domingo, 29 de janeiro de 2012

E, se seguíssemos Levítico à risca?

Por Paulo Stekel

Por diversas vezes já recebi por email nos últimos anos uma determinada “carta” supostamente escrita por um anônimo como resposta a uma homofóbica apresentadora de rádio dos EUA. Fiquei curioso em saber a história deste texto que fala por si mesmo e dispensa maiores comentários.

Segundo contam os websites dos EUA, em seu programa de rádio, a Dra. Laura Schlessinger disse que, como um judia ortodoxa praticante, considerava a homossexualidade uma abominação, e que de acordo com o Livro de Levíticos 18:22, ela não pode ser perdoada em qualquer circunstância. A resposta abaixo seria uma carta aberta para a Dra. Laura, escrita por um cidadão dos EUA, que foi publicada na Internet inicialmente em 2000. É sarcástica e direta:

(Termos hebraicos originais usados em Levítico 18:22)

“Cara Dra. Laura

Obrigado por ter feito tanto para educar as pessoas no que diz respeito à Lei de Deus. Eu tenho aprendido muito com seu show, e tento compartilhar o conhecimento com tantas pessoas quantas posso.

Quando alguém tenta defender o homossexualismo [sic], por exemplo, eu simplesmente o lembro que Levítico 18:22 claramente afirma que isso é uma abominação. Fim do debate.

Mas eu preciso de sua ajuda, entretanto, no que diz respeito a algumas leis específicas e como segui-las:

a) Quando eu queimo um touro no altar como sacrifício, eu sei que isso cria um odor agradável para o Senhor (Levítico 1:9). O problema são os meus vizinhos. Eles reclamam que o odor não é agradável para eles. Devo matá-los por heresia?

b) Eu gostaria de vender minha filha como escrava, como é permitido em Êxodo 21:7. Na época atual, qual você acha que seria um preço justo por ela?

c) Eu sei que não é permitido ter contato com uma mulher enquanto ela está em seu período de impureza menstrual (Levítico 15:19-24). O problema é: como eu digo isso a ela ? Eu tenho tentado, mas a maioria das mulheres toma isso como ofensa.

d) Levíticos 25:44 afirma que eu posso possuir escravos, tanto homens quanto mulheres, se eles forem comprados de nações vizinhas. Um amigo meu diz que isso se aplica a mexicanos, mas não a canadenses. Você pode esclarecer isso? Por que eu não posso possuir canadenses?

e) Eu tenho um vizinho que insiste em trabalhar aos sábados. Êxodo 35:2 claramente afirma que ele deve ser morto. Eu sou moralmente obrigado a matá-lo eu mesmo?

f) Um amigo meu acha que mesmo que comer moluscos seja uma abominação (Levítico 11:10), é uma abominação menor que a homossexualidade. Eu não concordo. Você pode esclarecer esse ponto?

g) Levíticos 21:20 afirma que eu não posso me aproximar do altar de Deus se eu tiver algum defeito na visão. Eu admito que uso óculos para ler. A minha visão tem mesmo que ser 100%, ou pode-se dar um jeitinho?

h) A maioria dos meus amigos homens apara a barba, inclusive o cabelo das têmporas, mesmo que isso seja expressamente proibido em Levíticos 19:27. Como eles devem morrer?

i) Eu sei que tocar a pele de um porco morto me faz impuro (Levítico 11:6-8), mas eu posso jogar futebol americano se usar luvas? (as bolas de futebol americano são feitas com pele de porco)

j) Meu tio tem uma fazenda. Ele viola Levítico 19:19 plantando dois tipos diferentes de vegetais no mesmo campo. Sua esposa também viola Levítico 19:19, porque usa roupas feitas de dois tipos diferentes de tecido (algodão e poliéster). Ele também tende a xingar e blasfemar muito. É realmente necessário que eu chame toda a cidade para apedrejá-los (Levítico 24:10-16)? Nós não poderíamos simplesmente queimá-los em uma cerimônia privada, como deve ser feito com as pessoas que mantêm relações sexuais com seus sogros (Levítico 20:14)?

Eu sei que você estudou essas coisas a fundo, então estou confiante que possa ajudar.

Obrigado novamente por nos lembrar que a palavra de Deus é eterna e imutável.

Seu discípulo e fã ardoroso.

Anônimo”

A verdadeira origem da Carta

A primeira vez em que esta carta apareceu no mundo online foi em maio de 2000, logo após o estado norte-americano de Vermont ter permitido a casais homossexuais contraírem “uniões civis”, um reconhecimento oficial que estendia a parceiros do mesmo sexo benefícios legais do casamento, como direito de ser tratados pelos hospitais como parentes próximos e de alguém tomar decisões médicas em nome de seu parceiro. A decisão agradou alguns e irritou outros, resultando em muitas opiniões acaloradas sobre uniões do mesmo sexo em específico, e a homossexualidade em geral, em inúmeros fóruns públicos.

Graças a esta decisão muitas vezes foi ao ar a opinião de que os homossexuais são um “erro da natureza”. A Dra. Laura Schlessinger, apresentadora de rádio, se tornou um dos alvos dos simpatizantes pró-gay.

A Dra. Schlessinger tem atraído tanto adeptos fervorosos quanto detratores durante seus anos de vida pública. Através de seu programa de rádio, distribui conselhos para os ouvintes pelo telefone, geralmente a partir de um ponto de vista conservador. Ela era uma judia ortodoxa na época em que a carta citada foi escrita (mas anunciou sua renúncia a esta fé em seu show em julho de 2003) e, muitas vezes baseia-se nos ensinamentos bíblicos ou religiosos para orientação dos ouvintes. Ela é franca e sincera em suas respostas, vendo a maioria das situações como inerentemente pretas ou brancas, certas ou erradas.

Laura Schlessinger é uma médica credenciada em uma disciplina que tradicionalmente não tem um olhar para a geração de conhecimento em moral, questões sociais ou espirituais (como divindade, psicologia ou sociologia). Ela obteve seu doutorado em fisiologia pela Universidade de Columbia e trabalhou como conselheira licenciada para assuntos de casamento, família e infância por mais de uma década.

Alguns veem o uso de “Doutora” por Schlessinger como algo enganoso, considerando sua posição atual sobre a santidade do matrimônio e da condenação do adultério como uma hipocrisia à luz de suas décadas anteriores de relação extra-conjugal. Outros acreditam que o título de “Doutora” não deve ficar restrito apenas àqueles no campo da medicina e sustentam que as pessoas podem mudar ao longo do tempo, até mesmo ao ponto de repúdio total de comportamentos e crenças anteriores.

A Dra. Laura é tão controversa quanto popular, e atrai tanto flores quanto pedradas, sendo conhecida por abrigar opiniões fortes para se tornar parte das notícias diárias. Assim, aqueles que procuram gritar em Vermont contra o reconhecimento de uniões do mesmo sexo teriam facilmente o pensamento de Dra. Laura.

A “carta” para Dra. Laura pode ou não ter sido realmente enviada para ela, mas em qualquer caso, é melhor ser considerada como um ensaio oferecendo um contraponto para o argumento do tipo “a homossexualidade é errada porque a Bíblia assim o diz”. Embora ela pretenda ser dirigida a apenas uma pessoa (Dra. Laura), é claramente destinada a uma audiência geral. A autoria da carta ainda é um mistério, embora o nome “Kent Ashcraft” (ou “J. Kent Ashcraft”) continue sendo um dos mais cotados.

Deixando de lado a questão da autoria, este texto em maio de 2000 chegou a muitas pessoas, e em junho e julho daquele ano tinha aparecido em vários jornais, incluindo o Knoxville News-Sentinel (07 de junho), o Seattle Weekly (08 de junho), o OC Weekly (09 de junho), o The Post-Standard (11 de Junho), o Capital Times (13 de julho), e o Modesto Bee (22 de Julho). Na maioria das vezes a carta foi reconhecida como um item interessante recolhido a partir da Internet, mas em alguns casos os leitores que a enviaram para os jornais a apresentaram como suas próprias palavras, o que torna a pergunta sobre quem realmente escreveu ainda mais difícil de responder.

A chave para este ensaio é sua premissa, não seus detalhes pedantes ou como é defendido. Simplificando, a carta aponta as falhas lógicas do argumento “a homossexualidade é errada porque a Bíblia assim o diz”: se a homossexualidade é errada porque vai contra a lei de Deus tal como descrito na Bíblia, por que não são consideradas da mesma forma uma série de atividades agora vistas como inócuas, mas antes vistas como inaceitáveis e ofensas contra a lei de Deus? Como pode uma parte de Levítico ser considerada como gravada na pedra quando as outras partes têm sido descartadas como arcaicas?

O ensaio conclui com a resposta sarcástica: “Obrigado novamente por nos lembrar que a palavra de Deus é eterna e imutável.” Embora esta seja apresentada como uma reprimenda apenas para uma pessoa, na verdade é um lembrete geral de que muitos sistemas de crenças escolhem seu caminho através de ensinamentos bíblicos para determinar o que é certo e o que é errado, com essas avaliações mudando ao longo do tempo, mesmo dentro de seitas que orgulham-se de uma estrita observância da Bíblia.

No início de outubro de 2000, a Dra. Schlessinger publicou um anúncio de página inteira na Variety oferecendo um pedido de desculpas para o que ela chamou de palavras “mal escolhidas” sobre a homossexualidade. Ela já tinha se referido aos gays como “erros biológicos” e “desviantes”, como exemplificado pela sua intervenção de 08 de dezembro de 1998:

“Sinto muito - ouça mais uma vez, perfeita e claramente: Se você é gay ou lésbica, é um erro biológico que inibe você de se relacionar normalmente com o sexo oposto. O fato de que você é inteligente, criativo e valioso é tudo verdade. O erro está na sua incapacidade de se relacionar sexualmente, intimamente, de uma forma amorosa com um membro do sexo oposto - é um erro biológico.”

(A homofóbica Dra. Laura Schlessinger)

No outono de 2004, a Carta reapareceu como tendo sido enviada ao presidente George W. Bush em sua campanha para um segundo mandato, e a peça circulou mais uma vez, desta vez dirigindo-se ao “Caro Presidente Bush”, em vez de “Cara Dra. Laura”. Após o “Obrigado novamente por nos lembrar que a palavra de Deus é eterna e imutável” que fecha a carta para a Dra. Laura, a versão atualizada dirigida ao presidente continuou: “Deve ser realmente ótimo estar em condições tão íntimas com Deus e seu filho, até melhor do que você e seu próprio pai, hein?”

Independente do verdadeiro autor, a carta é uma resposta sarcástica muito adequada para contrapor os argumentos fundamentalistas que sempre demonizam os homossexuais. Continuemos, então, espalhando este texto mundo afora!

3 comentários:

Equipe Diversidade Católica disse...

É uma boa pergunta... E essa carta é sempre um bom lembrete de como a ironia e o humor podem ser armas importantes contra as tiranias e hipocrisias. Não tínhamos tantos dados sobre a Laura Schlessinger, bom vc ter compilado essas informações.

Parece que foi a propósito dessa carta que se fez aquele célebre episódio da série "The West Wing", em que o presidente americano vivido por Martin Sheen passa uma descompostura numa homofóbica, numa cena memorável (aqui).

E um material que a gente usa muito para esse debate sobre o uso das Escrituras para justificar a homofobia é o filme "Assim me diz a Bíblia", vc conhece? (Texto sobre o filme e link para assistir aqui)

Gde abraço! :-)

Espiritualidade Inclusiva disse...

Grato pelo apoio, Diversidade Católica. Sim, pesquisei a história da carta especialmente para este artigo. Quanto ao filme "Assim me diz a Bíblia", conheço e reocmendo. Grato por lembrar e compartilhar aqui.

Abraços,

Stekel

kaumasc@yahoo.com.br disse...

Li tb na internet que o autor da carta seria de um tal: James M. Kauffman, Ed.D. Professor Emérito Departamento de Currículo,
Instrução e Educação Especial da Universidade da Virgínia /// Não pesquisei. Abraços com os meus parabéns pela divulgação desse material que, mesmo sem autoria reconhecida oficialmente, traz uma provocação muito lúcida do que se aceita e não se aceita em nome de Deus.