Dois dias após ter
escrito o artigo “Você é espiritualista e... homofóbico? (uma
pergunta para os amigos de verdade)”, que se tornou um dos mais
polêmicos do blogue Espiritualidade Inclusiva, encontramos um artigo
que o cita no blogue Evolução LGBT. Não é um artigo ofensivo nem
mal-intencionado. Pelo contrário, julgamos muito salutar para o
debate sobre o tema, e por isso achamos útil responder a alguns dos
questionamentos e argumentos do artigo do blogue amigo. Os argumentos
ali mostram que ainda não está claro para alguns o verdadeiro
conceito e a proposta de uma “Espiritualidade Inclusiva”.
Cabe-nos, então, lançar mais luz sobre o assunto.
O texto que nos cita
inicia assim: “Este brilhante texto trata sobre como linhas
esotéricas como Maçonaria, florais, Sociedade Teosófica etc
travestem-se de espiritualmente elevadas, mas perpetuam visões
extremamente negativas e preconceituosas sobre LGBTs.”
É importante
esclarecer que não são tais “linhas esotéricas” (algumas nem
são “esotéricas”) que se travestem de espiritualmente elevadas,
mas seus praticantes equivocados, que deixam sua homofobia particular
manchar propostas espirituais que deveriam incluir a todos
naturalmente. No caso da Sociedade Teosófica, não há uma só linha
contra gays nos textos mais antigos de Blavatsky, Besant e Leadbeater
(este, aliás, foi acusado de ser homossexual e este falatório
persiste até hoje nos círculos internos da Sociedade Teosófica).
Então, a homofobia reinante entre os líderes atuais desta sociedade
espiritualista é fruto de sua própria ignorância, como pude
confirmar pessoalmente ao trabalhar em Brasília, onde fica a sede
nacional, no ano de 2005.
Em seguida, o texto
afirma que “Há textos 'teosóficos' que dizem que gays têm
perispírito deformado!” Só se for em textos de autores modernos,
textos estes que, sinceramente, desconheço. Entre os textos dos
fundadores do pensamento teosófico não há nada a respeito. O fato
de um livro referir-se à teosofia não significa ser escrito por um
membro da Sociedade Teosófica e muito menos refletir os princípios
ali ensinados, todos baseados nas obras mais antigas.
Mais adiante:
“Portanto, vemos que essas ordens esotéricas não são tão
iluminadas quanto se pensam, principalmente porque seu conhecimento
esotérico é baseado em puro achismo e crendice e não absorveu o
que a academia e a ciência – a psicanálise, a sociologia, a
biologia etc – já produziram sobre a homossexualidade e sua
presença no meio natural. A ciência inclusive já articulou a
homossexualidade com o darwinismo e ainda vemos babacas dessas
“ordens” esotéricas acusando os LGBTs de antinaturais.”
Concordo com este
argumento. Está mais do que na hora das religiões e
“espiritualidades” incorporarem as descobertas das Ciências –
biológicas e humanas – a suas visões de mundo, se querem
aproximar-se um pouco mais da realidade do mundo atual. O Dalai Lama,
representante do Budismo Tibetano, afirmou várias vezes que o
Budismo não é radical e que, se um ensinamento budista for
contradito peremptoriamente por comprovações científicas, deve-se
seguir a Ciência e não a religião, já que o Buda pregou que cada
um fosse o seu próprio Mestre e só aceitasse aquilo que pudesse ser
comprovado. Falta apenas a Ciência dar mais dados sobre a
naturalidade da homossexualidade no mundo animal para que isso possa
ser considerado de modo mais firme.
“Lutar por uma
espiritualidade inclusiva implica em reforçar que há os 'normais' –
homens e mulheres heterossexuais – e que estes devem, por
'bondade', tolerar e/ ou incluir LGBTs em sua presença nos lugares
de espiritualidade. (…) Ou seja, reforça a oposição entre “nós”
e “eles”.”
Desculpe o autor do
artigo, mas há uma confusão no que tange ao conceito e proposta da
Espiritualidade Inclusiva. Ela não diz que os heterossexuais são os
“normais” e os LGBT os “não-normais” ou “anormais”. Ela
diz que heterossexuais e não-heterossexuais são IGUAIS perante a
natureza material e espiritual e, por isso, ninguém pode ser
excluído de uma possibilidade de desenvolvimento em direção ao
transcendente e de autoconhecimento em direção a uma felicidade
plena. Também não reforçamos a ideia de “tolerância”, mas de
reconhecimento do outro como parte de uma diversidade natural, ainda
que desconhecida ou deliberadamente ignorada pela maioria. Aceitar,
reconhecer, valorizar, sim! Mas, simplesmente “tolerar”, não é
a atitude mais eficaz.
Além disso, o
Movimento Espiritualidade Inclusiva não propõe que os
heterossexuais incluam os LGBT em seus “lugares de
espiritualidade”. Temos que ser nossos próprios protagonistas. Não
dependemos, não precisamos e não queremos “bondade” de ninguém.
Queremos apenas o reconhecimento de um fato: o de sermos iguais em
direitos, ainda que diversos na manifestação. Assim, não
reforçamos oposição alguma, mas buscamos a integração.
“A ideia de
espiritualidade inclusiva, com todo respeito aos que a defendem,
reforçam nossa alteridade e o paradigma vigente. E ainda vem
reforçar a ideia de que devemos ser incluídos quase como que por um
favor. Ela não muda necessariamente padrões de pensamento. O maior
exemplo disso é a Ordem Rosa-cruz AMORC que “aceita” pessoas
homo-afetiva, mas não lhes dá nenhum ritual de casamento. Isso
mostra que aceitar ou tolerar a presença de alguém em alguma
instituição é bem diferente de INCLUIR ESSE ALGUÉM NA ENGRENAGEM
DO SISTEMA.”
Não reforçamos o
paradigma vigente. Pelo contrário, ao buscar o reconhecimento da
naturalidade dos LGBT, reforçamos a ideia de que todos participamos
do mesmo mundo, da mesma vida e dos mesmos direitos, sejam os
materiais, biológicos, sociais ou espirituais. Ninguém depende de
“favor” para ser incluído. Não os heterossexuais que nos
incluem. Somos nós, os LGBT, que argumentamos já estar incluídos
pela natureza por conta do princípio da naturalidade da diversidade
de orientações sexuais.
O fato de organizações
de cunho esotérico-religioso-espiritual não darem plenitude aos
LGBT que são seus membros é apenas prova do não-reconhecimento
deste princípio. Cabe a nós demonstrarmos isto através de nossas
argumentações e movimentos como o Espiritualidade Inclusiva. A
sociedade funciona mais em camadas sobrepostas e em intercessão do
que através de engrenagens. Preconceitos se sobrepõem em variados
graus nos indivíduos, nas associações e nas organizações em
geral, mas nunca na mesma intensidade. Por isso, igrejas protestantes
em alguns países celebram casamentos gays enquanto lojas maçônicas
e grupos rosa-cruzes não o fazem. É contraditório? Dependendo do
ponto de vista, se fizermos juízo de valor de que é mais “elevado”,
talvez. Se não analisarmos por este prisma, é apenas constatação
do reconhecimento da naturalidade LGBT por uns e permanência na
ignorância por outros.
“É importante
lembrar que a espiritualidade inclusiva pode tanto significar uma
espiritualidade desenvolvida por LGBTs para LGBTs como também uma
luta dentro das espiritualidades tradicionais para que sejamos
incluídos. Em ambos os casos teremos problemas nela.”
Nós não entendemos o
Movimento Espiritualidade Inclusiva como uma espiritualidade
desenvolvida por LGBTs para LGBTs. Isso seria outra coisa, que nos
EUA se chama de “Espiritualidade Queer”, e sobre a qual já
escrevemos por aqui. Nossa proposta é um movimento laico e não
religioso apoiado por todos, indistintamente, LGBTs ou não. Não
doutrina, não professa dogmas e não é uma crença. É uma
proposta. Por isso, creio que os problemas sugeridos não se apliquem
neste caso. Não podemos confundir Espiritualidade Inclusiva com
Espiritualidade Gay! Uma “espiritualidade gay” pode, sim, ser
considerada uma exclusão, não uma inclusão. Isso não nos
interessa. Já há muita exclusão para criarmos mais uma. Incluir =
reconhecer a naturalidade = seguir adiante em congregação.
“A meu ver, uma
espiritualidade só será realmente inclusiva quando mudar certos
paradigmas vigentes sem essa coisa de “tolerância”. E para tal,
é preciso trazer à tona certas noções teológicas perdidas se
realmente quisermos alguma inserção no campo da espiritualidade.”
Então, já estamos
neste caminhos, pois propomos, sim, uma mudança de paradigmas, e não
temos essa coisa de “tolerância”. A mudança que propomos é
sair da exclusão para o reconhecimento da naturalidade da expressão
LGBT, o que resolve muitos conflitos.
“Portanto, creio que
a ideia de espiritualidade inclusiva não dá conta de uma necessária
mudança de paradigmas na humanidade, embora tal iniciativa seja
louvável.
Para tal, é preciso
mudar os seus fundamentos ontológicos, acabando com essa dicotomia
héteros x homos (que precisam ser incluídos ou tolerados). É
preciso mostrar a humanidade como um todo para que as pessoas sejam
vistas fundamentalmente como pessoas.”
No final das contas, é
exatamente isto o que propomos com o termo “inclusão”. Nada a
ver com “bondade” ou “tolerância” de héteros para com
homossexuais, mas sim, o reconhecimento de que todos somos
fundamentalmente iguais em direitos, em expectativas e em anseios de
vida, independente da orientação sexual. Quem entende a
Espiritualidade Inclusiva de outra forma é que está equivocado!
“Espero sinceramente
que as pessoas tomem essas críticas como construtivas e não as
encarem como um ataque. O ideal seria construirmos uma perspectiva
coletiva.”
Com certeza. O
Movimento não é isolado. Senão, não seria um movimento, não é
mesmo? Todo o movimento busca uma perspectiva coletiva, seja
em escala menor – em um grupo – ou no todo da sociedade. E, nós,
buscamos isso no todo. Queremos o todo e não uma parte. Caso
contrário, a cidadania plena para LGBTs nunca será conquistada.
“Naturalmente não
devemos impor tal mudança de paradigma a ninguém. Antes, devemos
sugeri-la de forma amável e inicialmente mudar por nós mesmos. É
preciso que nós acreditemos nisso firmemente e que mudemos a visão
que temos sobre nós mesmos.”
Plenamente de acordo.
E, em nossos artigos plurais, de vários autores (gays e héteros),
temos feito esta lição de casa. Os comentários e a ressonância do
que postamos aqui no blogue em toda a Internet mostra que estamos no
caminho certo.
“Não quero que
ninguém faça o favor de me 'incluir', principalmente achando que
meu perispírito é distorcido. Quero eu próprio LGBT fornecer
minhas respostas ao mundo.”
Assim deve ser. Apenas os LGBT podem dizer ao mundo como se sentem, o que esperam e o que desejam para si. E, no final, o que desejam não é nada além daquilo que qualquer ser humano deseja: felicidade, cidadania plena e direitos iguais.
“É possível
falarmos em espiritualidade inclusiva quando assumirmos nós próprios
LGBTs o processo de criar discursos sobre nós mesmos. Criar
conceitos e noções é TAMBÉM um exercício de PODER e não somente
de uma 'neutra' espiritualidade. Quando alguém cria conceitos e
noções sobre nós, esse alguém passa a ter poder sobre nós.”
Não é o nosso caso.
Nosso material postado vem de vários autores, a maioria da
comunidade LGBT, e não pretendemos criar conceitos e noções sobre
os LGBT, apesar do coordenador geral do movimento também pertencer a
esta comunidade. O que buscamos é apresentar o panorama geral da
relação espiritualidade/religiosidade e LGBTs. Ao apresentar este
relação, agimos como “repórteres” do processo, e não como
“conceituadores”. Em um segundo momento, fomentamos o debate para
que a própria comunidade LGBT livremente possa ir criando seus
conceitos e noções conforme a necessidade.
Importante deixar claro
mais uma vez: o Movimento Espiritualidade Inclusiva é um movimento
social laico, sem ligação com qualquer denominação religiosa, sem
apologia a alguma religião em detrimento das demais e que busca
incitar o debate sobre a inclusão através do reconhecimento da
naturalidade das diversas orientações não-heterossexuais. Os
autores dos artigos, em sua maioria religiosos, podem sim, falar
abertamente de suas crenças espirituais pessoais, mas o movimento em
si é laico, neutro quanto a princípios religiosos, reportando-se
unicamente ao princípio do Estado Laico e à Declaração Universal
dos Direitos do Homem.
Que este debate salutar
produza muitos frutos nesta luta em prol de todos os seres humanos –
pois, ao lutar por um grupo, o LGBT, estamos reforçando os direitos
de toda a humanidade e preservando sua identidade, diversidade e
variedade.
2 comentários:
Opa!!! Sou o autor do texto no blog "EvolucaoLGBT".
confesso que fiquei bastante reticente ao escrever este texto, pois temi muito que fosse mal interpretado do outro lado.
Ainda bem que vocês viram no texto um debate salutar!!! com o confrontamento desses diferentes ideias, creio que é possível construirmos argumentos bastante sólidos.
Gostaria apenas de ressaltar que as considerações no blog EvolucaoLGBT sobre a ideia de espiritualidade inclusiva não foi exatamente uma crítica (no melhor sentido deste termo) à proposta deste site. Antes, foi considerações sobre a noção maior de espiritualidade inclusiva.
Vocês, no entanto, responderam maravilhosamente bem às minhas inquietações. Fico muito feliz de ver um debate tão salutar em torno de um conceito sobre o universo LGBT.
A resposta foi muito bem escrita e não tenho maiores considerações!
Agora estou Certo de que efeticamente uma espiritualidade inclusiva é um horizonte perfeitamente válido!
Abraços para este amado blog irmão!
Amor e Paz para nossos irmãos nessa labuta!
Grato pelo comentário, parceiro de ideal. Claro que uma Espiritualidade Inclusiva é possível, ainda mais se todos caminharmos juntos em fraternidade e com argumentos consistentes, sem baixar o nível e tendo sempre à frente o benefício de todos. Abraços!
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