religiosas é tema fartamente documentado em incontáveis culturas, em todos continentes e ao longo de toda história humana.(25) Também entre os aborígenes do Brasil e das partes mais meridionais da América do Sul abundam evidências de que os amores homossexuais faziam parte das alternativas eróticas socialmente aceitáveis antes da chegada dos conquistadores portugueses. Entre os Tupinambá, que ocupavam a maior parte da costa brasileira, os índios gays eram chamados de tibira, e as lésbicas de çacoaimbeguira. Eis como são descritos no Tratado Descritivo do Brasil em 1587:

“Não contentes em andarem tão encarniçados na luxúria naturalmente cometida, são muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não tem por afronta. E o que se serve de macho se tem por valente e contam esta bestialidade por proeza. E nas suas aldeias pelo sertão há alguns que tem tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas.”(26)

Eis como outro cronista, Gandavo, já em 1576 descrevia a conduta das mulheres-machos:

“Algumas índias há que não conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos e vão à guerra com seus arcos e flechas e à caça, preservando sempre na companhia dos homens. E cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que é casada. E assim se comunicam e conversam como marido e mulher.”(27)

Provavelmente foram estas índias ultra masculinizadas, as çacoaimbeguira que serem vistas lutando contra os espanhóis no Rio Marañon, foram confundidas com as legendárias Amazonas, mito que propagou-se por todo o Continente Americano, muito embora carecendo de qualquer evidência confiável quanto à sua veracidade.(28)

Entre os nativos Guaicuru, pertencentes à grande nação Guarani , residentes nas margens do Rio Paraguai, ainda nos finais do século XVIII, eram encontrados índios homossexuais que além de travestirem-se, eram totalmente identificados com o estilo de vida do sexo oposto:

“Entre os Guaicurus e Xamicos, há alguns homens a que estimam e são estimados, a que se chamam cudinhos, os quais lhes servem como mulheres, principalmente em suas longas digressões. Estes cudinhos ou nefandos demônios, vestem-se e se enfeitam como mulheres, falam como elas, fazem só os mesmos trabalhos que elas fazem, trazem jalatas, urinam agaxados, têm marido que zelam muito e tem constantemente nos braços, prezam muito que os homens os namorem e uma vez cada mês, afetam o ridículo fingimento de se suporem menstruados, não comendo mulheres naquela crise, nem peixe nem carne, mas sim de algum fruto e palmito, indo todos os dias, como elas praticam, ao rio, com uma cuia para se lavarem.”(29)

À guisa de conclusão desta primeira parte, baseando-me nos principais estudos sobre a homossexualidade na América Latina, assim como em monografias antropológicas e históricas consagradas à diferentes culturas desta região, enumero a seguir a lista das etnias índigenas, do passado e do presente, sobre as quais há evidência arqueológica, histórica, etnográfica ou linguística, comprobatória da prática do homossexualismo.(30)

- México: Albardaos, Cipacingo, Itza, Jaguaces, Panuco, Sinaloa, Sonora, Tabasco, Tahus,Tlasca, Yucatecas, Maias e Astecas.

- Panamá: Dairem, Panamá

- Colômbia: Bogotá, Cayos, Chinatos, Chitarero, Guaira, Gauticos, Laches, Lile, Kagaba, Kogi, Mosca, Matilones, Urabaes, Zamba.

- Peru: Camana, Cañares, Carauli, Chibchas, Chinchas, Chincamas, Conchuco, Guanuco, Huayllas, Manta, Peru, Picta, Quellaca, Tarama, Tumebamba e os nativos de Puerto Viejo, Isla da Plata, Isla da Puna, Sta Helena, San Miguel, Serranos.

- Venezuela: Acchaguas, Bobure, Capechos, Carabina, Caribes, Chiricoa, Ciparicote, Coquibacoa.

- Bolívia: Chiguano,Wachipaeri

- Chile: Araucanos, Mapuche, Patatões

- Brasil: Bororó, Tupinambá, Guatós, Banaré, Wai-Wai, Xavante, Trumai, Tubira, Guaicuru, kaingaig, Nambiquara, Tenetehara, Yanomani, Mehinaku, Camaiurá, Cubeo, Guaiaquil.

II. A repressão aos sodomitas na América Latina colonial


“Raça sobre a qual pesa uma maldição e deve viver na mentira e no perjúrio, visto que sabe ser tido punível e vergonhoso, por inconfessável, seu desejo, o que faz para toda a criatura a maior doçura.”
( M. Proust, 1921)


Apesar da sodomia ser considerada pela Cristandade como “o mais torpe, sujo e desonesto pecado”, punida como crime hediondo equivalente ao regicídio e à traição nacional, merecedores os homossexuais da pena de morte na fogueira, não obstante tamanho tabu e discriminação, à época das grandes descobertas, floresceu na Península Ibérica intrépida e heroíca subcultura gay(31) nalgumas partes mais visível e ousada do que a existente em países europeus fora da esfera inquisitorial.(32)

Malgrados anátemas dos missionários e primeiros cronistas contra os índios praticantes do mau pecado, a despeito da perseguição desencadeada pelos conquistadores e autoridades contra tal crime - lembremo-nos do cruel genocídio praticado por Vasco Balboa, em 1513, o qual, no istmo do Panamá, encontrado numeroso séquito de nativos homossexuais, prendeu quarenta deles que foram devorados por cães ferozes, conforme narra Pietro Martire e retrata dramática gravura da época.(33)

Apesar da violenta homofobia capitaneada pela Inquisição, o certo é que desde os primórdios da colonização, sodomitas europeus encontraram no Novo Mundo espaço privilegiado para a prática do homoerotismo. A extensão e isolamento dos novos territórios, a nudez e maior liberdade sexual dos nativos e escravos, a frouxidão moral dos muitos desclassificados sociais que vieram arriscar a sorte nas Américas, ou para cá foram degredados, são fatores que facilitaram a propagação da homossexualidade nas novas conquistas. Acrescenta-se ainda outro elemento facilitador da homossexualização notadamente da América Portuguesa: 18% dos sodomitas condenados ao degredo pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa foram enviados para o Brasil,(34) a maior parte deles reincidindo no vício italiano. Salvo erro, o primeiro sodomita público e notório a pisar nas Américas de que temos notícias foi o jovem português Estevão Redondo, criado do Governador de Lisboa, D. Manoel Telles, que arribou em Olinda, no nordeste brasileiro, em fevereiro de 1549, “degredado para sempre.”(35)

Em 1558 é a vez do cirurgião Felipe Correia, inveterado fanchono com nítida tendência cross-gender(36) ser degredado para o Brasil: “tinha fama de mulherigo por suas falas e jeitos, bufarão e paciente”.(37)

Estabelecida em 1536, a Inquisição Portuguesa nunca conseguiu instalar um tribunal autônomo em terras brasílicas, diferentemente do que ocorreu com o Santo Ofício de Índias, no litoral colombiano. Infelizmente ainda não foi realizado um inventário de todos os sodomitas latino-americanos presos e processados por estes tribunais da Santa Inquisição. Temos notícia que já em 1548 foram registrados sete casos de sodomia na Guatemala, entre estes, o diácono Juan Altamiro, e seu cúmplice, Frei José de Barrera, além de um índio, Juan Martin, que ao ser encaminhado para a fogueira foi salvo devido a um distúrbio provocado por quatro clérigos e outros civis. Levantamentos parciais informam sobre a prisão de 19 sométigos no México em 1658: nada consta nas principais obras sobre a atuação inquisitorial no Peru e Chile no tocante ao abominável pecado de sodomia.(38) É para o Brasil que conseguimos localizar o maior número de registros documentais permitindo reconstituir com abundância de detalhes, as principais características da vivência homossexual dos colonos a partir dos finais do século XVI.

Entre 1591-1620, de um total de 283 culpas confessadas nas duas Visitações que o Santo Ofício (da fez a diferentes Capitanias do Nordeste brasileiro, há registro de 44 casos de sodomia (15,5%), sendo, depois da blasfêmia, o desvio mais frequentemente praticado pelos colonizadores. Dos denunciados, 61% eram brancos, 24% mestiços de variegados fenótipos, 9% negros e 6% índios, predominando as relações sodomíticas entre parceiros de diferentes cores, os quais ocupavam toda a gama de profissões: de Governador Geral do Brasil, como Diogo Botelho, a sacerdotes, senhores de engenho, funcionários públicos, militares, estudantes, feitores, criados, escravos, etc.(39)

Tais relações entre homossexuais de cores-classes diferentes muitas vezes antagônicas, nem sempre refletem a mesma lógica da dominação senhorial heterossexista, pois há vários exemplos de índios e negros que desempenharam o papel ativo ou quer na iniciativa da sedução, quer na própria relação copulativa, conforme demonstrei em meu trabalho “O Sexo Cativo: Alternativas eróticas dos africanos e seus descendentes no Brasil Escravista.”(40)

Após beneditino levantamento nos mais de quatro mil denúncias, e 400 processos de sodomia arquivados na Torre do Lombo de Lisboa, localizamos até o presente 283 denúncias de brasileiros ou portugueses, residentes no Brasil, infamados de praticarem o pecado de Sodoma. Destes, 32 foram processados, sendo 11 condenados a remar nas galés del Rei, alguns por cinco anos, outros “galés perpétuas”; 6 foram degredados para áreas remotas da Colônia ou para África. Embora nenhum sodomita destes presos pelo Santo Ofício tenha sido condenado à morte na fogueira, há registro da execução dois homossexuais no Brasil colonial: em 1613, em São Luís do Maranhão, por ordem dos invasores franceses, instigados pelos missionários capuchinhos, um índio Tupinambá, publicamente infamado e reconhecido como tibira, foi amarrado na boca de um canhão sendo seu corpo estraçalhado com o estourar do morteiro, “para purificar a terra de suas maldades”(41). Em 1678, um segundo mártir homossexual é executado na Capitania de Sergipe del Rei: um jovem negro, escravo, “foi morto de açoites por ter cometido o pecado de sodomia”.(42)

Quanto às lésbicas, como em 1646 o Santo Ofício Português deliberou excluir a sodomia foeminarum da lista dos crimes pertencentes à sua jurisdição, foi sobretudo nos finais do século XVI que as homossexuais femininas foram vítimas da sanha inquisitorial, mesmo assim, menos reprimidas que os homoeróticos masculinos. Das 29 denúncias de lesbianismo registradas no Nordeste brasileiro, entre 1591-1593, 5 receberam penas pecuniárias e espirituais, 3 foram degredadas e 2 condenadas a açoites públicos.(43)

Conforme já referimos, “amor que não ousava dizer o nome” teve seus adeptos em todas classes, raças e etnias do Brasil Colonial, sendo praticado tanto nas mansões senhoriais, como nos casebres de escravos e livres pobres; nas casernas, igrejas e mosteiros masculinos e femininos; na zona rural e urbana, incluindo tanto interações esporádicas e fortuitas, com diferentes parceiros, quanto relações estáveis, algumas por décadas seguidas. Em meu estudo “Desventuras de um sodomita português no Brasil Seiscentista” reconstruo a vivência homossexual de um violeiro-mercador de fumo, Luiz Delgado e de seus numerosos amantes, primeiro em Évora, no Reino, depois degredado para o Brasil, vivendo ora no Rio de Janeiro, ora na Bahia, onde concluo que malgrado a existência de legislação draconiana tanto civil quanto canônica, contra o crime de sodomia, houve espaço na América Colonial para o surgimento de uma incipiente subcultura gay, vezes, exibida e frenética,(44) comportando inclusive o exibicionismo desafiador de travestis. O primeiro homossexual travesti que temos notícias no Brasil foi um negro natural do Congo, Francisco Manicongo, escravo de um sapateiro, residente em Salvador, denunciado na Visitação de 1591: “recusava-se trazer vestido de homem que lhe dava seu senhor, [conservando] o costume dos negros gentios de Angola e Congo, onde os negros somitigos que o pecado nefando servem de mulheres paciente, são chamados de quimbanda, os quais trazem um pano cingido com as pontas por diante que lhes fica uma abertura diante...”(45). Também em Cuba há informação de práticas homófilas entre os escravos nos engenhos de cana de açúcar.(46) Também índios já batizados, vivendo nos arredores dos primeiros núcleos coloniais do Brasil, são apontados como sodomitas, assumindo alguns ofícios e posturas geralmente atribuídas ao sexo frágil, outras acusados de “viverem como marido e mulher, como se amancebados fossem”.(47)

Tudo leva a crer que também nos demais países latino-americanos, durante o período colonial, existiram não apenas cripto-sodomitas amorfos e isolados, mas um contingente não desprezível de sométicos que apesar de rotulados de maricas, eram suficientemente machos para exteriorizar suas preferências invertidas através de gestos, roupas e adereços próprios de um sub-cultura sincrética e sui-generis. É para o México, além do Brasil, que dispomos de documentação comprovante de tal hipótese: no ano de 1658 foram denunciados 123 sodomitas vivendo na cidade do México e seus arredores, dos quais 19 foram presos e 14 queimados. Um destes escapou da fogueira por ser menor de 15 anos, recebendo contudo como castigo, 200 açoites e 6 anos de trabalhos forçados.(48)

Segundo contava a Alcaide do Crime da Nova Espanha, D. Sotomayor, “o pecado nefando tem mui contaminado estas províncias”, diagnóstico correto, pois dentre as mariquitas presas, constava alguns que por quarenta anos seguidos praticavam somitigarias, “se regalaban uns a otros”, chegando a simular prenhez. Entre os denunciados predominavam os índios, mestiços, espanhóis, mulatos e até mouriscos e portugueses.(49) Dentre estes destacavam-se os domésticos ou escravos, seguidos dos estudantes e pequenos comerciantes. Como ocorria na Península Ibérica, também os sométicos de Nova Espanha assumiam traços e características do sexo frágil, trazendo vestidos de mulheres e tratando-se com nomes femininos: entre os sentenciados havia um mulato apelidado Cotita; os mestiços atendiam por La Zangarriana, La Estampa, La Conchita; um alfaiate espanhol era La Luma, outro, Las Rosas; o índio Martin tornou-se La Martina de los Cielos e um negro atendia por La Morossa.(50) Eis como se comportava um destes sométicos mexicanos:

“El dicho Juan de la Vega hera mulato afeminado... le llamaban Cotita (que es lo mesmo que mariquita) y el dicho mulato se quebrava de cintura y traia atado en la frente de hordinario un pañito llamado melindre que usan las mujeres y en las aberturas de las mangas de um jubón blanco que traia puesto, traya muchas cintas pendientes y se sentava en el suelonen un estrado como mujer y hacia tortilhas y labada y guisaba.”(51)

Consta que após este violento progrom de 1658, novamente em 1673 mais sete mulatos, negros e mestiços de Mixcoac foram queimados, aí também ficamos em dúvida, se processados com todas as formalidades próprias do Santo Ofício, ou por iniciativa das autoridades civis, considerando ser a sodomia crime de foro misto.(52) Além destes homossexuais mexicanos executados na segunda metade do século XVII, encontrei nos arquivos portugueses referência a mais quatro sodomitas vivendo na América Espanhola, até desconhecidos pela historiografia local. O primeiro episódio remete-nos ao Vice-Reino do Peru em 1598: Frei João de Valencuela era natural de Xerex (Sevilha), frade carmelitano, doutor em Teologia e missionário do Peru, “mestre e grande pregador”. Ao retornar dos Andes, em Badajoz (Estremadura), foi preso pelos Familiares do Santo Ofício português, acusado de dormir de portas trancadas com seu criado, o moço Joanilho,13 anos. No desenrolar da investigação, foi acusado de “ser tão puto quantos putos havia na Itália”, terra que no imaginário ibérico da época representava a própria reencarnação de Sodoma e Gomorra. Denunciaram mais: que após missionar no Peru e na Nova Espanha, na caravela em que retornou a Europa, por pouco não foi jogado no mar pelos marinheiros escandalizados, com medo de que Deus Nosso Senhor castigasse-os com desgraças e naufrágios, em castigo pela devassidão do frade somítigo. Apesar de alegar inocência, dos Carmelitas de Castilha, obrigado ao jejum de pão e água todas as quartas e sextas feiras.(53)

Para o século XVII - representa o período de maior homofobia por parte da Inquisição - dispomos de mais de dois processos. Bartolomeu Martins de Moura, 40 anos, ouvires de ouro, parte de cristão-novo, preso em 1655, foi julgado não só por professar secretamente a Lei de Moisés, como por práticas sodomíticas. No Santo Ofício declarou ter vivido dois anos na cidade do México e em Vera Cruz, sendo na ocasião estudante talvez, colega de alguns daqueles 7 estudantes sentenciados naquela província em 1658.(54) Este último caso relativo a um sodomita hispano-americano preso pela Inquisição de Lisboa é particularmente interessante, por reunir algumas especifidades. O réu é natural do México: Pedro Medina, 30 anos, soldado. Ostentava imagem masculina diferentemente de muitos outros sométicos afeminados:

“tinha rosto trigueiro, cabelo preto com gadelhas sobre os ombros, barba preta, estatura mediana. Vestia calções amarelos com riscas verdes, gibão riscado de negro, tudo coisa da Índia.”(55)

Seu pai era português, mudando para o México onde servia de escudeiro a uma fidalga. Em Nova Espanha Pedro Medina nasceu, foi crismado na Sé do México, sendo oficiante D. Francisco Manso. Nada informam os documentos sobre sua vida erótica na terra natal. Feito soldado na armada castelhana, viajou por longínquos reinos do Oriente: Filipinas, Jacatará na Índia, China, caindo cativo dos mouros. Sofrendo violentos espancamentos de seu dono islamita, então na Pérsia, arrenegou Jesus Cristo, vivendo na Lei de Maomé, até que foi resgatado pelos calvinistas holandeses, permanecendo preso num navio, na costa do Ceilão, por meses seguidos. Novamente livre, após tantas peripécias, ao chegar em Lisboa, é denunciado ao Santo Ofício por um jovem de 20 anos, Manoel Rois, igualmente ex-prisioneiro dos batavos. Segundo este moço, nos 6 meses em que sob o jugo dos calvinistas, mantiveram mais de 120 cópulas sodomíticas, “metendo seu membro viril e derramado semente no vaso traseiro dele, confessante, e com consentimento dele, cometeram mais 80 vezes o nefando pecado de sodomia, sendo Pedro Medina o paciente.”

O reú mexicano, por sua vez , ao ser preso, acrescentou que quando na Índia, também cometera o pecado de sodomia com um moço holandês, Cornélio, sendo agente e paciente, "uma só vez, e com João Bautista, veneziano de 18 anos, prestaram culto à Vênus Prepóstera mais três ocasiões. Foi condenado à aviltante pena dos açoites pelas públicas de Lisboa e condenado a 5 anos de gáles" - um local tentador para quem estava tão acostumado a não resistir às pulsões homoeróticas embalado pelas ondas do mar...

III. Gays e lésbicas latino americanos hoje


Com o fim das Inquisições Portuguesa e Espanhola, também na América Latina são extintos os Tribunais do Santo Ofício, em 1820 no Peru e México, em 1821 em Cartagena e no Brasil.(56) Extingue-se o Monstrum Horribilem mas infelizmente, como mentalidades não se mudam por decreto, até hoje persiste na América Latina o espectro inquisitorial, não apenas na ideologia moralista e intolerante, como na própria composição das elites locais, cujas tradicionais descendem diretamente dos terríveis Familiares e Comissários do Santo Ofício.(57)

Diversos países latino-americanos, entre eles o Brasil, com a Independência, por inspiração modernizante do Código Napoleônico, descriminalizaram a sodomia, deixando de constar nos novos Códigos Penais, muito embora persista entre nós, forte preconceito e discriminação contra os praticantes desta variante amorosa. Sob alegação de atentado ao pudor ou prática da prostituição, incontável número de pederastas foram chantageados, encarcerados e torturados pelos agentes da nova ordem policial. Apesar de muitos médicos e cientistas trabalharem por retirar os invertidos sexuais das delegacias e prisões, para tentar sua cura em seus ambulatórios e clínicas, na qualidade de cães de guarda da moral oficial, estes doutores, no afã de regenerar tais desvios, adotaram às vezes modernas formas de violência, torturando as indefesas mariquitas com terapias doloridíssimas que chegaram a incluir choques elétricos, doses cavalares de hormônios e perigosos produtos químicos e até o transplante de testículos de macacos.(58)

Suicídio, clandestinidade total, baixa estima, marginalidade, assassinatos, passaram a ser o pão de cada dia de milhares de uranistas latino-americanos, rechaçados dentro de suas próprias famílias, humilhados nas ruas, barrados no acesso ao trabalho. Pesquisas levadas a cabo no Brasil, país considerado um dos menos homofóbicos da América Latina, revelam que dentre todas as minorias sociais, gays e lésbicas são os mais odiados, ódio manifesto num continuum que inclui o insulto verbal, o tratamento depreciativo nos meios de comunicação, a violência física nas ruas, prisão arbitrária, os assassinatos(59). No México, até hoje gays são apelidados de “cuarenta y uno” em alusão aos 41 maricones presos numa só noite no ano de 1901, os quais foram submetidos a humilhantes castigos, obrigados a varrer as ruas da capital e lavar as latrinas públicas.(60)

Também na Argentina, nos anos 30, as festas reunindo homossexuais “terminaban muchas veces sob la irrupción imprevista de la policia, sobre todo en la época en que era mas urgente la limpieza periódica de los vidrios de la jefatura, menester para el los vigilantes elegian simpre a los maricas, obligados entonces a entregarsecon trapo, jabón y agua la feminina pero nada agradable tarea.”(61)

Nos últimos anos, a imprensa vem noticiando repetidamente o homicídio de centenas de gays, lésbicas no México, Colômbia, Equador(62) e sobretudo no Brasil, onde há documentação comprovando que nos últimos 15 anos, mais de 1200 homossexuais foram violentamente assassinados, vítimas de crimes homofóbicos, perfazendo uma média de um assassinato de homossexual a cada cinco dias.(63)

Para reagir contra este verdadeiro genocídio e contra as não menos cruéis discriminações de que são vítimas mais de 10% dos latino-americanos homófilos(64), em sintonia com o reconhecimento internacional de que a homossexualidade não é doença nem desvio, mas uma orientação sexual tão legitima, normal e saudável quanto a heterossexualidade ou bissexualidade,(65) alguns anos após a famosa rebelião gay ocorrida em Nova York em 1969, considerada o marco inicial e símbolo do moderno movimento homossexual internacional, também na América Latina gays e lésbicas vêm se organizando para ter os mesmos direitos humanos dos demais cidadãos.

Foi na Argentina onde se organizou o primeiro grupo de defesa dos direitos de gays e lésbicas: em 1971 é fundada a Frente de Liberación Homosexual(66) que passou a editar o primeiro boletim homossexual do Continente do Sul, o Somos. Logo no ano seguinte são fundados no México duas entidades congêneres: Sex-Pol e Frente de Liberación Homosexual.(67) Em 1978 é a vez do Brasil entrar na luta pela cidadania dos homossexuais: nosso primeiro grupo gay chamou-se Somos, fundado em São Paulo e logo ramificado para outros estados da federação.

Em 1979 uma facção deste grupo organiza o LF, Lésbico-Feminista,(68) que passou a editar o boletim Chanacomchana. Quando da realização do I Encontro Brasileiro de Homossexuais, em 1980, já existiam mais de vinte grupos gays e lésbicos de norte a sul do país: hoje ultrapassam meia centena.

Peru também teve seu Movimento Homosexual de Lima (MHOL) fundado ainda nos inícios dos anos 80, possuindo sede no centro da cidade onde presta assistência psicológica e jurídica aos homossexuais. Como os demais grupos aqui citados, com o surgimento da epidemia da AIDS, tais entidades passaram a dedicar-se também à prevenção do HIV, contribuindo com os governos locais e com outras não-Governamentais (ONGs/AIDS) na prevenção desta síndrome.(69)

Colômbia possuiu nos inícios da década de 80 a maior e melhor produzida revista gay da América do Sul, Ventana Gay, além do boletim De Ambiente, publicado então pelo Colectivo del Orgullo Gay, sediado em Bogotá. Segundo Spartacus Gay Guide, a principal publicação internacional do gênero, existiram nos inícios da década atual mais duas publicações homossexuais em Bogotá: Lambda Gay e Conotaciones. Segundo esta mesma fonte, em 1987, mais de 50 homossexuais foram assassinados neste homícidios atribuídos a esquadrões da morte.(70)

Venezuela também teve sua organização homossexual, hoje inativa: Grupo Entendido, o qual, em 1983, denunciou junto à Anistia Internacional uma série de maus tratos praticados pelas forças policiais contra os frequentadores dos espaços gays locais.(71)

México, devido à vizinhança com os Estados Unidos, onde o movimento homossexual é extremamente forte e organizado, e graças ao contacto com os chicanos homófilos, é país hispano-americano onde os gays e lésbicas estão mais organizados: já chegaram a realizar manifestações de rua com mais de quatro mil maricones & tortilleras. Além de dezenas de grupos homossexuais, destacando-se o Grupo Orgullo Homossexual de Liberación, Y Que!, Collectivo Sol, com atuação na Capital e em Guadalajara e Tijuana, dispõem os atuais veneradores da deusa Xochiquetzal de alguns serviços de apoio, como o Centro Comunitário Gay, Grupo para Alcoótras e Neuróticos Homossexuais, além de um templo filial da Metropolitan Community Church, a primeira igreja homossexual do mundo.(72)

Há países latino-americanos onde ainda persistem leis que penalizam os homossexuais: Nicarágua, Cuba e Equador(73), inviabilizando o surgimento de movimento organizado em defesa da cidadania dos gays e lésbicas. No Uruguai, Bolívia e Paraguai, e nos demais países da América Central e Caribe, os homossexuais ainda não se organizaram para defender seus direitos humanos. O Chile oferece motivo para reflexão: logo após os anos lúgubres da ditadura militar, surgiram alguns grupos bastante dinâmicos, como Movimento Homosexual y Lesbico de Chile, o Colectivo Lesbico-Feminista. Em 1922, realizou-se em Santiago do Chile e 1º Encontro Sul-Americano de Grupos Gays e Lésbicos. Um detalhe auspicioso: este encontro contou com o apoio tático da Comunidade Quaker, um gesto histórico e pioneiro de respeito e solidariedade humana partindo de uma entidade cristã latino-americano.

À guisa de conclusão


O estudo da etno-história da homossexualidade na América Latina desde os tempos pré-colombianos até à atualidade revela-nos de um lado o preconceito irracional e cruel contra uma minoria social, os gays, lésbicas e travestis - cuja identidade existencial e expressão afetivo-sexual foram secularmente considerados o mais grave pecado e crime mais hediondo, ambos merecedores da morte.

Ao resgatar esta micro-história tão marcada pela intolerância e violência, três foram nossos objetivos: primeiro, quebrar o silêncio e desmistificar o tabu que ainda hoje persistem vis-a-vis a homossexualidade, tornando-a tema sério merecedor de mais estudos e pesquisas pelas diferentes áreas do conhecimento científico; segundo, ao abordar a evolução da homossexualidade masculina e feminina neste meio milênio de história latino-americana, tivemos como espaço demonstrar a universalidade temporal e espacial desta manifestação humana, avançando no conhecimento empírico de certas áreas culturais até então pouco divulgadas nos meios acadêmicos: terceiro, tivemos como preocupação demonstrar que a homofobia, assim como o racismo e o machismo, são frutos podres de variegadas matrizes culturais que se exacerbaram em nosso triste passado escravista, e como tal, emergem como facetas de uma ideologia perversa e desumana, que só poderá ser superada através das luzes da ciência e pelo bom senso dos códigos internacionais de direitos humanos.

Apesar do quadro ainda sombrio e das frequentes violações dos direitos de cidadania dos homossexuais latino-americanos, tudo nos leva a crer que dias melhores começam a brilhar para tal minoria social: até os inícios do século passado, quando da extinção do Santo Ofício da Inquisição, a homossexualidade era crime condenável à morte em todo Continente Latino-Americano. Hoje, a América Latina caminha em sentido inverso: à imitação do que ocorre a décadas nos mais civilizados países do primeiro mundo, no Brasil, em 73 Municípios e em três estados da Federação, as constituições locais proíbem expressamente qualquer discriminação baseada na orientação sexual. Ontem, era crime ser homossexual. Hoje o crime é discriminar o homossexual.


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Notas

(1) SILVER, G.A. “The Homosexual: Challenge to Science”, The Nation, 1957, 84: 451-454.

(2) MALINOWSKI, B. Sexo e Repressão na Sociedade Selvagem. Petrópolis: Vozes Editora,1973.

(3) O termo gay, provém do catalão-provençal gai, sendo usado desde os séculos XIII-XIV como sinônimo de homossexual. Cf. BOSWELL, J. Christianity Social Tolerance and Homosexuality. Gay People in Western Europe from the Beginning of the christian Era to the XIVth Century , Chicago: Chicago University Press, 1980:43.

(4) KINSLEY, A.et allii. Sexual Behavior in the HumanMale. Philadelphia:W.B.Saunders, 1948.

(5) BOSWELL, J. Same-Sex Unions Premordern Europe. New York: Villard Books, 1994: xxxiii

(6) GREENBERG, David. The construction of Homosexuality. Chicago, The University Chicago Press, 1988

(7) BOSWELL, J. “Revolutions,Universals and Sexual Categories”, in Hidden from History: Reclaiming the Gay and Lesbians Past, Duberman, M. Et.allii (eds.) New American Library, 1990. Para efeito desta análise, restringimos nossa amostra apenas aos territórios hoje conhecidos como constitutivos da América Latina, tendo como limite setentrional o México, incluindo todos os países de língua latina da América Central, Caribe e América do Sul.

(8) Este é o momento de prestar homenagens ao precursor dos estudos sobre a história da homossexualidade entre os ameríndios, Antonio Raquena, que já em 1945 publicava seu pioneiro e ainda insuperado “Notícias y consideraciones sobre las anormalidades sexuales de los aborigenes americanos: Sodomia”, publicado na Acta Venezolana, Tomo I, nº1, Jul.Set.1945:3-32 (traduzido para o inglês, “Sodomy among native american peoples”, Gay Sunshine, 38/39, 1979:37-39). Apesar da postura abertamente homófobica do autor - até certo ponto compreensível na época, sete trabalho é o vademecum para o estudo deste tema, do qual lançamos mão muitas vezes ao longo destas páginas.

(9) FERNANDEZ Oviedo, G. Historia General y Natural de las Indias. L. V, Cap.III,1535, apud Cardin, Alberto. Guerreros, Chamanes y Travestis. INDÍCIOS DE Homossexalidad entre los exóticos. Barcelona, Tusquets Editores, 1984:150. Depois de Raquena, A.Cardín representa a maior síntese documental referente a esta temática.

(10) LOPEZ DE GOMARA, F Conquista de México. História General de Indias. (1551) Apud Raquena, op.cit. 1945:4

(11) LOPEZ DE GOMARA, F Conquista de México. História General de Indias. (1551) Apud Raquena, op.cit. 1945:4.

(12) LARCO HOYLO,R. Checan: Essay on Erotic Elements in Peruvian Art. Genebra, Nagel Publ.1965

(13) GUERRA,F. The Pre-ColumbianMind. London, Seminar Press, 1971:43-44.

(14) BULLOUGH, V.L. Sexual Variance in Socitety and History. Chicago, The University of Chicago Press, 1976:42; Thompson, J.E. Maya History and Religion. Norman, University of Oklahoma Press, 1970.

(15) Requena, op.cit. 1945_5

(16) CORTES,H “Cartas de Relación de la Conquista de México”, tomo I,p.32, apud Requena, op. cit.1945:8

(17) LOPEZ DE GOMARA, op.cit. 1551, tomo I Cap.XLVII. p.163

(18) LOPEZ DE GOMARA, op.cit. 1551, tomo I Cap.XLVII. p.163

(19) DIAZ DEL CASTIHO, op.cit. 1605,Cap.CCVIII, apud Cardin, 1984:153

(20) SAHAGUN,B. História general de las cosas la Nueva España. L.X, Cap.XI, apud Cardin, op. cit. 1984:153

(21) A intolerância machista e a homofobia deste franciscano não deixa se ser surpreendente, pois além da homossexualidade ser conhecida durante toda a idade Média como “vício dos clérigos”, dentre todas as Ordens Religiosas, a dos Franciscanos era exatamente a que mais devotos tinha do “amor que não ousa dizer o nome”. Boswell, op.cit. 1980; Mott, Luiz. “Pagode Português: A Subcultura gay em Portugal nos tempos da Inquisição”, Ciência eCultura, vol.40,fev.1980:120-139

MURRAY, S.O. Male Homosexuality in Central and South America. New York, Gai Saber Monograph,n 5, 1987. Esta obra, que reúne 9 artigos de diferentes especialidades sobre a homossexualidade latino-americana, inclusive um artigo de minha autoria “Homosexuality Brazil: Bibliography” é particularmente útil, pois apresente revisão crítica dos trabalhos históricos e antropológicos clássicos, além de dois léxicos sobre termos espanhóis e portugueses para referir-se aos homossexuais.

(22) Requena, op.cit. 1945:3.

(23) KATZ,J. Gay American History. New York, Avon Books, 1976. Cf.reprodução da gravura de Theodore deBry (1591) onde se vê hermafroditas empregados no transporte de pessoas (pg.431)

(24) CIEZA DE LEON,P. La Cronica del Peru. Calpe, Madrid, 1992, apud Requena, op.cit.17-18.

(25) CONNER, R.P. Blossom of Bone reclaiming the connections between homoeroticism and the Sacred. Harper San Francisco, 1993.

(26) SOUSA, Gabriel Soares. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. S.Paulo, Companhia Editora Nacional, 1971:308 334.

(27) GANDAVO, Pero Magalhães. História da Província Santa Cruz. Tratado da Terra do Brasil. (1576) S.Paulo, Editora Obelisco, 1964:56-91.

(28) MOTT, Luiz. “Amazonas: Um mito e algumas hipóteses”, in América em tempo de Conquista, Vainfas R. (Org.), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992:33-37

(29) Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo13, 1850, p.358; TomoI, 1839, pg. 32-33

(30) Esta relação de tribos indígenas sobre as quais há evidências etno-históricas sobre a prática do homoerotismo baseia-se nas seguintes bibliografias: Foster, S. W. “A Bibliography on Homosexuality among Latin-American Indians”, Cabirion, nº 12, Spring/Summer 1985:17-19:Mott. Luiz. “Homosexuality in Brazil: Bibliography”, in Male Homosexuality in

(31) TRUMBACH, R. “Sodomite subcultures, Sodomitical roles and the Gender Revolution of the XVIIth recente historiography”, Eighteehth-Century Life. Nº9, 1985: 109-121

(32) GERARD, K. Et allii.The Porshuit of Sodomy. Male homosexuality in Renaissance and Enligtenment Europe. New Yok, The Haworth Press, 1989. Carrasco,R. Inquisición y represion sexual en Valencia, Laertes, Barcelona,1985.

(33) “Balboa Indos nefandum sodomiae scelus committentes canibus obijcit dilaniandos.” Cf. gravura no texto

(34) MOTT, Luiz. “Justifica et Misericordia: A Inquisição Portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia”, in Inquisição: Ensaios sobre Mentalidade, Heresias e Arte, A. Novinsty et allii (orgs.) São Paulo, EDUSP/Expressão e Cultura, 1992:703-738.

(35) Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo nº352, 22-1-1547.

(36) DYNES, W. Homosexuality: A research guide. New York, Garland, 1987.

(37) Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a Inquisição de Évora, Processo nº8874, 1553

(38) MEDINA, J.T. História del Tribunal del Santo Ofício de la Inquisición en México. Santiago, Imprenta Elzeveriana, 1905. Chinchila Aguila, Ernesto. La Inquisición en Guatemala, Edicion Ministerio de Educación Publica, 1953. Delgado, Paulino Castañeda y Hernandez Aparicio, Pilar. La Inquisición de Lima (1570-1635), Madrid, Editorial Deimos, 1989. VERRIL, A.H.La Inquisición. Paris, Payot,1932. MEDINA, J.T. História del Tribunal del Santo Ofício de la Inquisición en Chile. Santiago, Imprenta Ercilla, 1890, 2 vol.

(39) MOTT, Luiz. “Escravidão e Homossexualidade”, in História e Sexualidade no Brasil, R. Vainfas (org.), S.Paulo. Editora Graal, 1986;19-40.

(40) MOTT, Luiz. O Sexo Proibido: Virgens, Gays e Escravos nas garras da Inquisição. Campinas, Editora Papirus, 1989

(41) MOTT, Luiz. “A Inquisição no Maranhão”, ( no prelo)

(42) MOTT, Luiz. A Inquisição em Sergipe. Aracaju, Fundesc,1989

(43) BELLINI, Ligia. A Coisa Obscura: Mulher, Sodomia e Inquisição no Brasil Colonial. S.Paulo, Editora Brasiliense, 1989. Mott, Luiz. O Lesbianismo no Brasil. Porto Alegre, Ed. Mercado Aberto, 1988

(44) MOTT, Luiz. “Relações raciais entre homossexuais no Brasil Colonial” Revista de Antropologia, USP, 1992, vol. 35: 169-190.

(45) MOTT,Luiz. “Escravidão e Homossexualidade”, op.cit.1986: 19-40.

(46) FRAGINALS,M El Ingenio. Habana,Ed. Nuestra Historia, 1978:384

(47) MOTT, Luiz. “Somitigos, Tibira e Quimbanda: A prática do homossexualismo entre brancos, índios e negros na Bahia e Pernambuco nos séculos XVI e XVII”, Comunicação apresentada na 33ª Reunião da SBPC, Salvador, 1981.

(48) GUIJO, Gregorio. Diário, 1648-1664. Ed. Manoel Romero deTerreos, México, 1952, 2 volumes, apud De la Santidad a la Perversion,, S.Ortega (ed), “Las Cenizas del Deseo”, de Serge Gruzinski, México, Enlace, Editorial Grijalbo, 1985:255-280.

(49) GRUNZINSKI, S.op.cit.1985:266

(50) Idem, ibidem, p.272

(51) Idem, ibidem, p.274

(52) Idem, ibidem,p.278

(53) Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Évora, Processo nº957 e nº10618.

(54) Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo nº7829, 1655.

(55) Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo nº3710, 1657.

(56) TESTAS, G.& Testas, J. A Inquisição. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1968:100, “A Inquisição na América Espanhola”

(57) BENNASSAR, B. “Aux origenes du caciquisme: Les Familiers de I’Inquisition en Andalousie au XVIIème siècle”, Cahiers duMonde Hispanique et Luso-Brasilien, nº727, 1976: 64-71.

(58) RIBEIRO, Leonídio. Homossexualismo e Endocrinologia. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1938.

(59) Grupo Gay da Bahia: Violação dos Direitos Humanos de Gays e Lésbicas no Brasil. (no prelo).

(60) DYNES, W. Enciclopeia of Homosexuality. New York, Garland, 1990:803

(61) BAO, Daniel. “Invertidos sexuales, Tortilleras and Maricas Machos: The Construction of Homosexuality in Buenos Aires, Argentina, 1900-1950”in De Cecco & Elia (orgs.), If your seduce a straight person can you make then gay? New York, The Harwoth Press, 1993:205.

(62) Bulletin of Internacional Gay and Lesbian Human Rights Comission, S. Francisco, 1993.

(63) Boletim do Grupo Gay da Bahia, nº1-28, 1980-1994.

(64) É com base no citado “Relatório Kinsey”que costuma-se calcular em 6% as pessoas exclusivamente homossexuais, que ocupam os números 5 e 6 da “Escala Kinsey”.

(65) Em 1985,o Conselho Federal de Medicina do Brasil excluiu a homossexualidade da Classificação Internacional de Saúde ratificou esta decisão, suprimindo no último CID o parágrafo 302.0 que classificava o homossexualismo como “desvio e transtorno sexual.”

(66)STUCKELMAN, Joey. Intercourse, Discourse and Identity: A study of the formation of Homosexual identitites under authoritarianism in Argentina and Brazil. Senior Thesis, Latin American Studies, Santa Cruz University, CA, 1992.

(67) LUMDSEN, Ian. in Homosexuality. Society and the State Mexico. Toronto, Canadian Gay Archives, 1991.

(68) MACAE, Edward. A construção da Igualdade. Identidade Sexual e Política no Brasil da Abertura. Campinas, Editora Unicamp, 1990; Trevisan, J.S.

(69) ARBORELA. Manoel. “Social and sexual varience in Lima”, in S.Murray, op.cit. 1987:101-1117.

(70) ARBORELA. Manoel. “Social and sexual varience in Lima”, in S.Murray, op.cit. 1987:101-1117

(71) Idem, ibidem, p.990-993

(72) Idem, ibidem, p .519.e.ss.601

(73) Idem, ibidem, p.122, 142, 601.


Sobre o autor

Luiz Mott é antropólogo, historiador e pesquisador, e um dos mais conhecidos ativistas brasileiros em favor dos direitos civis dos LGBT. Estudou em Seminário Dominicano de Juiz de Fora. Formou-se em Ciências Sociais pela USP. Possui mestrado em Etnologia em Sorbonne e doutorado em Antropologia, pela Unicamp. Atualmente é professor titular aposentado do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia, UFBA e é professor e orientador do programa de pós graduação em História da Universidade Federal da Bahia, UFBA. Assumiu sua orientação sexual em 1977. Luiz Mott é fundador do Grupo Gay da Bahia, uma das principais instituições que laboram em prol dos direitos humanos dos gays no Brasil. Conheça mais: http://www.ggb.org.br



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