Muitos nos têm
perguntado sobre a diferença em ser gay no mundo ocidental e em ser
gay no mundo judeu-islâmico-cristão, em Israel e na Palestina. Dois artigos
recentemente publicados em http://operamundi.uol.com.br
relatam exatamente o que se quer saber.
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Não é fácil ser gay
em nenhum lugar do mundo, diz ex-líder de ONG para lésbicas
palestinas
Rauda Morcos ressalta
que os muçulmanos não são melhores ou piores no trato com a
comunidade gay
Por Susana Mendoza –
Jerusalém (link original:
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/entrevistas/21482/nao+e+facil+ser+gay+em+nenhum+lugar+do+mundo+diz+ex-lider+de+ong+para+lesbicas+palestinas.shtml)
Palestina, mulher e
homossexual. Rauda Morcos carrega um triplo estigma em um país
cercado de controvérsias. Apesar de não estar mais à frente da
Aswat, a primeira organização para as lésbicas palestinas em
Israel, ela deixou uma grande marca na organização. Hoje Rauda
dedica-se plenamente à Mantiqitna, uma rede social de ativistas no
Oriente Médio formada por membros de destaque do movimento gay na
região.
Cofundadora da Aswat,
ela é a primeira palestina a assumir publicamente sua
homossexualidade. Segundo Rauda, os desafios encontrados pelos
homosexuais são bastante semelhantes, independentemente da
localização geográfica. "Se me dizem que, por causa da
crença, os muçulmanos são menos tolerantes com a homossexualidade,
eu lhes direi o mesmo. Veja o Papa! O maior dirigente religioso do
mundo não só não reconhece os homossexuais, como os condena",
sublinha.
Rauda conversou com
Opera Mundi sobre a organização que deu tanto apoio a uma das
comunidades mais desprotegidas em Israel.
Opera Mundi: Como
surgiu a ideia de criar uma organização para lésbicas palestinas?
Rauda Morcos: A Aswat
começou em 2001 como um grupo de e-mails, para compartilhar ideias,
projetos e ajudar umas às outras, porque não havia nenhum lugar ao
qual recorrer naquela ocasião. Depois de algum tempo, decidimos
organizar uma reunião para nos conhecermos. Em 2003, tivemos nosso
primeiro encontro, cerca de nove mulheres que hoje formam o núcleo
da organização. Depois de várias reuniões, nos demos conta da
importância de atender adequadamente a comunidade lésbica palestina
e decidimos nos organizar. O problema, então, foi que nenhuma tinha
a menor ideia sobre como seria isso e nem sequer chegávamos a um
acordo sobre como fazê-lo. Decidimos que o melhor na época era que
alguma organização nos acolhesse, e entramos em contato com Kayan,
uma organização feminista em Haifa que nos deu um escritório e o
material necessário para começar.
Fui eleita
coordenadora. A verdade, não vou mentir, é que eu não tinha ideia
de como começar, estava totalmente perdida. A Kayan nos ajudou
muito. Comecei a escrever nossa visão do projeto, objetivo,
atividades e entrei em contato com organizações feministas e de
lésbicas, até que em 2004 conseguimos nosso primeiro fundo do
Global Women Fund e Mama Cash. Na ocasião, tínhamos o mesmo
objetivo que temos hoje, o de alcançar a população palestina,
assim como a israelense e internacional. Queremos prosperar como
grupo. Aqui, já somos 15, e queremos ajudar os 10% da população
gay palestina.
Estatisticamente, 10% de toda população é homossexual, e, naturalmente, os palestinos não seriam diferentes.
OM: É mais difícil
ser homossexual em uma sociedade muçulmana, sobretudo quando se é
mulher?
RM: (suspiro) Não acho
que seja fácil ser gay em nenhuma parte do mundo, é sempre igual.
Os ocidentais associam ser árabe a ser primitivo, ou seja,
homofóbico. A maior parte das sociedades do mundo é patriarcal e
isso significa que são homofóbicas. Costumo usar George W. Bush
[ex-presidente dos Estados Unidos] como exemplo, um homem que dirigiu
um dos países mais influentes do mundo. Para mim, é um dos homens
mais racistas, machistas e homofóbicos que existem e era o
presidente daquela que se supõe a superpotência do mundo ocidental.
Muitos países europeus
não têm nenhuma organização para lésbicas. E na União Europeia,
sabe quantas pessoas são assassinadas por ano por serem
homossexuais? Centenas, todos os anos, só por serem gays. Mas as
pessoas não querem saber, preferem continuar pensando em São
Francisco, a capital gay dos Estados Unidos e em como são liberais e
progressistas.
Até mesmo em Amsterdã
há ataques contra homossexuais, enquanto se supõe que lá a mente
seja mais aberta... Portanto, quando me perguntam isso, tenho que
dizer que não acredito que dependa do local de nascimento, no
Ocidente ou no Oriente, nem da religião. Tudo depende do uso que se
dá à religião. Se me dizem que, por nossa crença, os muçulmanos
são menos tolerantes com a homossexualidade, eu lhes direi o mesmo.
Veja o Papa! O maior dirigente religioso do mundo não só não
reconhece os homossexuais, como os condena.
Odeio que o Ocidente
nos julgue por nossa religião, porque sei que utilizam isso como uma
arma contra nós. Além disso, o modo de vida ocidental não
significa nada para mim, não me atrai, e, ao menos na Aswat, não
queria imitá-lo. Não teríamos sido bem sucedidas se pretendêssemos
atingir nosso povo com os mesmos métodos. Cada país tem que
encontrar um método para seu contexto cultural.
OM: Você foi a
primeira mulher a dizer que era gay abertamente. Como foi “sair do
armário”?
RM: Uau! Eu tinha
certeza de que não podia ser homossexual na minha comunidade.
Principalmente pela imagem que eu havia formado sobre isso, graças
ao estereótipo dos meios de comunicação. Eu também, como
palestina, ouvia a mídia falar do meu povo, e foi duro também
porque eu era a primeira que fazia algo do tipo, a pioneira, e quando
não há precedentes, é sempre mais difícil. Não tinha ideia de
qual seria o resultado, mas a verdade é que sempre fui muito
independente, até que finalmente resolvi me assumir.
Quando finalmente o
tornei público, preciso dizer que me senti totalmente nua. De
repente, todos me olhavam e me analisavam na rua, sem nenhuma
vergonha. Foi difícil, claro, mas passado um tempo, me dei conta de
que isso era na realidade muito bom, porque recebi todo tipo de
respostas, desde as pessoas ao meu redor até pessoas que eu não
conhecia e que me abordavam na rua. Com isso, finalmente as pessoas
se atreveram a se aproximar de mim para perguntar tudo o que antes só
pensavam, suspeitavam ou cochichavam.
Alguns me paravam na
rua para me perguntar por que eu era lésbica, esclarecer dúvidas ou
até expressar seu desagrado. No começo me senti um pouco oprimida,
mas finalmente me dei conta do bem que é poder ter essa interação
e falar abertamente. Até a minha avó, de 85 anos, me abordou e
perguntou: “o que é isso que falam de você, que é uma
Elisabetta? Me disseram que é algo muito ruim”. (Neste momento,
Rauda começa a rir, jogando a cabeça para trás, e me explica que,
em árabe, lésbica é lesbit e que sua avó nem sequer conhecia a
palavra).
Achei realmente
engraçado, alguém abordou a minha avó e disse a ela que eu era
lesbit, e a pobre mulher nem sequer entendeu a palavra, ainda menos o
conceito. Mas o que mais me surpreendeu foi a reação quando
expliquei à ela o que é uma lésbica. Me disse: “Ah! Então não
é tão ruim. Às vezes é melhor não se casar”. Se não
tivéssemos esses estereótipos sobre os homossexuais, tenho certeza
que todos reagiriam como a minha avó, que nunca ouviu falar sobre
isso, nem viu na televisão.
A mesma coisa aconteceu
com os meus pais. No começo foi um escândalo, até que me sentei
com eles para falar sobre isso e pude explicar com calma. Deixou de
ser um problema. Quando se vê a questão de outra maneira e tem a
chance de explicar e se expressar abertamente, ela deixa de ser um
problema, não tem que ser ampliada.
OM: Em relação ao
tema da ocupação palestina, a Aswat tem algum ponto de vista?
RM: Acreditamos que
tudo é político, nossa nacionalidade e nosso gênero, isso é o que
somos. Não temos nenhuma agenda nem qualquer opinião política
sobre isso, a não ser que afete a comunidade homossexual de alguma
forma. A Aswat enquanto grupo não tem afiliação nem opinião
política, logo, cada membro tem a sua própria opinião sobre isso.
Se há uma manifestação
pela ocupação, o muro ou os direitos do povo palestino, que seja
patrocinada por alguma organização de mulheres, nós estaremos lá
para apoiá-las, mas nunca daremos início a nenhum evento desse
tipo.
No verão passado,
houve um grande alvoroço porque queriam celebrar a Parada Gay em
Jerusalém, e nós fomos contra. Muita gente nos disse que isso
significava perder uma oportunidade, mas acreditamos que não se pode
celebrar este tipo de evento em um país em guerra, onde muitos
grupos de outros países nem sequer poderiam passar devido à
política de Israel. Além disso, no verão passado, tínhamos como
sócia a organização lésbica libanesa Hellem, e decidimos apoiá-la
durante a Guerra do Líbano.
OM: Quais são os
principais objetivos da Aswat?
RM: Ajudar as lésbicas
da nossa comunidade, mostrar que não estão sozinhas, que não é
algo estranho nem desprezível ser gay e conscientizar a população
sobre a homossexualidade. Em suma, gerar uma reação positiva sobre
isso. Também organizamos reuniões mensais às quais todos podem
comparecer, no norte de Israel, em Nazaré, e no sul. Hoje, ajudamos
cerca de 30 mulheres e oferecemos cursos o ano todo, assim como
publicações trimestrais em árabe sobre o que fazemos aqui. Temos
um disk-ajuda 24 horas por dia.
Acredito que nossa luta
é parte da luta internacional pelos nossos direitos e é muito
importante conhecer as nossas diferenças assim como o que nos une.
Também acredito fortemente que juntos podemos fazer um mundo muito
melhor.
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Jerusalém: o desafio
de ser gay na cidade "sagrada"
Apesar de reunir uma
pluralidade de crenças e estilos de vida, a intolerância contra
homossexuais ainda é grande
Por Susana Mendoza –
Jerusalém (link original
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/21480/jerusalem+o+desafio+de+ser+gay+na+cidade+sagrada.shtml)
Em Jerusalém, há
apenas um bar gay e a realização da Parada do Orgulho Gay foi um
direito conquistado após muito esforço. Ela reuniu quatro mil
pessoas em 2011, que exigiram a aprovação de uma legislação que
proteja os homossexuais em Israel. Indignados com o desfile, grupos
de judeus ortodoxos protestaram em diversos pontos da cidade,
controlados por cerca de mil policiais espalhados por Jerusalém -
alguns chegaram a agredir os participantes do evento. Em junho
daquele ano, a marcha em Tel Aviv conseguiu reunir 70 mil pessoas.
“Embora não existam
tantos homossexuais quanto em Tel Aviv, todos os anos Jerusalém
atrai milhares de ativistas gays para participar da marcha, para
mostrar que, mesmo que os religiosos nos considerem ‘sujos’, esta
é nossa cidade também”, comenta A.S. um membro da comunidade
homossexual da cidade.
Apesar das diversas
ameaças de morte que recebem ano após ano durante a parada, a
marcha anual se supera cada vez mais em termos de assistência e
organização. “A diferença entre a nossa marcha anual e a de Tel
Aviv e outras partes do mundo é que, em Jerusalém, adquire também
um significado de luta pelos nossos direitos e contra o ódio que uma
ampla maioria da população de Jerusalém sente por nós”,
acrescenta Natalie V., uma belga que desembarcou em Jerusalém há
cinco anos.
Natalie, que há cinco
anos namora uma mulher israelense, é prova da dualidade do estado de
Israel em relação à homossexualidade. Embora Israel seja um país
democrático, o judaísmo ortodoxo interfere em muitos assuntos
civis, incluindo os casamentos. Em Israel, é impossível realizar um
casamento civil, mesmo entre heterossexuais. No entanto, em uma
distorção, estão permitidas as uniões homossexuais, inclusive se
uma delas for estrangeira, como é o caso de Natalie.
“É curioso que isto
seja possível em um país onde predomina tanto a religião. Eu quero
deixar claro que em Jerusalém e Israel, até o momento, não tive
nenhum problema por andar de mãos dadas com a minha namorada, nem
por darmos um beijo”, diz. “No entanto, trabalho com uma família
ortodoxa judia e não comentei nada sobre a minha orientação sexual
em quase quatro anos", conta Natalie.
Ultraortodoxos
caminhando ao lado de uma mulher muçulmana usando o véu e uma
menina de minissaia logo atrás são cenas comuns nas ruas de
Jerusalém. E é nessa heterogeneidade que, no final, reside uma
espécie de acordo tácito de não agressão. Embora, às vezes, essa
bolha possa estourar, como aconteceu durante a Parada do Orgulho Gay
de 2005, quando um judeu ultraortodoxo esfaqueou vários
participantes. Atentado pior aconteceu à comunidade gay de Tel Aviv,
quando uma bomba matou duas pessoas e feriu uma. O culpado, um colono
da Cisjordânia, afirmou que os homossexuais são “animais”.
Portanto, apesar da
mescla aparentemente suave entre religiosos e seculares em Jerusalém,
assim como no resto do país, uma tensão soterrada pulsa abaixo da
superfície. “Aqui, em geral, como os gays não carregam um cartaz
dizendo ‘sou gay’, não há tantos problemas, mas também você
não vai dar um beijo em outro homem em Mea Shearim (o bairro
ultraortodoxo), não queremos provocá-los em seu bairro”, diz
Adam.
Segundo ele, porém, o
resto da cidade é de todos. O bar Mikve, antes conhecido como
Shushan, na rua Shushan, foi o primeiro voltado para o público gay a
ser aberto na cidade. O lugar está vivendo uma nova era dourada
depois de permanecer fechado durante muitos anos devido às pressões
dos ortodoxos. Durante toda a semana há festas para clientes
homossexuais e as segundas-feiras são exclusivas das drag queens.
“Em Jerusalém, não
há muitas festas nem lugares para dançar, por isso sempre aparecem
heterossexuais. Na cidade, todos nos conhecemos e amigos de todas as
orientações sexuais se juntam a nós. Estamos misturados”, conta
com um sorriso Daniel R., empresário.
A empresa encarregada
de organizar as festas, Unibra, garante que é um sucesso, que atrai
dezenas de pessoas a semana toda, embora as festas drag sejam as
preferidas. “As pessoas querem se divertir, já estão cansadas de
se esconder, mas infelizmente nesta cidade não há lugares para onde
sair à noite”, lamenta a Unibra.
Palestinos
Para os membros da
comunidade homossexual palestina os desafios são ainda maiores.
“Para eles é mais difícil, pois vem de uma sociedade mais
conservadora, em que a homossexualidade é punida ou humilhada em
público. Por isso, a última coisa que querem é fazer uma
declaração pública de que são gays, sejam homens ou mulheres”,
explica Adam.
A organização para
palestinos homossexuais em Israel Al Qaws organiza eventos para os
palestinos e ajuda a criar uma rede de apoio e conscientização
entre a comunidade árabe. Uma vez por mês organiza uma festa para
que os gays e lésbicas palestinos que vivem em Israel possam se
conhecer.
“Mesmo que os
palestinos que vivem em Israel contem com os mesmos direitos que os
cidadãos judeus, muitas vezes há racismo e incompreensão em
relação aos gays palestinos”, comenta um porta-voz da Al Qaws.
“Há também muita incompreensão por parte da comunidade
internacional, que se foca na ocupação israelense. Além disso, a
opinião da comunidade palestina pesa demais. Dessa forma, não
podemos esperar que eles saiam do armário como no Ocidente.”
Às vezes, Israel chega
a acolher como refugiados os palestinos homossexuais que correm risco
de morte ou que tenham recebido ameaças, embora não seja algo tão
frequente. Enquanto isso, em Jerusalém, continua a luta para que a
comunidade religiosa aceite aos homossexuais, se não como iguais,
como cidadãos com os mesmos direitos de todos.
“Este é o nosso
objetivo. Não queremos nem mais nem menos do que têm os demais e
poder passear tranquilamente de mãos dadas, sem ter medo que nos
façam sentir inferiores, nem ter a nossa Parada do Orgulho Gay
cercada por centenas de policiais”, diz Adam.
Para mostrar que,
embora nem sempre venha à tona, o ódio contra os gays corre solto
em Jerusalém, em 2006 foi a homofobia que uniu representantes das
três religiões monoteístas para protestar contra a marcha gay
daquele ano. “É uma pena. Poderiam ter se unido para protestar
contra outras coisas mais importantes”, lamenta Adam.