terça-feira, 20 de março de 2012

Luz no gueto: uma visão mecânica e microfísica sobre a possibilidade da nascença dos preconceitos e das exclusões?

Por Marcelo Moraes Caetano (artigo originariamente publicado na revista G Magazine, edição especial de aniversário, coluna "Papo sério")

Uma das maiores necessidades do ser humano é ser aceito num grupo. Isso é natural, e não tem nada de errado. Mas essa aceitação que se busca - à qual os filósofos chamariam de “sentimento de pertença” - pode se transformar em patologia. Isso acontece quando a busca se converte numa espécie de exagerada ânsia pelo “troféu” de se pertencer ao grupo que está no poder, que tem maior influência - o “grupo dos vitoriosos”.

Esse desejo cria e alimenta a necessidade de existência de grupos abaixo daquele poder, daquela vitória. Tal tipo de “posição vitoriosa” exigirá, sempre, o aplauso. E, para o aplauso, é preciso que existam grupos de “perdedores”, cuja função é, exclusivamente, a de submissão. Eis a chave que dá partida na máquina dos preconceitos.

Aquela lógica criará, pouco a pouco, diferença de grupos e conflito entre eles, porque é preciso que se justifique a luta, para que o “melhor”, o “mais perfeito”, possa subir ao poder. Agora, seus membros terão o “prêmio” máximo: a recompensa de pertencerem ao grupo mais poderoso. O grupo dos “incluídos no poder” só existirá se houver, do outro lado, o grupo dos “excluídos do poder”.

Começamos a ver que o papel do preconceito é, antes de tudo, servir como espécie de treino, uma arena para que a segregação entre vitoriosos e perdedores nunca seja desfeita. Se o preconceito não for “treinado”, as exclusões tendem, naturalmente, a acabar.

Nós mesmos, pertencentes às minorias, aos chamados "guetos", podemos estar contribuindo com a manutenção do preconceito, inconscientemente, se nos aceitamos como vítimas, inferiores, escravos. Isso alimenta a máquina da crueldade preconceituosa, porque torna ainda mais “poderosos” os que, fantasiosamente, se acham “superiores” aos seus “escravos”. Acabamos funcionando como engrenagens...

Nada disso existe: não existem grupos melhores nem grupos piores, apenas grupos diferentes. Alimentar o desejo de que exista ruptura entre “ganhadores” e “perdedores” significa ter de criar constantes conflitos entre grupos X, Y ou Z. Quando nos dermos conta de que essa “lógica” é mera ficção, o preconceito começará a desmoronar pouco a pouco, a partir de suas raízes.

O preconceito contra o homossexual, por exemplo, é um exercício mecânico para que se criem segregações que permitam a ascensão dos “normais” (heterossexuais) ao poder cobiçado. Digo que é um “exercício” exatamente porque não encontra nenhum fundamento concreto, a não ser o “treino” para as exclusões de todo tipo - as sexuais, as financeiras, as religiosas, as raciais, as culturais, as ideológicas, as profissionais, as linguísticas.

Preconceitos se multiplicam quase infinitamente: hoje, podemos dizer que somente será visto “sem” preconceito social aquele que, no Brasil, por exemplo, seja do sexo masculino, branco, jovem, bonito, tenha muito dinheiro, seja heterossexual, esteja num cargo de chefia, seja casado, com filhos, católico, pertencente a alguma confraria secular, tenha gestos contidos, não ria em excesso. E quantas vezes os gays já não receberam propostas escondidas desse tipo de “homem normal e ideal da sociedade brasileira”?

Se olharmos para cada preconceito em si mesmo, logo começaremos a ver que ele, por si só, não tem nenhum fundamento, nem científico, nem natural, nem racional. Vamos checar um pouco mais de perto as possíveis “justificativas” para a homofobia?

Uma alegação pré-histórica que “justificaria” a luta contra a homossexualidade. Se, num tempo remoto, a terra precisava ser habitada, e a união entre pessoas do mesmo sexo representava um obstáculo à procriação, será que o ambiente em que estamos, modernamente, deve ser visto daquela maneira? Será que precisamos continuar habitando descontroladamente a terra? Enfim, qual o obstáculo “real” que a união entre pessoas do mesmo sexo representaria, hoje, à terra?

O que justifica a segregação ainda existente contra homossexuais?

Há algo, repito, que “justifica” esse e os demais preconceitos: o exercício da segregação, semelhante aos exercícios que os soldados, mesmo em tempos de paz, fazem, sempre à espera da guerra. “Vitoriosos” contra “derrotados” é uma lógica de guerra.

Voltando à questão específica do preconceito contra homossexuais, desta vez num nível mais direto de análise.

Se uma pessoa se supõe na condição de determinar que certa conduta ou orientação - amar alguém do mesmo sexo - sejam erradas, o mínimo que devemos exigir dessa pessoa será que ela própria não deseje, em nenhum nível, o que está sendo por ela recriminado. E de que forma eu posso, inequivocamente, dizer que alguém que recrimina ou discrimina um homossexual não seja, ele próprio, um homossexual? O que me permite ver, com esses olhos que a Terra há de comer, como diz o povo, se essa pessoa é ou não é homossexual?

Nada. Ela pode gritar que não é, pode até enganar a si mesma, casando-se com pessoas do sexo oposto várias vezes, mas eu continuarei não sabendo se ela é ou não é homossexual. Ela própria pode não saber. Não se trata, apenas, de hipocrisia da parte dela, porque ela pode muito bem, de fato, nunca ter sido apresentada a si mesma, e não se conhecer.

Por isso, também, a raiva, a rivalidade gratuita, a hostilidade, a violência contra grupos que ferem a sua indefinida (porém idealizada) pessoa. Elas não se conhecem ou não aceitam aquilo que conhecem, e agem de maneira hostil contra o grupo que as desmascara publicamente. Grupos que as identificam com os “perdedores”... Uma ofensa!

Outra pergunta aos que recriminam a conduta homossexual alegando “cientificidade”. Qual a base científica para se afirmar que a homossexualidade não seria uma conduta natural à espécie humana? Alegar, por exemplo, que os animais das selvas não a praticam? Ainda que não praticassem, pergunto: se devemos justificar uma conduta humana com base numa conduta animal, por que ainda estamos vestidos, por que não tiramos nossas roupas e por que, também, não deixamos de nos comunicar pela fala?... Nunca vi um animal vestido nas selvas. Nunca vi um animal falando línguas humanas.

Nada justificará uma exclusão, em tempo algum, seja ela qual for.

Desmascarar um preconceito é mais simples do que se supõe. Todos eles estarão imbuídos da “lógica” da guerra, em que a “vitória” de uns é “legitimada” pela “derrota” de outros. O preconceito é um exercício de segregação, e a segregação é alimentada pela lógica do poder, sendo a sua peça principal.

Conhecer esta máquina de ficção, sem máscaras, significa dar o primeiro passo em direção ao fim dos preconceitos.

Pode ser a luz no fim do “gueto”.



Sobre o autor

Marcelo Moraes Caetano é escritor, professor titular da Laureate International Universities, da Universidade de Freiburg e professor pesquisador do CNPq-UERJ. Membro da APPERJ, da União Brasileira de Escritores (SP), do PEN Club (RJ-Londres), da Académie des Arts-Sciences et Lettres (Paris), editor da revista de cultura ALIÁS, colunista da Revista da Cultura (SP, RS, Brasília,PE, Campinas). Pianista clássico (com primeiros lugares no Brasil e no exterior), membro da Orquestra Sinfônica de Viena, tradutor de inglês, francês, alemão, latim e grego, professor de português, grego e literatura brasileira, portuguesa e africana (bacharel pela UERJ e licenciado pela UNESA, especialista pela UFF, Mestre pela PUC-rio e Doutor por Coimbra). Possui 18 livros publicados: gramático ("Gramática para o vestibular", Editora Elite, "Gramática Reflexiva da Língua Portuguesa" (Editora Ferreira), lexicógrafo ("Instâncias do sentido o dicionário e a gramática - múltiplas interconexões semiológicas" -Editora Academia Brasileira de Filologia), crítico literário ("Literatura Brasileira", Editora Elite, "Caminhos do texto", Editora Ferreira), com diversas premiações nacionais e internacionais. Blogue: http://demarcelomoraescaetano.blogspot.com

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