Numa discussão em aula
universitária que eu dava sobre religiosidade e filosofia, uma aluna
me indagou, com a mordacidade, sarcasmo, sentimento de superioridade
e altivez que costumam acompanhar os fanáticos:
−“Engraçado, tem
muito ateu que, na hora de um aperto, chama por Deus.”
Eu respondi:
−“Engraçado, e tem
muito crente que, na hora de um infarto, chama o médico”.
Depois do pasmo
inicial, resolvi esclarecer, à turma (que, afinal, possuía gente
esclarecida) a falácia dessa minha aluna, e a consequente falácia
presente, até, na minha resposta.
“Agora vamos ao
discernimento?”, perguntei eu. Ao que a turma prontamente se
comprometeu a ouvir. (“Discernir é sinônimo de inteligência para
Sócrates”, lembrei eu aos alunos, trazendo à discussão o
primeiro pensador do Ocidente que se preocupou com a questão que
abaixo se esboçará, centenas de anos antes do nascimento de
Jesus.).
É fundamental
esclarecer a certas almas que “ateus” são totalmente diferentes
de “agnósticos”, “céticos”, “materialistas”, que, por
sua vez, são diferentes de “gnósticos”, de “espiritualistas”,
de “teístas”, de “fideístas”, de “crentes”, de
"transcendentalistas", de "imanentistas" etc. Não
se pode (ou não se deve, para quem quer a luz e não a penumbra)
colocar “tudo num saco só”.
Por isso mesmo, pode
haver, sim, combinações dessas posturas filosóficas, que, muitas
vezes (não todas), não são sequer excludentes. Einstein, para mim,
por exemplo, era um homem espiritualista, gnóstico, porém cético,
porque a Razão vinha em primeiro lugar, e imanentista, porque, para
ele, a imanência da inteligência superior acompanhava a razão no
âmago do homem; não era preciso olhar para fora para achá-la. Já
Kardec, outro exemplo, seguiu uma religião (cristã), porém era
igualmente cético, porque só aceitava o cristianismo na medida em
que ele se esclarecia pela razão, e transcendentalista, pois achava
que as verdades cristãs estavam presentes num mundo espiritual fora
e além do homem. E os exemplos se proliferariam infinitamente.
Até “religião”,
aliás, é muito diferente de “religiosidade”. Há, inclusive,
uma religião, o Budismo, que é a religião que tem maior número de
seguidores no mundo, que não acredita em Deus nem em Deuses. Mas
para os, digamos, simples de inteligência, parcimoniosos das
capacidades cognitivas, de interpretação maniqueista-subjetivista,
é tudo “uma coisa só”: de preferência o “demo”.
Só uma distinção,
porque não quero transformar um blog numa aula profunda de
filosofia, apenas superficial (rs), e quero deixar claro que só
escrevi este artiguete a pedido de alguns alunos, instigados que
foram pelo senso crítico (graças a Deus! rsrs):
1) o “ateu” é
aquele que não acredita, prioritariamente, em Deus, ou Deuses, em
Deidades, ou Divindades, seja Jeová, Alá, Santa Rita, Xangô,
Brahma, Hare Krishna, Zeus, Vênus. Daí que seu “oposto” é o
“teísta”, o “fideísta” ou o “crente”, e não
necessariamente o “religioso”, o “gnóstico”, o
“espiritualista”. Etc. Etc. Etc.
2) O “agnóstico”,
por seu turno, é seguidor da filosofia de Kant, e, com ele, afirma
que “NÃO se pode comprovar, PELO MERO USO DA RAZÃO (ESTE é o
ponto dos agnósticos), que Deus exista, NEM TAMPOUCO que NÃO
exista”, donde se conclui que o agnóstico simplesmente não
admite, pela racionalidade, a existência de Deus, porquanto não
comprovável com aquela faculdade racional, mas tampouco a
inexistência de Deus, porquanto tampouco comprovável pela mesma
faculdade.
Então, voltando ao
caso que deu ensejo a essa busca fundamental de discernimento, quando
aquela pessoa fala de “muitos ateus que chamam por Deus” (e,
detalhe: "muitos" não são todos; ademais, pergunto onde
ela fez essa pesquisa, e o que exatamente ela chama de "muitos"
no espaço amostral alpha da questão...?), enfim, "muitos
ateus" que chamam por Deus numa situação difícil (e pode,
sim, havê-los, sem contradição nenhuma, desde que I) estabeleçamos
o que é "muitos"; II) percebamos que o "chamar por
Deus" pode constituir um "chamado" instintivo,
inconsciente, e o ateísmo é uma postura mental, consciente; e
sabemos que pode haver, em certos momentos, sobreposição das
estruturas psíquicas do ser humano; III) ateísmo não exclui
completamente a presença de Deus, mas sim a sua existência
transcendental e IV) o que será que significa "Deus" nesse
"chamado"?), essa pessoa que critica "muitos ateus que
chamam por Deus" (rimou à moda inversa de Mario Quintana hoho),
pessoa porventura bem-intencionada (oh essa minha mania de ser
utópico!), não deve saber que ela está colocando “num mesmo
saco” uma miríade de posições espirituais/materiais diferentes
para cacete!
Esse ateu que chama por
Deus no aperto não poderia ser, isso sim, um materialista, um
transcendentalista, porque, em tese, seria como imaginar um cristão
que, na hora do aperto, clamasse por Hare Krishna ou por Oxalá, ou
um Hindu que, na hora do sufoco, orasse à alta clemência de Jeová.
Agora eu pergunto: até
isso (a situação desses chamados "sincréticos" descritos
acima) é IM-possível?
Não!
Porque julgar um grupo
(mesmo “religioso”) pela ação de “muitos” (palavra usada
pela nossa amiguinha) é burrice no sentido socrático, porque não
discerne. Ela teria que ser, no mínimo, ontológica, e ter julgado
todos os indivíduos daquele grupo para afirmar que é uma
característica subjacente a eles todos. (Mas, muito antes, como
premissa maior, saber o que é um ateu, algo que sequer sabia.)
Parte precisamente
desse tipo de falácia a mesma burrice de dizer que os negros (todos)
são assim ou assado, os homossexuais (todos) são assim ou assado,
as mulheres (todas) são assim ou assado, os teístas (todos) são
assim, os (ateus) todos são assado... Etc.
Aqui me parece
necessária uma intervenção metalinguística.
É importante que fique claro que as ideologias, sejam quais forem, devem ser respeitadas. Eu não posso desrespeitar a alguém que, no seu íntimo, por razões subjetivas ou de recalque ou seja lá o que for, não goste, por exemplo, das mulheres, dos negros, dos homossexuais, dos estadunidenses, dos judeus, dos nazistas, dos brasileiros... Indo mais profundamente, creio que, no futuro, aprenderemos, até!!! a nos expressar com ideologias distintas sem que isso interfira em nossa capacidade de conviver pacificamente numa sociedade.
Outra utopia? Sim, mas
utopia não é o que não se pode alcançar (ao contrário do que
muita gente pensa - "pensa"?), e sim o que deve idealmente
se procurar para que se atinja a harmonia geral.
Liberdade de expressão
sempre! O que é inadmissível é o desrespeito, e a falácia, num
pseudo-argumento dentro dessa liberdade de expressão que eu tanto
defendo, é, dentre outros, um enorme desrespeito.
Então, esse parêntese
dialético: precisamos expor, sem falácias (please!) nossas
ideologias, contrastá-las, mas sem que isso signifique,
necessariamente, que queremos impô-las a quem há por bem outras
ideologias alheias à nossa.
Momento chegará em que
a legalidade e a liberdade se encontrarão, reproduzindo palavras de
uma entrevista que Élisabeth Roudinesco me deu em Paris. Nesse
momento, eu poderei me expressar livremente sem ser punido pela lei,
porque, antes de saber que tenho liberdade de expressão, saberei que
tenho que respeitar as outras liberdades de expressão. E, pois, a
lei não precisará intermediar minha relação com outrem, nesse
quesito. Será a união da legalidade e da liberdade.
Há distinção entre
meu mundo de ideias, que pode até ser imutável, por "n"
fatorial razões, e a tentativa fascista de imposição do meu mundo
de ideias. Hoje, infelizmente, ainda se crê que a mera discussão de
ideias antitéticas e dialéticas gera, necessariamente, conflito
pessoal-social. Digo eu: só o gera em pessoas muito pouco
esclarecidas e que não fazem a menor ideia da diferença entre
espírito científico-crítico e senso comum-subjetivista.
Chomsky e Piaget nunca
se digladiaram em congressos porque o primeiro acredita no inatismo e
o segundo no construtivismo. Após discussões figadais, saíam para
almoçar juntos... Chomsky me disse, numa entrevista que me deu, que
Piaget foi um dos maiores pensadores da atualidade.
Nietzsche mesmo, em seu
antieclesialismo, grita: "Bendita a Igreja! O que seria dos
livre-pensadores se não fosse a Igreja?"
O ser humano é
subjetivo, isso é até tautológico. É como dizer: o sujeito é
subjetivo (rs). Mas o subjetiv-ISMO é praticamente uma doutrina
teológica que crê que a liberdade de expressão ("express
yourself", nas palavras de Nietzche-Madonna) gera inequivocamente conflito, balbúrdia e choque de "interesses"
(! ui).
Publiquei um artigo na
coluna "Papo sério" da revista G-Magazine, edição de
aniversário, chamado "Luz no gueto", que procurava, por
aí, responder à ontogênese do preconceito homofóbico. Era um
pouco diferente, porque, lá, eu partia de uma distinção (como
dito, "onto"-gênese) materialista, empirista, mais do que
filosófica, o que faço aqui. Em breve publicarei neste blog o
artigo "Luz no gueto", porque ainda acredito na sua
eficácia (rs) e sou crente (rs) de que, hoje, ele terá uma
repercussão até mais profunda nas consciências e almas (oh!)
brasileiras, que, bem ou mal, abriram-se às discussões mais
racionais, objetivistas e menos subjetivistas, religiosas; passaram
mais do foro íntimo da religião para o status quo coletivo e
racional do Estado e do bem-estar necessário à civilização.
Entenderam, agora, de
onde nascem, basicamente, os preconceitos? Láááááá da falta de
discernimento entre, basicamente, materialismo e espiritualismo.
Lááááááá da noite dos tempos. Láááááááá da busca pelo
poder de poder dizer o que é o certo e o errado (esta a tese que
defendo na G-Magazine aludida.). Lááááááááá na inefável
vontade de pertencer ao "grupo vencedor" e tripudiar sobre
os grupos cuja posição de gueto evidencia e − mais! - comprova o
establishment do "grupo vencedor".
Não discernir é o que
cria preconceitos.
E NÃO CONHECER é o que cria NÃO DISCERNIR...
E etc. e tal...
Sobre o autor
Marcelo Moraes Caetano
é escritor, professor titular da Laureate International
Universities, da Universidade de Freiburg e professor pesquisador do
CNPq-UERJ. Membro da APPERJ, da União Brasileira de Escritores (SP),
do PEN Club (RJ-Londres), da Académie des Arts-Sciences et Lettres
(Paris), editor da revista de cultura ALIÁS, colunista da Revista da
Cultura (SP, RS, Brasília,PE, Campinas). Pianista clássico (com
primeiros lugares no Brasil e no exterior), membro da Orquestra
Sinfônica de Viena, tradutor de inglês, francês, alemão, latim e
grego, professor de português, grego e literatura brasileira,
portuguesa e africana (bacharel pela UERJ e licenciado pela UNESA,
especialista pela UFF, Mestre pela PUC-rio e Doutor por Coimbra).
Possui 18 livros publicados: gramático ("Gramática para o
vestibular", Editora Elite, "Gramática Reflexiva da Língua
Portuguesa" (Editora Ferreira), lexicógrafo ("Instâncias
do sentido o dicionário e a gramática - múltiplas interconexões
semiológicas" -Editora Academia Brasileira de Filologia),
crítico literário ("Literatura Brasileira", Editora
Elite, "Caminhos do texto", Editora Ferreira), com diversas
premiações nacionais e internacionais. Blogue:
http://demarcelomoraescaetano.blogspot.com