Uma das maiores
necessidades do ser humano é ser aceito num grupo. Isso é natural,
e não tem nada de errado. Mas essa aceitação que se busca - à
qual os filósofos chamariam de “sentimento de pertença” - pode
se transformar em patologia. Isso acontece quando a busca se converte
numa espécie de exagerada ânsia pelo “troféu” de se pertencer
ao grupo que está no poder, que tem maior influência - o “grupo
dos vitoriosos”.
Esse desejo cria e
alimenta a necessidade de existência de grupos abaixo daquele poder,
daquela vitória. Tal tipo de “posição vitoriosa” exigirá,
sempre, o aplauso. E, para o aplauso, é preciso que existam grupos
de “perdedores”, cuja função é, exclusivamente, a de
submissão. Eis a chave que dá partida na máquina dos preconceitos.
Aquela lógica criará,
pouco a pouco, diferença de grupos e conflito entre eles, porque é
preciso que se justifique a luta, para que o “melhor”, o “mais
perfeito”, possa subir ao poder. Agora, seus membros terão o
“prêmio” máximo: a recompensa de pertencerem ao grupo mais
poderoso. O grupo dos “incluídos no poder” só existirá se
houver, do outro lado, o grupo dos “excluídos do poder”.
Começamos a ver que o
papel do preconceito é, antes de tudo, servir como espécie de
treino, uma arena para que a segregação entre vitoriosos e
perdedores nunca seja desfeita. Se o preconceito não for “treinado”,
as exclusões tendem, naturalmente, a acabar.
Nós mesmos,
pertencentes às minorias, aos chamados "guetos", podemos
estar contribuindo com a manutenção do preconceito,
inconscientemente, se nos aceitamos como vítimas, inferiores,
escravos. Isso alimenta a máquina da crueldade preconceituosa,
porque torna ainda mais “poderosos” os que, fantasiosamente, se
acham “superiores” aos seus “escravos”. Acabamos funcionando
como engrenagens...
Nada disso existe: não
existem grupos melhores nem grupos piores, apenas grupos diferentes.
Alimentar o desejo de que exista ruptura entre “ganhadores” e
“perdedores” significa ter de criar constantes conflitos entre
grupos X, Y ou Z. Quando nos dermos conta de que essa “lógica” é
mera ficção, o preconceito começará a desmoronar pouco a pouco, a
partir de suas raízes.
O preconceito contra o
homossexual, por exemplo, é um exercício mecânico para que se
criem segregações que permitam a ascensão dos “normais”
(heterossexuais) ao poder cobiçado. Digo que é um “exercício”
exatamente porque não encontra nenhum fundamento concreto, a não
ser o “treino” para as exclusões de todo tipo - as sexuais, as
financeiras, as religiosas, as raciais, as culturais, as ideológicas,
as
profissionais, as
linguísticas.
Preconceitos se
multiplicam quase infinitamente: hoje, podemos dizer que somente será
visto “sem” preconceito social aquele que, no Brasil, por
exemplo, seja do sexo masculino, branco, jovem, bonito, tenha muito
dinheiro, seja heterossexual, esteja num cargo de chefia, seja
casado, com filhos, católico, pertencente a alguma confraria
secular, tenha gestos contidos, não ria em excesso. E quantas vezes
os gays já não receberam propostas escondidas desse tipo de “homem
normal e ideal da sociedade brasileira”?
Se olharmos para cada
preconceito em si mesmo, logo começaremos a ver que ele, por si só,
não tem nenhum fundamento, nem científico, nem natural, nem
racional. Vamos checar um pouco mais de perto as possíveis
“justificativas” para a homofobia?
Uma alegação
pré-histórica que “justificaria” a luta contra a
homossexualidade. Se, num tempo remoto, a terra precisava ser
habitada, e a união entre pessoas do mesmo sexo representava um
obstáculo à procriação, será que o ambiente em que estamos,
modernamente, deve ser visto daquela maneira? Será que precisamos
continuar habitando descontroladamente a terra? Enfim, qual o
obstáculo “real” que a união entre pessoas do mesmo sexo
representaria, hoje, à terra?
O que justifica a
segregação ainda existente contra homossexuais?
Há algo, repito, que
“justifica” esse e os demais preconceitos: o exercício da
segregação, semelhante aos exercícios que os soldados, mesmo em
tempos de paz, fazem, sempre à espera da guerra. “Vitoriosos”
contra “derrotados” é uma lógica de guerra.
Voltando à questão
específica do preconceito contra homossexuais, desta vez num nível
mais direto de análise.
Se uma pessoa se supõe
na condição de determinar que certa conduta ou orientação - amar
alguém do mesmo sexo - sejam erradas, o mínimo que devemos exigir
dessa pessoa será que ela própria não deseje, em nenhum nível, o
que está sendo por ela recriminado. E de que forma eu posso,
inequivocamente, dizer que alguém que recrimina ou discrimina um
homossexual não seja, ele próprio, um homossexual? O que me permite
ver, com esses olhos que a Terra há de comer, como diz o povo, se
essa pessoa é ou não é homossexual?
Nada. Ela pode gritar
que não é, pode até enganar a si mesma, casando-se com pessoas do
sexo oposto várias vezes, mas eu continuarei não sabendo se ela é
ou não é homossexual. Ela própria pode não saber. Não se trata,
apenas, de hipocrisia da parte dela, porque ela pode muito bem, de
fato, nunca ter sido apresentada a si mesma, e não se conhecer.
Por isso, também, a
raiva, a rivalidade gratuita, a hostilidade, a violência contra
grupos que ferem a sua indefinida (porém idealizada) pessoa. Elas
não se conhecem ou não aceitam aquilo que conhecem, e agem de
maneira hostil contra o grupo que as desmascara publicamente. Grupos
que as identificam com os “perdedores”... Uma ofensa!
Outra pergunta aos que
recriminam a conduta homossexual alegando “cientificidade”. Qual
a base científica para se afirmar que a homossexualidade não seria
uma conduta natural à espécie humana? Alegar, por exemplo, que os
animais das selvas não a praticam? Ainda que não praticassem,
pergunto: se devemos justificar uma conduta humana com base numa
conduta animal, por que ainda estamos vestidos, por que não tiramos
nossas roupas e por que, também, não deixamos de nos comunicar pela
fala?... Nunca vi um animal vestido nas selvas. Nunca vi um animal
falando línguas humanas.
Nada justificará uma
exclusão, em tempo algum, seja ela qual for.
Desmascarar um
preconceito é mais simples do que se supõe. Todos eles estarão
imbuídos da “lógica” da guerra, em que a “vitória” de uns
é “legitimada” pela “derrota” de outros. O preconceito é um
exercício de segregação, e a segregação é alimentada pela
lógica do poder, sendo a sua peça principal.
Conhecer esta máquina
de ficção, sem máscaras, significa dar o primeiro passo em direção
ao fim dos preconceitos.
Pode ser a luz no fim
do “gueto”.
Sobre o autor
Marcelo Moraes Caetano
é escritor, professor titular da Laureate International
Universities, da Universidade de Freiburg e professor pesquisador do
CNPq-UERJ. Membro da APPERJ, da União Brasileira de Escritores (SP),
do PEN Club (RJ-Londres), da Académie des Arts-Sciences et Lettres
(Paris), editor da revista de cultura ALIÁS, colunista da Revista da
Cultura (SP, RS, Brasília,PE, Campinas). Pianista clássico (com
primeiros lugares no Brasil e no exterior), membro da Orquestra
Sinfônica de Viena, tradutor de inglês, francês, alemão, latim e
grego, professor de português, grego e literatura brasileira,
portuguesa e africana (bacharel pela UERJ e licenciado pela UNESA,
especialista pela UFF, Mestre pela PUC-rio e Doutor por Coimbra).
Possui 18 livros publicados: gramático ("Gramática para o
vestibular", Editora Elite, "Gramática Reflexiva da Língua
Portuguesa" (Editora Ferreira), lexicógrafo ("Instâncias
do sentido o dicionário e a gramática - múltiplas interconexões
semiológicas" -Editora Academia Brasileira de Filologia),
crítico literário ("Literatura Brasileira", Editora
Elite, "Caminhos do texto", Editora Ferreira), com diversas
premiações nacionais e internacionais. Blogue:
http://demarcelomoraescaetano.blogspot.com
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